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quarta-feira, 31 de dezembro de 2014

Árvore de gente



A árvore a salvar dias de afogamento e noites de esquecer nas palavras que tanto crescem como folhas que miraculosamente despontam em Primaveras aceleradas ou torturam grilhões a ferir pulsos e tornozelos no impedimento da fuga para outros pensares, ainda a árvore refúgio, santuário, celebração, pecado, recordação, memorável nota de outros tempos em que a outros ao mesmo fim serviu, bandeira espetada ou até prémio, árvore minha só minha sem atavios, com defeitos de nós e ninhos de pássaros a aprender a voar, quedas de verbo que o ensaio da língua na minha é aprendiz, que digo eu quando o silêncio rompe a clareira e não se sabe contar, a árvore de ramos descidos num baloiço improvisado empurra suave as lembranças e nos olhos fechados, de outros o sabor de estórias embala a dor, poesia, árvore de homens e mulheres.

terça-feira, 30 de dezembro de 2014

Ainda eles, os outros

É surpreendente como o tempo passa e eles continuam a chegar.
E até hoje a surpresa belisca-me.
Pensava eu que moléstias destas tinham épocas para aparecer e depois se curavam.
Mas não.
Ou então, deixava-os andar por aí, fazer de conta que não se escutavam e talvez se evaporassem e no caso como não se foram, ouvi-los e vivê-los. Mas esperar que morressem ou até outros que viessem e deles falassem e ainda outros de novo que nada tinham que ver com os primeiros até ao presente, um distúrbio que em qualquer lugar se me apresenta e me pede chega para lá, ocupando espaço e atenção, mãos e carinho, era coisa que imaginei que a esta altura não me acontecesse.
Porém, ei-los.
Sem aviso, batem-me à porta e adentram-me tratando-me de igual, conhecem-me - quase melhor que eu a mim - apontam-me a fraqueza da humanidade e do cansaço e atrevem-se ao deboche do coração a eles entregue. 

segunda-feira, 29 de dezembro de 2014

Novo Ano



Olho o calendário, racionalizo, ouço a agitação e nem mesmo assim um frémito que me provoque choque me desperta para outra realidade, mais um dia, um dia novo e afinal o Sol depois da noite cansada, ato o cabelo em três pedaços, um por cada dia a faltar para acabar com o Ano que dizem velho, digo menos um e somo um por conta das coisas belas que arrecadei, vistas de rio, mãos unidas, silêncios de olhos, palavras escritas, tino bastante para ter lido e ter contado a outros, viajar, amar, ângulos, a correria de quem procura o vinho com bolhinhas e combina ceias de meia-noite esbarra na minha esquina aconchegada em cantos de sofá. Entranço o tempo nos sonhos a cumprir, não deixei de os ter, a paixão que me consome é-me alimento para seguir e todos os dias é dia de novo ano para conquistar.

domingo, 28 de dezembro de 2014

O nome



Talvez o tenham feito por duas ou três vezes, a sensação era a de escutar ao longe, difusamente como que coberta por uma seda macia e mesmo assim permeável ao toque, um beliscão na orelha a despertar-me, o meu nome [não me ouves?] dito perto e familiarmente na entoação cantada que nos traz ao mundo dos olhos abertos no repente [quem me chama?], ergo-me sem nada ver, o quarto a escorrer noite e as mãos dormentes a apalparem escuro no vazio diante [o que foi?], tropeço em mobílias que se arrastam até às canelas e o agitar dos braços no frio de Dezembro faz-me crescer saliva na boca seca [onde estou?], quero gritar por alguém mas o ruído do meu nome chamado perde-se no troar de sapatos caminhados em pedra solta, volto-me para encontrar a saída mas afunilo-me numa multidão de gentes que me apertam e empurram [quem são vocês?], perco a força e sinto-me afundar [o que é que está a acontecer?], deixo-me ir na maré de faces que desconheço, porém de traços nítidos e uma lógica absurda para o momento reflecte-se sobre os meus pés descalços, a roupa de dormir que me veste, uma mulher encara-me e sorri [ como te chamas?], diz o meu nome.

sábado, 27 de dezembro de 2014

Parabéns Pai




Onde quer que te encontres.
 
Árvore minha, sonho que me corre, raíz do meu horizonte.

sexta-feira, 26 de dezembro de 2014

Entre [Duas Árvores]



Entro no bosque e piso com cuidado embora me apeteça correr desenfreada entre árvores, segurar troncos quando o equilíbrio do ar puro se perde pela tontura das curvas açoitadas na decisão do caminho imediato e fascínio dos verdes transformados em luz-prata ou cegueira instantânea do pestanejar.
Sapatos novos. Presente de Natal.
Baixo os olhos aos pés e não entendo como sirvo em sapatos tão pequenos, um número de criança quando as pernas já se me alongaram em corridas de fuga do feio, de desonra, de despedidas, formatos inconcebíveis para uma alma a despontar. E no entanto, caminho bem, sabem-me os pés os trilhos de cor numa passada viva, não há engano no retorno.
Vontade de correr, isso sim, como se sentisse a cara a gelar de tanto o ar me humedecer os olhos e chorar rios e ainda continuar para a frente sem o tino de achar o caminho de volta!
E corro, que pernas crescidas são para isso, subir e descer, tropeçar e até caír nos joelhos hesitando a dor no esfolado e passar cuspo no sangue e continuar seguindo!
Sapatos que eram novos. Presentes. Tenho os pés nús na caruma áspera e rugosa de um bosque esgravatado entre duas árvores. Eu menina sempre, sempre a querer correr.


quinta-feira, 25 de dezembro de 2014

Parabéns Mãe




Onde quer que te encontres.
 
Árvore minha, seiva que me corre, raíz da minha terra
 
 

quarta-feira, 24 de dezembro de 2014

Véspera [de uma dor]


 
De manso vem a dor chegando mesmo que a passos silenciosos tente escapar-lhe e evite as palavras dos festejos, não a quero alertar para o momento, minto com a boca, trai-me a alma antiga, outra desde há dias aprisionada em afazeres de canela, limão, colo e abraços, brindes de casa cheia, imito a invisível e sigo as horas.
Atinge-me [afinal sou alvo tão fácil] nas costas, no peito, no ventre, nos olhos, arrasta-me pelos braços e leva-me outra vez a aromas da memória, sons e cores esbatidos na história do meu reviver vestindo-me na que sou, apertando laços, fechando botões a casas, oferecendo-me como manjar principal da minha própria fuga.
Assisto-me e fico mentirosamente feliz de me ver feliz, a dor permanece, um frio que corta as entranhas e não me deixar ficar, não me deixa ser, para quê lembrar sem poder voltar a ter.


terça-feira, 23 de dezembro de 2014

Épocas



A excitação, a gritaria, os puxões, o uso desenfreado dos brilhantes, do vermelho, do verde, das exclamações, das frases feitas, da surdez perante o que se pergunta e o remate pronto na ponta da língua, o tráfego de pernas desordenadas que querem chegar primeiro a papéis de fantasia onde mãos como garras rasgam, amachucam e descartam palavras escritas em cartões para na velocidade de segundos o dedo táctil despachar o desejo renovado por este Ano e outros vindouros até ao próximo século que tomara já não hajam carros, buzinas que calam trovoadas ou crianças que choram até envergonhar o Tejo se o brinquedo ou a volta do carrossel não for concedida.
 
Esgueiro-me pela humidade da noite e conto os passos dos meus saltos, um zumbido ecoa-me como se tivesse sido centrifugada. Não sei do que fujo, mas não quero ser encontrada.

segunda-feira, 22 de dezembro de 2014

Portas & Janelas - Esboço nº 13





Batía ao de leve com os nós dos dedos na vidraça e ouvia-te os passos rápidos no sobrado, por dentro, a madeira a ceder ao chegares perto e num repente afastares as cortinas como se te faltasse o ar e alguma coisa a arder, por dentro, o sorriso de troça, pousavas os cotovelos no parapeito e ali ficávamos na conversa a atropelar palavras uma à outra, segredos por dentro, as tranças a balouçar quando te rías e te debruçavas para mim, eu do lado de fora e tu sempre por dentro, a tua mãe a chamar-te que era tarde e muito barulho, para dentro, e nós nada só esticávamos secretismos parvos do que ninguém sabía e se calhar nem nós, eu puxava as folhas da erva-da-fortuna pendentes das ramadas dos dois vasinhos que enfeitavam a tua janela e tu abrandavas a voz, por dentro, e a tua mãe chamava e vinha e aquele incêndio que eu sentía apagava-se todo, por dentro, as folhinhas caídas cá fora.
Cheguei a duvidar, a pensar que me tinha apaixonado por ti. Mas não. Éramos apenas duas garotas com segredos tontos, por dentro, sem mais ninguém para rir, uma única janela de fronteira a proibir a fortuna da amizade. Para fora.

 
(in Portas & Janelas, Março-2014)

Todas as fotografias da Colecção Portas & Janelas são da autoria de Eduardo Jorge Silva

domingo, 21 de dezembro de 2014

Arquitectura&Equilíbrio



Seguro a caneta na busca do equilíbrio das palavras descarregadas, por vezes um alivio de faz-de-conta, um salto para o mundo de Alice onde o perigo é sempre solúvel e seja qual for o risco o herói mesmo ferido há-de encontrar um fio de força e brilho para rematar a estória. Ou talvez não, que ele há outras que se esperam sejam tão idênticas à vivência dos dias, que se dizem não poder acontecer.
Entre estas duas fragilidades ou calo na memória vivida, tenho a experiência e o romance, e se a discussão já surgiu mais do que muitas vezes onde começa uma e se mistura a outra, da verdade de mim própria é que pouco contei. Serei - e repito - a desinteressante desta arquitectura, mera ferramenta a mais misturada com outras, necessária sim para a construção que dê o balanço tanto que leve até ao consumo final, porém entregue e emocionada como um herói a dar a sua vida pelos outros. Pelas palavras.

sábado, 20 de dezembro de 2014

Arrumações



Mastigou a côdea, fechou os olhos. Porquê vir-lhe à lembrança agora àquela hora semelhante figura estorvando-lhe o sossego da manhã, um fio de sol a brilhar nos azulejos da cozinha, tudo tão calmo e do nada aquele soco no estomago que lhe fez subir a manteiga com gosto de ranço e o pão abolorado num passado cozido a uma outra que não ela, essa havia-a enterrado e rido. Apertou os olhos com força e disse uma palavra grosseira. Enfiou os dedos no cabelo e esfregou a cabeça com força para a frente e para trás, repetiu mais duas vezes a mesma palavra.
Ele apareceu mais vivo, mais colorido. O som da voz nítido a ecoar pelos azulejos e a abafar a luminosidade do dia, uma pequena gargalhada, uma estúpida e pequena gargalhada ela achou.
Abriu os olhos, bebeu o café de um trago, recordou-se do jeito de ele pegar na chávena nunca usando a asa e queixando-se sempre que estava quente, chamou-lhe idiota e atirou com a louça a um alvo invisível, partindo-a, correu para o quarto e desfez a cama, apontou para o monte da roupa e contente, disse que era feliz por nela ele nunca ter passado uma noite inteira e de seguida, pulou, pulou e saltou para cima do colchão e ofegante caiu de bruços.
Acordou já a tarde se tinha aprumado.
Arrumou tudo, varreu os cacos, fez café fresco. Na tranquilidade da cozinha veio-lhe à lembrança a fúria que tinha sentido. E riu baixinho.


sexta-feira, 19 de dezembro de 2014

Cais (eu, outros)



Vou chegando ou vou partindo, serão os outros que indo terão chegado perto de mim primeiro para depois me largarem a mão, outra vez, um, outro, uma constante de vindas e partidas neste cais da minha vida, conhecer todos e a todos de afectos sentir para ficar e sempre e mais uma vez a cerimónia das despedidas ou eles a mim, de tanto as cumprirmos não a aprendemos, nem ensaio nos vale nas palavras de aviso quando a hora se nos cola peganhenta para logo velhaca se tornar fio, ponto, recordação, saudade, suspiro. Não choro, não sou capaz, já o disse, nem olho de novo a ver se o engano me esfregou os olhos que desses só nas estórias dos outros e até essas têm que ser inventadas, porque afinal há mais por aqui. Outros de braços cansados do aceno.
 
 

quinta-feira, 18 de dezembro de 2014

Colher (Detalhes)




Cada detalhe torna-se uma paisagem imensa, os defeitos são a perfeição da beleza que distinguem o cunho da originalidade, únicos e singulares, uma assinatura do seu autor ou do seu portador.
Recolho tudo ou o mais que posso pois tanto mais que observo mais ainda descubro, e estes pormenores tornam-se gigantes pela sua riqueza de jóias com que enfeitam o geral, a não constarem na sua reduzida e quase despercebida existência meros espaços de ocupação seriam.
Mas onde me perco e devaneio é nas gentes, pelo comum homem que se cruza comigo cirandando na biblioteca ou pela mulher que sentou na mesa próxima no restaurante. Os sinais peculiares que os marcam como indivíduos como o toque dos dedos nos objectos ou a forma como os cílios se encostam para se defenderem da luz, de palavras menos boas ou até afagarem-se de outras tantas mas suaves, o beiço húmido. Ou então, naturezas mais agressivas como uma nariz adunco, um mancar, uma verruga perdida no rosto ou no pescoço, orelhas assimétricas.
Colho pesada cada detalhe, na maior parte das vezes sem o intuito da intenção, uma acção inata que me enche um saco invisível e que me desperta depois, imagens em clarões tão nítidos que os pareço conhecer desde sempre.

quarta-feira, 17 de dezembro de 2014

E agora?



As palavras oferecidas impulsionam-me: O ar é bom e à minha volta há gente tão feliz quanto eu pelo que lhes dei.
Afinal, oferecem-me o retorno. Nada mais gratificante que saber que o molde do nosso verbo é a medida certa para o que os demais sentem, esperam, esse é [também] o uso da palavra, materializar o ritmo do coração, dar forma ao ar que se respira.
E este não é um momento, não é a fugaz reacção que se tenha ao comer as linhas do que se lê e digerir dizendo que isto é para mim, é o que sou e o que sempre senti incapaz de o transmitir melhor, é mais além porque uniu espaços sem sentido a gentes que não tinham afectos entre si, descobriu olhares e colocou o som da voz onde o silêncio titubeava entre o engano e timidez.
O que me deram foi muito mais do que escrevi, dei-me a mim, recebi de tantos.
 
E agora?
 
Estou feliz.

terça-feira, 16 de dezembro de 2014

Lisboando, Cartas a um Amigo



Meu Caro,

Se ninguém te agarra pela nossa Capital, é porque estás rijo nessa planitude! Que é como quem diz, em pleno na planície! Folgo saber-te de bem!
(Como deves rir agora com esta nova palavra!)

Pois este que aqui que te estima, debandou-se pela margem ribeirinha, agora reformada.
Dizem.
Que em dias de sol com o espelho da água é uma beleza e toda a Cidade fica mais brilhante e iluminada pelo reflexo, mas caíndo a tardinha e o vai-vem do trânsito, é um inferno ruidoso que só lembra o purgatório contado das galeras!

E os restos do descuido pelos passeios diários, deixam um rasto de lixo como um saco roto cegamente ignorado! Nem te falo dos corredores, dos ciclistas, e também de alguns larápios astutos que no encontrão tentam aliviar o peso dos bolsos de quem ali, como eu procurou lisboando, as vistas descansar sobre tão bela paisagem.

Resguarda-te meu Amigo!

Aceita um abraço deste,



Fotografia de Eduardo Jorge Silva

segunda-feira, 15 de dezembro de 2014

Avenida



Trocam segredinhos, truques de beleza doméstica, o perfume favorito, cigarrinhos perfeitos enrolados à mão sem furar a mortalha delicada, as pernas, os sapatos nas saídas, os lenços aromatizados na decepção de mais um encontro falhado, a atenção das palavras em conselhos repetidos, trocam-me os olhos, duplicam os sentidos em bebedeiras ausentes de álcoois, um eco de si ou a propagação do monólogo silencioso que berra a solidão rasgando uma outra em duas, companhia dos loucos, vejo uma ou muitas, tanta gente sem rosto desfiando conversas mudas pela avenida ruidosa.
E no entanto escuto-as, sinto-as na sua elegância distante sempre de prontidão para a cor rasgada do beijo.

 

domingo, 14 de dezembro de 2014

Revisitar



 
Revisito-me: O corpo apreende códigos ao longo da vida tão iguais como aprender a andar de bicicleta, nunca se esquece e neste lembrar despertam as dores e os sorrisos do cenário onde os ganhos das nódoas negras sobressaem como sublinhados de uma frase, reescrevo o meu regresso, pirueta, torta, de novo, torta, outra vez, melhor, hesitando lenta, páro, troco palavras com mortos que dançam comigo de novo, como estás, fantástico! e sento-me admirável a admirar estes admiráveis seres que me acompanham na ponta dos dedos e me erguem do chão frio, nada de parar, ainda não, e trazem ritmo e som e gargalhadas e desafios e breve, breve, rodopio de olhos fechados e as palmas vibrantes no sentir das veias, ouço o meu irmão a rir, tonta, o chão tão quente sob os pés nus, abro os olhos de uma vez, o cão deitado a fitar-me.
Revisito-me na memória dos que me fazem feliz, esse exercício não morre, é a descida que se faz a  sentir o vento na cara e a afastar o cabelo depois da ladeira acima que esforçadamente se pedalou.

sábado, 13 de dezembro de 2014

O livro negro dos homens (quatorze)



Ai o mandar, o poder, o se não, separadamente senão entortam-se as barras da condicional prisão e escapa-se o fugitivo pensar para outras longitudes, que perigo, aquele dedo esticado mesmo na imaginação quando na materialização dos presentes não pode ser espetado no nariz perante a resposta do outro: Não quero, não faço, não vou.
Ai que quem pode manda e quem não manda obedece.
Mas não se espere que concorde, que cale e sorria, que abra a boca e engula o discurso sem o arrotar pelo destempero do imperativo, que cerre as mãos para que as palavras ganhem força quando se entalam no silêncio do que não pode dizer.
Ai a liberdade de se ser, cumpra-se mas no protesto da verdade.

 
(Tejo, 06-05-2010)

sexta-feira, 12 de dezembro de 2014

A MET ou A porcelana dos dias


 
Segurou a jarra de porcelana branca-azul azulejo entre as mãos, os dedos afastados aparentando um não-toque e sustendo o cuidado na expectativa dos convivas aguardando palavras satisfeitas e reconhecidas da presença, da lembrança, dos anos passados, a violência dos momentos de ira instantânea não eram para ali chamados assim como as contrariedades, as de todos, a comunhão do momento, a hora da verdade transformada em sobremesa, um doce de pessoas, obrigado pelos tempos, pela saúde, pela sorte, por deus e a jarra de porcelana cada vez mais fantástica nos dedos que mal a seguravam e não a deixavam tombar, só o azul se tornava mais céu e os olhos dela não fitavam os demais porque ela quería continuar forte e sorridente como sempre tinha sido, sem lágrimas a aguarem a porcelana dos dias.
Palmas, olhar ao alto, encanto da serenidade.


( A Maria Eduarda Teodoro, minha companheira de trabalho que parte para outra carreira)

quinta-feira, 11 de dezembro de 2014

Reencontros (no quarto de brincar)


 
És tu, pois, desconcertante, quem mais tira a corda ao meu relógio e o suspende como objecto de decoro ao meio do peito, não mexe, não pestaneja, não respira, aguardo um sinal teu à existência procurada dos de cá e enluto-me de véspera capacitando-me que esta é a tua melhor maneira de me pregares uma partida, mais uma, e quando os suspiros sorriem por te lembrar a matreira forma de sorrir ligeiramente puxada de lado, um castelo de poesia montado em palavras de selecção, derrubas a porta e apresentas-te entretido sentado no chão entre cubos de letras no quarto de brincar.
Convidas-me.
Pretendo que me vejas furiosa mas ilumina-me o teu encanto e seja o cavalo de papelão e a crina de ráfia dura, a verdade é que não deixa de ser um cavalo e eu estou feliz de teres voltado.
 
 

quarta-feira, 10 de dezembro de 2014

Mais um


 
Um, uma, outros, só eu cumpro mais um, dos restantes a data passará como mais um dia da semana, um enclave, a outros um alerta na agenda que lhes recordará o sinal e virão, de alguns que me amputaram mãos e se foram de vez restará não a eles mas a mim encher o copo e fazer número na companhia lembrando-os, quiçá o brinde silencioso por me terem feito parte e no gole tomado, arruma-se a coisa, não há espaço para mais, afinal o dia é meu e de mais ninguém, partilhas tiveram-nas quando mo permitiram e nem na despedida me chamaram, sopro as velas e não peço desejos, a partir de certa altura aprecia-se o dia pela vida que traz e o meu tem um manto que resguarda outras que devo cuidar, não são minhas mas estarão presentes na minha partida.

terça-feira, 9 de dezembro de 2014

Luxos



 
Um luxo, e já que me foi concedido, esbanjo-o, porque não é coisa que se poupe, sei que de seguida vem morder-me os calcanhares, a nuca, a alma, correr atrás de mim ou eu atrás dele que o tenho feito toda a vida e desde que me lembro ou desde que tenho essa memória é sempre um atraso constante, sempre qualquer coisa em falta ou algo mais por fazer ou ainda resta isto ou aqueloutro por tratar e sem tempo.
Tempo, tempo, tempo, um crescendo que se escapa, um minguado que se atola e alteia na medida da importância que se lhe dá. Acabei por aprender. Nada fazer gasta tanto quanto o fazer muito.
Por isso hoje deixo apenas que o frio traga o sol deste dia límpido de contornos exactos em que os minutos terão a certeza da sua durabilidade enquanto de olhos fechados, me aqueço a pensar na beleza de tantos dias claros que já tive, outros tantos ainda por desejar.
 
 

segunda-feira, 8 de dezembro de 2014

O céu da boca (Palavras Reencontradas) 6



[...]

Na verdade e a certa altura, não sei se as esqueci, se foram elas que se esconderam de mim para que eu as melhor apreciasse e buscando, as entendesse no seu valor, não meras fonias embrulhadas em saliva que se aprendera em criança à força do repetido, palavras guardadas numa gaveta bem à vista que é como melhor passa despercebida.
Esqueci-as, e num repente sem saber donde nem qual a razão, adoçavam-me o céu da boca, fazendo gargalhar a frase, abrindo um parêntesis, e perguntando-me donde veio isto agora? para logo acrescentar um comentário a mim, aos demais, há quanto tempo não ouvia essa palavra.
Silêncios.
E eram momentos de ouro.
Encostava-se a língua ao céu da boca à procura de imagens onde a palavra tinha sido dita naquele instante, naquela memória, naquele pedaço de tempo tão bom e entre rostos que apareciam à vez de sorrisos abertos, um despertar de um outro sentido.
O mágico das palavras era não só tê-las aprendido uma vez, mas voltar a esta torrente imparável que jorrava das bocas, renascida, valorada, oferecida agora, tão mais perfeitamente entendida no seu tamanho. 
[...]


(in O céu da boca (Palavras Reencontradas), Março 2014)

domingo, 7 de dezembro de 2014

Declinações numa manhã de Domingo



Rosa, rosae, rosarum, porque me lembro disto agora?
Abro os olhos com o som da vizinha a ter a conversa do costume com um José invisível, ela a sacudir panos, ele recolhido que nunca ninguém o viu, professora reformada já mo contou e nem os vidros duplos isolam a ladainha sobre uma terceira pessoa a quem sempre se refere. O som estridente do CD significa que o rapaz está a lavar o carro, é hábito fazê-lo nesta manhã, do jardim faz o rescaldo das noites, batidas repetitivas, por vezes acerta com o ritmo do meu coração, doutras não, quando o miúdo do triciclo lhe dispara a campainha ou chegam os futebolistas de palmo e meio a fazer golos às portas das garagens, gritos de aviso sobre estragos, vivas dos pais ou buzinadelas de quem quer saír. Depois há os cães e os donos dos cães, e o ladrar alegre das corridas e o assobio e o chamamento incessante que não serve de nada e há também as bulhas.
A vizinha de cima levantou-se agora e anda de tacões, martela no sobrado apressada como quem esteve na cama até à última. Algures, um homem e uma mulher discutem. Vejo as horas, fecho os olhos mas sinto a claridade perpassar as cortinas admirada.
Rosa, rosae, rosarum, há coisas que nunca se esquecem mesmo que tenham sido há um século.
 
 

sábado, 6 de dezembro de 2014

(Apenas) Dormir



Tudo me é perto.
A cova da almofada, moldes desenhados ao hábito do meu rosto e este habituado ao escuro do conhecido e os passos miúdos dos gatos no sobrado antes do salto aconchegado ao ventre ou à curva das pernas e o suspiro profundo do cão na tranquilidade da casa segura, durmam que eu também, e eu, esta noite tudo me é, até pesadelos me são, posso tê-los em terra minha e saber que a mão do meu lado me toca quente no braço a trazer-me, vejo os contornos dos móveis transformarem-se em monstros sem luz e sorrio, deixo-me adormecer na sensação do tempo perdido quando se regressa do banho de mar à areia morna e os sons difusos das ondas a morrerem embalam o corpo mole.
Tudo me é (a)mar.
Nada me pesa, nem corpo, nem dor de saudade, apenas ao horizonte a linha de acordar.

sexta-feira, 5 de dezembro de 2014

Mayo a Madrid - 4



Serpenteamos no caminho inverso, outras ruas, outras bodegas, outros apetites, outro dia, um céu que não sabe o que quer, pergunto a Portugal como vai o tempo, infantilidades de quem está fora de casa e quer aproximar o melhor de lá com o pior de cá, vã glorias de quem possui sol em Maio e aqui trabajo, mucho trabajo.
 
Apertamo-nos no cinzento dos fatos, na sobriedade dos edifícios que nos cumprimentam. Tagarela-se coloridamente no contraste da elegância dos passantes, Madrid é o mundo, confluem cidadanias e temas e ela faz-se moldura, deixa-os enaltecer os passeios chumbo lembrando pinceladas de um quadro em construção constante.
 
Mergulho nos idiomas que me envolvem, os meus parceiros árabes riem entre arranhões fonéticos, as duas gregas seguem a conversa ao ritmo dos passos, italianos trocam exclamações em tom ainda mais alto que os nativos e eu junto-me ao outro português que acompanha o único francês da comitiva. Chegamos, somos recebidos pelos espanhóis que nos dão as boas vindas em inglês.
Olho o céu, chove, pingas grossas e muitas frias.
Dobro a minha língua e guardo-a.
E estupidamente, suavemente, uma música inunda-me... Ain't no sunshine when she's gone...
 
 


Maio/2014

quinta-feira, 4 de dezembro de 2014

Olhar com Vista sobre o Rio (19)




Enquanto espero parto, o cacilheiro junto ao cais prende-se nos cabos e nos minutos e já tu me levaste fugitiva do olhar para murmurados segredos que me fazem esconder o sorriso entre mechas de cabelo de fim de dia, águas de remoinhos pequenos que me acompanham no trocista que te conheço, hás-de balançar o passadiço quando o marinheiro de olhos azuis estender a mão para o desequilíbrio e eu, tu e ele haveremos de saber o mesmo mas nada diremos.
 
Cumplicidades de quem te conhece e ama.
Hoje bem humorado, dias e noites hão-de aparecer que nos queres a não gostar-te, vá lá entender-se a tua grandeza... sendo tu quem és não te consola chamarem-te mar ou seres cama de caravela e navio ou apenas meu, do marinheiro, palete de cores, alimento, saudade, paixão, caderno meu tão vazio de coisas por ainda dizer...
 
Enquanto espero pelo cacilheiro que encosta ao cais e te olho suave é como se tivesse já partido, chegado à minha margem, entrado em casa.



(in Olhar com Vista sobre o Rio, 2012)

quarta-feira, 3 de dezembro de 2014

Despertar



Alguma coisa aconteceu, não trouxe só lembranças de contar também deixei pele por lá, quiçá um pouco das minhas memórias, afinal miseráveis fiapos comparados com a gigantesca dimensão dos séculos de tempos, de vivência, de risos, de segredos, das noites em que as luzes apagadas podem finalmente comentar quem por lá passou, de pedaços que lhes tiraram nos olhos fitos de admiração tão iguais ao meus na boca selada como escancarada pela magia de estar dentro do que escrevo ou do que as mãos maiores que as minhas na concepção do verbo sabem dizer como perfeito.
Assim me vejo outra, outro eu sendo eu.
Eu que os demais reconhecem como a de sempre e eu surpreendentemente descubro noutras partes do mundo, antiga, à minha espera durante todo este tempo.

terça-feira, 2 de dezembro de 2014

Campo de Palavras (18)


 
Roubo palavras daqui para oferecer a outros e o curioso é que estas já me foram subtraídas do esforço das mãos, não eu, que de outros em mim estabelecidos sem permissão prévia usaram-se e fartaram-se, depois abalaram sem dizer adeus ou ficaram para gozar a míngua do que restou ou para voltar quando a veneta lhes desse a qualidade apetecida ou simplesmente gostando de mim, gostaram da conversa no troco e ficaram.
Levei estas palavras emprestadas de empréstimo a outros e gostaram e eu gostei que tivessem gostado dos outros, senti que nesta comunhão parecenças havíam com a forma como o universo se nos revela e aos outros como nos (des)identifica.
Serenamente engulo as palavras de agrado como se a mim me fossem dadas e honrada por conhecer os autores de minhas mãos, alimento os segundos e digo a verdade.

segunda-feira, 1 de dezembro de 2014

[Trans]Posições



Retomo a vida comum na incomumente convicção de que nada é igual ao que deixei, afinal a poesia insinua-se até nos pontos onde se queríam rasos de uma mundaneidade abstracta em que os corpos se trocam nos sentidos inversos do ir e voltar sem se tocarem nos milímetros que os separam, vou e observo o que me cansava de aborrecimentos e agora plasticamente se esforça ao meu olhar por adquirir ângulos de surpresa.
Antes e depois, sobreponho, transponho, ganho velocidades, atinjo além.
Ter de dar as costas e fechar os olhos, apalpar vértices e sentir a dureza de parágrafos sem a latitude próxima dos verbos cantados na entoação familiar dos sons que adormecem seguro, o vicio do caderno ou o exercício da memória, o apelo da poesia à dor de casa ou a dor como dor pedida para consentimento ao caderno, um passo atrás e o quadro de mim em pleno.

domingo, 30 de novembro de 2014

Aconchego



 
Mal a oportunidade se achou corri, corri muito, o matagal de silvas e outras ervas altas a abrirem-se para me atalharem caminho às pernas, o pensamento mais rápido, um a puxar pelo outro, peso de verbo que acarto e me atrasa na chegada, por onde começar a contar tudo, tanto sem me atrapalhar ou engasgar com cuspos e pontuações ou falta de ar pela correria que agora faço para chegar à árvore, mudanças de tempo em passado e no agora, ei-la!
 
A clareira ao redor impõe respeito.
Tento suster o ímpeto da vontade de a abraçar e de lhe contar tudo mas estou ofegante, o coração acelerado e as mãos cheias de palavras que andei a engolir, nunca as escrevi por estes dias, bebia um gole de água e tomava-as como um remédio que depressa me embriagou até se tornar um veneno nas veias.
Caminho, passos lentos, o tronco forte e rugoso perto, o cheiro típico, húmido, acre e invernoso dos líquenes parasitas que vêm sugar-lhe vida e enfeitar na ausência das folhas. Toco, sinto-lhe a aspereza, encosto a face e conto-lhe da falta que me fez.
 
Aconchega-me, pede que lhe dê as palavras do meu alivio e na morna e suave doçura das páginas brancas do meu caderno a seiva invisível das raízes pinta-se em letras no todo que trago para lhe oferecer.


sábado, 29 de novembro de 2014

Entrar



A felicidade dos cheiros reconhecidos é esta coisa silenciosa que faz barulho de trovão, gargalhadas, os abraços apertados do reencontro nos que nos esperam de mãos inquietas enfiadas no sobretudo nervoso à espera dos minutos atrasados quando a mala cai no chão desembaraçada para livrar sentidos que não sejam outros que a saudade, palavras a mais, palavras a menos para dizer tanto, beijar pouco que não chega, os olhos falam mais quando se encara a cor e se murmuram contar regressos e a euforia do que se trouxe na memória.
Casa.
Os pés no tapete, afagos de passos, uma quase licença ao pedir permissão para romper a invisibilidade e transpor para o lado do que é nosso, ali é o meu lugar e no entanto quase se pede o convite.
Entra.

domingo, 23 de novembro de 2014

Bagagens



 
Deixo extraordinariamente arrastar os minutos como se não tivessem importância, não lhes dou essa dimensão, mais um bocado e já não estou aqui, outras latitudes, outras saudades, enquanto fico mascaro o tempo de inútil e deixo para a última a mala, não gosto de fazer malas, conferir se está tudo ou se esqueci algum objecto indispensável, fazer listas é impensável ou preparar com muita antecedência dá-me o gosto do adeus anunciado, não quero, prefiro o abraço apertado no momento e nada de olhar para trás, acelero os passos e fico no apuro do ouvido à espera do bater da porta e só depois cerro os olhos, abato-me.
Dantes, quando chorava, colava a língua ao céu da boca, agora nem isso, dá-me uma dor na garganta e no peito, um amargo que demora a passar e aperto nos lábios mas não digo nada, sinto uma espécie de saliva a mais que engulo, engulo e não vai para baixo.
Parto sempre mais carregada do que regresso, levo tudo o que o olhar alcançou, as mãos tocaram. Na bagagem acondiciono-os gentilmente e ao longo dos dias vou consumindo consoante o apetite dessas pequenas grandes iguarias que passo clandestina e que verdadeiramente me alimentam.
Chego magra, famélica, ávida de mãos, olhos, casa. Venho plena das fomes de outros, pedras preciosas, ouro.

sábado, 22 de novembro de 2014

Instantâneo - Episódio três


 
Vejo o liquido manchar-se na alquimia da transparência, páginas de nívea para café que se tornam azuis e assim eu me torno letras ou então de sangue se nascem outros, outras coisas que se seguram cá dentro e libertam à medida que o dia toma o escuro e o arruma dobrado como um cómodo que se limpa e se deixa pronto para o hóspede que chega.
Do consolo do gole quente depressa se esquece a mão, presa à linha do encadeamento de frases, pontos, a vírgula pendurada na asa da chávena incapacita até o instantâneo se esfriar amargo e vitrificar na realidade de um coágulo, não me lembrei mais do café, não precisei, duas mãos não chegaram para tanto apanhar, ele eram palavras e hóspedes e dia a vir e eu a mirrar e de repente eu nem estava ali, cheguei porque a isso me convidaram.
Solto o cabelo, o gato amarelo ronrona sobre o caderno, o outro no meu regaço.
 
 

sexta-feira, 21 de novembro de 2014

Eu (ainda) à espera de ti


 
Os pássaros já partiram e as árvores estão nuas, o que delas resta anda pelo chão, espezinhado ou quando vem o vento arrastam-se para um canto amontoando-se, as chuvas fortes levam as sobras. E de ti nada. Eu à espera. Acendi a luz no quarto de dormir e levantei a colcha na esperança de que te escondesses sob a cama para me pregares um susto. Em vão, nada mais que algumas caixas de cartolina feitas por ti no aborrecimento das madrugadas quando a invenção te chegava prolífera e te abandonava em iguais quantidades do mesmo enfado. Coisas de artista, dizia eu e tu sorrías. Vejo o teu sorriso quando destapo as caixas e é só isso que encontro e não me chega, sei que os pássaros se foram e que voltam mas preciso de os ver a planar naquele ruído de vida, esgravatando junto ao telhado ou discutindo na árvore perto de casa. Empurro as caixas de volta ao esconderijo que escolheste, talvez tenha sido tua intenção trazeres-me até aqui, sempre gostaste destes jogos do desejar mas o meu coração sente-se perdido no meio das folhas, arrastado, levado pela enxurrada e quem sou eu à espera, sem ele?
 
 

quinta-feira, 20 de novembro de 2014

Em vez de



Em vez de ir vou ficar. Sou até capaz de me deitar em sitio que não seja de o ser com roupa que não seja de dormir, andar descalça ao invés de castigar dedos de pés a pique em calçado pontiguado e de saltos que se encravam em pedras de calçada e tapetes de escritórios onde se bate na porta ao de leve e se encosta a orelha à espera de sinal para se entrar. E sendo assim, não entro, não levo, não carrego entre mãos papéis com linhas que consumiram a cor dos olhos que da minha era verde e fugiram para branco e depois nada e depois se tornaram riscas e depois ficaram cegos e agora podem ser a branco e negro porque tudo fica mais simples quando é uma coisa ou outra e nada mais. E por tudo isto não será quinta-feira, será outro dia de não ir, mas um que não seja véspera de lá voltar, pois aqui me deixo abandonada ao que acontecer, despreocupada em vez do que sempre me habituei em todo o redor, até feliz em vez do parecer ser.


quarta-feira, 19 de novembro de 2014

Olhar com Vista sobre o Rio (18)



Como uma droga, é noite profunda e fria de húmidas saudades da lembrança de vozes dos que me diziam para ter cuidado, saio mareada de um Rio com largueza bastante para se comportar como o engano dos que lhe chamam mar, repetidamente não és e o cais balouçado amachucando o bojo dos navios magoados que me tremem nos olhos são truques que ousas para testar a minha coragem.
 
Hesito os passos não por receio, é a bebedeira dos sentidos a agitar planos e a confundir-te se tal como os cacilheiros fantasmas no aguardo da luz do dia, também eu não serei mais um, alma perdida de um século ou dois, que interessa o tempo, águas vêm e aqui regresso, de carne ou de pensar-te.
 
 
 
(in Olhar com Vista sobre o Rio, 2012)

terça-feira, 18 de novembro de 2014

C782 - AA&RR




Cá vá disto que amanhã não há! É tudo a entrar, motor a rugir, quem está dentro segue, quem se atrasou azar, que o dono do veículo estava a olhar para o outro lado e nem reparou que lhe pediam para abrir a porta, por piedade, só mais um segundo, os bofes de fora e o antipático vai de carregar no acelerador e bem de propósito arranca a largar uma fumarada a pontos de envenenar meia centena de gente!
Facínora!
Se fosse peão, era passar-lhe por cima!
Dizem os que ficaram pendurados, que é como quem diz apeados.
Ninguém diz nada no interior da viatura, tudo animado que hoje segue-se a bom ritmo e o inicio está de feição.
Mas pensamentos não eram tidos, quando um desditoso pedestre se lembra de atravessar - e logo na passadeira! - obrigando o motorista a travar.
Todos pela inércia do movimento se catapultam para a frente, o som da surpresa em coro, o carro que seguia na traseira apita furiosamente, alguém grita cabrão, ninguém sabe a quem mas ouvem-se entrecortadamente és tu, mais buzinas, fila única que a estrada tem dois sentidos inversos e largura mínima, uns quantos pedem para abrir a porta e saír, de quem é a culpa é do carro, não, não é do peão, é do motorista que atropelou duas senhoras...
Há juízes, advogados, autores e réus.
Só não há meio de saírmos daqui.



(in As fantásticas aventuras do C782, Setembro 2014)

segunda-feira, 17 de novembro de 2014

Corpo de delito


 
Desembacio imagens à procura do nevoeiro da minha, gosto de nevoeiro, gosto de chuva, não me revigorei em dois dias de pausa, os que por trás de mim se penteiam ou de gestos me imitam mandam-me ir e fazem de conta que já me ergui, acordei, desperta no comando de ordens que ouço, vai e eu ando, faz e eu respiro, volta e eu ainda aqui.
 
Há um cansaço em mim que nem me cansa mais, habitua-me.
 
Só temo que um destes dias me ordenem que vá e quem for que siga, me leve e fique por um qualquer sitio a viver. Como explicar ao corpo que restou deitado...

domingo, 16 de novembro de 2014

A(s)da minha rua


 
Espero que nunca se lembrem de vir à minha rua cortar as árvores, a que fica dois prédios abaixo do meu tem uma pernada pendurada que costuma cumprimentar-me com um afago na cabeça, as folhas emaranhadas no cabelo a custar deixar seguir, e a que está em frente à minha casa, à janela do escritório, onde a secretária está colocada e me sento para a poder ver entre as cortinas quando páro de escrever e lhe falo, sabe-me tanto quanto o silêncio do não dizer, sabe-me por dentro, conhece-me os gritos, os abraços, tem-me as horas guardadas nas de noite de pé e nas de dia feitas em noite e ainda todas as que se querem num avesso, tem-me gratidões de oferta nos gatos arriba em upas ou alívios de perna alçada a outros tantos Gaspares e salvação de sombra, de apoio, de coio, de musa, de letras quando me fujo e escondo para me apanhar.

 

sábado, 15 de novembro de 2014

[Re]Encontros nos passos [ou nas letras]



Sentou-se ao meu lado e puxou um trago de fumo que lhe escondeu o rosto, não sei como o faz mas fá-lo de forma tão cinéfila que me prendo no instante até a nuvem tóxica se elevar e dissipar pela sala, resta um aroma a cedro ou talvez sejam avelãs tostadas, fico hesitante e perco-me na decisão olfactiva e quando apanho as palavras que me diz já nada do discurso faz sentido, sinto-me a despertar com um beliscão e no entanto tenho estado sempre de olhos abertos e bem atenta, então para onde foram os restantes sentidos que me desoriento e não sei se diga sim ou se responda não? Continua sentado e na mesma posição, leva o cigarro enrolado aos lábios, desvio o olhar mas ele está calado e sinto que espera, observando-me, que eu lhe responda.
Agarro a caneta de tinta permanente, abro o caderno e aponto ao topo da página.
Ele apaga o cigarro, sinto o calor da face dele próxima da minha, a mão dele sobre a minha, guia-me as letras sem me forçar.
Agora sei do que estava à espera que eu lhe dissesse, claro que tive saudades, muitas e não quero que parta outra vez, há noites mágicas que só ele conhece e pode contar nos sons de vida, nos passos de morte.
 
 

sexta-feira, 14 de novembro de 2014

Agendas



 
Os alertas coloridos, as mensagens de pânico, o rejubilo da desgraça, água por todo o lado, eu ilha, de chuva, de isolamento na inconsciência das tempestades que confessa aprecio e os outros fogem.
Tudo mais do mesmo.
Final de semana típico quando o estrondo do trovão espanta a cidade e o caos dirige as multidões a confluírem, entupimentos de horas, rezas silenciosas.
Fico para traz como coisa esquecida, deixo-me. Deixo de lutar contra o relógio, contra o caminho dos demais, contra o que ficou por fazer, contra o que vou encontrar por fazer. Ando pela cidade em passo vivo e quanto mais chuva cai mais leve me sinto, vão saíndo os dias da semana um a um, uma sujidade invisível que se havia pegado e fazia peso, da noite que caíu vejo dias de Verão em que andei de bicicleta até as costas me doerem e a roupa encharcada que se me colou como segunda pele tem a temperatura desses tempos de calor em que nada era mais importante do que esgotar as férias até enjoar e voltar à escola.
Atravesso o rio, há gente feliz, silenciosos observam o negrume através das vidraças salpicadas, têm um ar diferente dos restantes, noto-os. Tiro o meu caderno, sai a agenda. Várias notas completamente esborratadas, um fio de choro a azul a desmaiar-se pelo fim das páginas, nada se lê. Vejo o caderno, a ponta das folhas a desfazerem-se.
Sorrio.
Estou feliz, olho a noite chuvosa e no reflexo do vidro molhado vejo o meu rosto com a maquilhagem arruinada, o cabelo colado e não me importa nada, mesmo nada.


quinta-feira, 13 de novembro de 2014

Pedidos



Chegam de todos os lados, cem, mil, um milhão, pedidos por toda uma eternidade, cada um mais urgente que o anterior que era tão importante, não há vazão para tanto, uma maré que alaga e afoga antes que se agarre a bóia que vem no ar e vemos a girar na nossa direcção, quase a segura e depois a nova onda, forte, altaneira, que bate no cachaço e afunda, a salvação fica por lá sem préstimo, pousada nas águas revoltas.
Respirar.
Submerso no que não pára de chegar tenta imobilizar-se o pânico, organizar o pensamento, bater pés para não sucumbir ao fundo e ainda assim, atender ao que se espera, dar sinais de vida.
Escoam-se respostas e chegam cansaços, um oceano de reclamações.
Pede-se mais, pede-se melhor, pede-se mais rápido.
Adrenalinas que gritam, nada-se, velocidades enganosas quando o som vem debaixo.
A praia achada, cem, mil, um milhão de restos repousam e o afogado é apenas mais um pedaço que por lá encalhou.

quarta-feira, 12 de novembro de 2014

Ágil



Chega um tempo em que é preciso rasgar, cortar, gritar, romper, mesmo que a força das lágrimas sangre por não saírem a arranharem na garganta a dor de lembrar que não há vez de perguntar como se faz, como foi, o porquê, porque se pensou que ainda havia o tempo, esse tempo que agora se atira à cara de garras... Não é remorso, que arrependimento é de não ter feito as mesmas coisas mas com mais interrogações.
É seguir em frente e massajar a nódoa negra da recordação, separar o dantes, despir a fantasia que antigamente é que era melhor, parece sempre assim quando o salto tem o amparo do vácuo até os pés calcarem o chão ao presente.
 
O salto de corça que ensaiei para evitar a poça de água saiu-me torto, feio, torci um pé, fiquei parada com o sapato alagado, a minha figura dobrada para a imagem reflectida enviusada pelo vento que a açoitava ou apenas o tempo que passou, ágil. O tempo, não a memória.
 
 

terça-feira, 11 de novembro de 2014

Portas & Janelas - Esboço nº 12




Quando te chamava cá de baixo e tu assomavas, cabecinha pendurada, a primeira coisa que fazias era entalar as saias entre pernas, um cuidado que por vezes não te valia de nada, o corredor dos olhos ficava na mira das tuas cuecas e o branco sorria-me à medida que tu me dizias sobe, sobe.
Eram sempre brancas, sempre. E eu gostava, não tinha fascínio de outras cores, porque debaixo daquele balão de saias que tu afrouxavas recatada, recortavam-se as sombras de ferro forjado do resguardo da varanda o que te dava um ar mourisco e apimentado, coisas que eu guardava na minha mente e recordava solitário do quarto de solteiro em noite de canto de cigarra.
Raramente galgava os degraus e subía como tu pedías. O desafio era fazer-te voltar à varanda e ver-te por cada vez mais insistente e apressada e quase pronta a saírmos, de gancho no cabelo, depois de batom rosa, finalmente para nada ou apenas para teres a certeza que ainda te esperava.
Não sei o que deu mal connosco... Ou o que me deu de hoje passar aqui com o meu neto. Mas sei que me apetecia dizer o teu nome alto e ver-te chegar, apertares as saias de balão entre pernas e eu sorrir-te por esperar por ti.


(in Portas & Janelas, Fevereiro-2014)

Todas as fotografias da Colecção Portas & Janelas são da autoria de Eduardo Jorge Silva

segunda-feira, 10 de novembro de 2014

Há quanto tempo!


 
 
Os desesperos das noites acesas no breu a escorrer pelo tempo que se esgota na míngua do descanso ou os olhos abertos no aperto forçado pela tortura do dia que não chega. Pensamentos que se estacionam, parque cheio. Vagabundos da memória que ocupam libertinos e disputam à gargalhada como manobra de diversão, o espaço, o tempo, o podium. Lutam e matam-se à vez, restam uns quantos, depois dois, três, finalmente o solitário vencedor, imperador.
Chega-me fascinante.
Eu que já rendida ao cansaço, tinha friorenta puxado agasalho, ergo tronco e abro olhos, palpita-me descompassado no peito procurando o acerto à música ao longe do bandoneon gemido na diagonal entre mãos apertado, apuro ouvido, agarro melenas e sustenho respiração.
Puxa-me manso e entala entre as minhas a perna vestida de alpaca onde sinto os músculos retesados para o inicio do Tango. Mão à sela das costas e a outra ao enclave do sentir, olhos fechados que o caminho é seduzir.
Há quanto tempo tu não vinhas, há quanto tempo não aparecias nas minhas letras.
Que saudades eu tinha de ti.
 
 

domingo, 9 de novembro de 2014

Foi num dia de piquenique...



- Estou?
- Sim. Queres saír, arejar, tomar um café, conversarmos, não dizermos nada?
- Estou às voltas com um trabalho que me está a fazer caír o cabelo... não posso saír!
- Ao Domingo?! Tu sabes que dia é hoje?
- Domingo, acabaste de dizer, e eu acabei de dizer que estou presa a um trabalho forçado!
- Não.
- Não?
- Hoje é dia de piquenique.
- A hora de almoço já se foi... isso tem cheiro de adivinha...
- Não é charada, não é adivinhação. Põe água ao lume, eu faço o mesmo deste lado da linha e sobretudo não me desligues o telefone!
- E o meu trabalho? Tem dó de mim...
- Anda lá, chove a potes, tu que gostas de chuva não me pões a andar na rua, eu só te quero ouvir, nada mais!
- Está bem, conta lá. Uma vez que seja, és tu que me contas histórias.
- E o café?
- Quase pronto!
- Então aqui vamos:
 
É dia quente, sol a condizer com o céu azul, ninguém quer ficar em casa, seja para almoçar, seja para passear, todos vão para a rua, o ar apetece, é macio e doce. As famílias pegam numa cesta e carregam pão, presunto e compota bastante que dê para as crianças se entreterem depois da correria e não reclamarem que têm fome. Ao final da tarde regressa-se e cansados, hão-de conversar sobre o belo dia que tiveram, quem encontraram, provavelmente planos que fizeram já para o próximo Domingo. Pelo menos até o tempo permitir e se mantiver assim tão agradável.
 
- Palavra que gostava de te ver a cara agora... Onde é que queres chegar?
- Aí.
- Onde?
- Exactamente onde disseste. Veres a minha cara.
- Cada vez percebo menos...
- Ouve. Ouve com atenção. Afinal é só isso que podes fazer.
 
Só que no regresso a casa encontram o caminho fechado. A cidade onde moram tinha sido dividida em duas e quem a tinha atravessado umas horas antes, de sorriso aberto para fora dos seus limites não voltou a conseguir fazer o percurso de volta: Militares tinham erguido uma vedação em arame formando uma cercania à cidade para defender os seus habitantes de perigos tão grandes, tão grandes que ninguém os vía. As casas ficaram por lá e os que voltavam de cestas vazias do piquenique ficaram do lado de cá.
 
- Como nós...
- Como Berlim.
- Como Berlim há 25 anos atrás.

sábado, 8 de novembro de 2014

Campo de Palavras (17)



Na medida do crescer tornou-se-me mais grato usá-las porque do aprender outros sabores se extraiem no gosto da variedade do seu consumo, nem sempre o imediato é o comum, por vezes o imediato é o simples e tão só desejado e o bastante para se dizer e fazer entender, nada mais necessário no atavio de outras a fazerem acompanhamento.
 
Porém do maduro, chega-me apertado o valor e a este cada vez mais por ver nas palavras sopros que as levam como se nunca as tivessem proferido, que de sinónimos e antónimos cada vez menos se cuida existirem, preciosismos da língua a que uns pouquíssimos se ligam para complicar a vida a uns quantos.
 
Talvez o meu problema seja por estar fora de moda, aliás nunca estive, nem nunca fui em correntes e nem sou a favor do acordo ortográfico, a minha identidade é lusa, é escrever o que bate no peito e preservar o carácter do verbo enquanto ele se manifestar.

sexta-feira, 7 de novembro de 2014

Passos



 
É noite, mesmo que os candeeiros de rua brinquem com a memória da luz e as sombras se assustem consigo mesmas, vou descendo a ouvir os meus passos atrás de mim a empurrarem-me calçada abaixo, acendo a tradição no cigarro de paladar único até tocar as chaves de casa, fim de percurso, fim de horas, final da semana, como se isso importasse, daqui até ali vai um mundo e a labareda que alumia as mãos em concha para matar vício ou cumprir o ritual da boca faz parar quem me persegue, espera por mim e me conhece, talvez não se dê a estes hábitos ou então me peça do mesmo e hoje perde a vergonha,
- Tem um cigarro?
Tenho, mas não sou de dar ou até sou mas tenho de olhar nos olhos quem bate os tacões atrás dos meus e me imita e conforme a luz dos candeeiros lhe ilumine a cor, assim lhe cedo o meu fumo.
- Era o meu último.
É noite, um dos candeeiros cansou-se, a lâmpada fundida dorme e deixa que as sombras das árvores trabalhem, meia-dúzia de passos até casa, um último bafo, calco na ponta do pé a ponta incandescente e silenciosa do cigarro.