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terça-feira, 30 de junho de 2015

Instantâneo - Episódio oito



Pergunta: Se é instantâneo não devería de imediato saber bem, saír bem, escrever bem?
Mergulho de nariz no aroma da caneca, as condicionais sempre travam os sentidos, fecho os olhos e faço por esquecer que se trata de uma colher de pó sem os atavios da preparação a preceito, inalo forte e aguardo o estalo da imagem, palavras como forte, encorpado, vigoroso, robusto, reconfortante, procuro, procuro e não acho, página em branco e ainda de olhos cerrados na espera que uma frase se desate à descoberta do olfacto, nada acho, nem palavras nem sentidos, o aparo da caneta seca ao ar livre da mesma forma que o meu nariz se recusa a experimentar água quente em tons de castanho e creme, suponho que este café de brincar me leva o jeito de escrever ou então a mão que escreve se ajeita mais a instantâneos, desajustes irrevelados até agora quando tudo parecia um ritual perfeito.
Molho a ponta da caneta na caneca e desenho uma chávena na folha imaculada, linhas entre um borrão acastanhado e a pureza do azul-china libertam a [necessidade de] resposta, nem tudo tem perguntas de se fazer, nem tudo, o condicional a arrefecer.

segunda-feira, 29 de junho de 2015

Mais ninguém (?)



Vigio o meu lado, branco de névoas por calor a vir ou desejos de lá chegar rápido ou por longe a vista nem tanto aperfeiçoar limites ou por sabê-lo na margem querida a estória de imagens conta palavras mágicas em tons fantasmagóricos e apenas alcançáveis aos libertos de coração.
Mais ninguém a ver como eu.
Um traço de água cinza, dois altos pardos, nada mais.
Queima-se o calor na ponta do cigarro, os pulmões ardem à vontade o ar inalado e eu não insisto o que não se pode ver, demasiado quente para batalhas de atravessar, os olhos preferem chão onde se amontoam beatas tisnadas em margens desviadas pelo vento do final de dia, ainda agora tão manhã e evitam sonhar, viajar até ao véu, vê comigo, esforço de segunda-feira mal-disposta não há estória de tons fantásticos que erga o rosto e nem à mão ao queixo na ajuda, vê comigo, os lábios se entreabrem de surpresa, um rio verde-azul, uma mulher deitada de lado, anca arredondada e seios a Lisboa, só apertam filtros de cigarros perto de um fim, cimentos.
Vigio o meu lado, mais ninguém o vê como eu, cada um respira por si. 

 

domingo, 28 de junho de 2015

Vida(S)



De verdade ou de mentira pouco interessa, aliás é o que nada importa mesmo, basta que se queira, que se escreva e fica designado, acontecido, porque outros hão-de estar e sentir, gostar e amar, fechar a porta e não regressar para não sentir a amargura dos sons na memória sem nunca ali terem estado, contarem para outros também que um dia conheceram alguém especial, naquele dia, um dia especial porque foi o dia em que leram as palavras de outros e entraram nos cómodos dessas páginas, silenciosamente, a saberem onde as coisas eram guardadas sem nunca lá terem entrado, e que nesse dia que podía ter sido tão comum como outro mudou a vida, não de uma forma que se visse pelos outros mas secretamente, tranquilamente e no entanto, a partir desse dia, ficaram sempre à espera de algo fantástico, os olhos na porta adiantando-se à entrada da personagem de mão aberta à sua ou apenas um recado num bilhete simples que ninguém entendería. Verdade ou mentira, não interessa, o livro arrumado mas à mão é a chave de entrada, no silêncio escuta a vida das folhas juntas, sabe que faz parte como eles da sua.

sábado, 27 de junho de 2015

O Doutor


 
A maior parte das vezes tomava o comboio que partía da vila e fazia o percurso ao longo das praias largando os veraneantes, um toque de sino puxado por cabo fino e o transporte estancava num soluço. Nunca saía, quando chegava ao final de linha mudava o encosto para o sentido em que havia de seguir, sentava-se no último lugar, traçava a perna e sentía-se feliz.
Não era um homem de praia, era um homem de olhar o areal, o mar, as gentes, o colorido, os sons, de os guardar nos olhos e quando de regresso à vila acomodava-se na esplanada do costume até ao final da manhã a ler o jornal, molhando a garganta no gin tónico, mais tónico que alcoólico.
Vestía sempre de branco ou de azul escuro e nunca de outras cores, cumprimentava sem som e num gesto de cabeça, devolvía palavras curtas de agradecimento acompanhadas de um sorriso claro e por algum motivo inexplicável era conhecido por doutor, referência que nunca contrariou ou que alongou com o sobrenome ou até o de baptismo.
Durante o mês de Junho o Dr. era uma figura da vila.
E a vila, o pequeno combóio, o areal dourado, o som das ondas a morrerem junto aos gritos de alegria dos banhistas arrepiados e de pele bronzeada eram o bálsamo de vida para o Dr.. Todas as cores de toalhas estendidas à espera dos seus ocupantes ou os baldes esquecidos das crianças enchiam a sua mente de uma felicidade sem palavras, comovíam-no. O mar dava-lhe um nó na garganta, tomava um gole do gin tónico e escondia a emoção por detrás do jornal aberto.
Um ano não veio em Junho, esperaram por ele no mês seguinte, algum transtorno de maior, mas nada. Nem nesse ano nem nos outros. E depois de algum tempo, o combóio deixou de ser lucrativo e parou de vez. E num Inverno violento vieram ondas fortes e altas que galgaram as dunas e derrubaram café e esplanada e não houve mais ânimo nem dinheiro para pôr tudo de pé outra vez.

sexta-feira, 26 de junho de 2015

Morte lenta



Tanto ir e regressar, tanto falar, tanto calar, tanta semana, tamanho cansaço que já nem reconheço nele a fartura dos dias, um a seguir ao outro, aonde é que começou o que detesto e me meti na fila de prato na mão à espera do bocado, tanto pior que nem fome há, um enjoo de voltas que recomeçam onde findam e me armadilho presa na rotina sem conseguir dar o pulo para saír, digo cansaços e amanhã encaro como o diferente, adiamentos de consolo que empurro com a barriga dilatada enganando fastios na parecença saciada da coisa mal digerida, tudo igual em todos os dias, eu em todos a mesma de todos os dias, passos que me usam para ir e de regresso guardam-se para voltar a ir, emaranho-me no casulo e confundo dores com cansaço, cansaço com sonos, olhos cerrados com sonhos que desejo inventar e não consigo trazer, um pesadelo que houvesse para estremecer e perguntar-me dos dias e das noites por dormir e da falta destes, haver espaço no pouco espaço da rotina de tanta semana amachucada entre amanhã diferente. Tapo os números do calendário com uma folha de papel branca e todos os dias de promessa desaparecem. É hoje que rasgo este invólucro e me retomo o poder.

quinta-feira, 25 de junho de 2015

Segredinhos



À semelhança de alguns jogos cuja mecânica foi concebida para se perder também assim há segredos que foram inventados para se darem a conhecer.
Ou seja, não são segredos.
Mas têm o cunho e a insinuação ondulosa no passar da informação de um secretismo como se o fossem, fermentam-se como coisa importante e embrulham-se em palavras-chave acompanhadas do gesto cuidadoso e preocupado de quem os passa e enganando quem os recebe - quase sempre selecionado como veio transmissor - que é coisa séria no tom velado da escolha, o compromisso do silêncio, o guardar só para si e os perigos da disseminação.
Claro que este tipo de segredos nasceu absolutamente para ser revelado. Não em voz alta e às claras, mas puxado pelo cotovelo no cochicho da confiança única do seguinte, que por sua vez o há-de repetir a um outro e este outro a mais um e assim por diante, até que muitos se sintam exclusivos na sua publica tribo formando o grupo dos que sabem e o outro, o dos ignorantes dos segredos, que nunca sabem nada porque não são dignos de um depósito tão intenso.

quarta-feira, 24 de junho de 2015

O bater do coração (vinte e sete)



Se me lembro de ti e já não estás perto, mesmo quando passo na rua e insistentemente procuro que venhas à janela imaginando que a qualquer momento possas assomar e chamar-me, mesmo racionalmente e firme nos pés na terra saber ser impossível, esperar sempre e sempre, ainda assim esticar o pescoço e disfarçar na resposta outra qualquer coisa que não a verdade de te ver, repito, mesmo assim em todos esses instantes o coração acelera-me, digo para mim que é hoje que te vejo e depois digo não quando o segundo já passou e o segundo não é porque não chega a ser, é apenas o insuflar do peito.
Concluo então que o bater do coração é falso, ou tão verdadeiro quanto os segundos e se assim for, como poderei eu estar viva a senti-lo por instantes, a bombear apenas no relance em que a ansiedade do desejo é que apareças e me chames da janela do 2º andar em que a certeza é tão mais cruel que o sentimento da vontade do teu ver-te, não bate, recorda o que era bater quando estávamos os dois e eu te visitava ou tu vinhas e discutíamos, ou ruas eram apenas adereços de vontades unas para aproximar a ardência do desejo comum.
Lembro-me de ti. E de ti e de ti. E de cada recordar, sou eu fora de mim com o coração nas mãos a vê-lo bater, a pedir ao tempo segundos, mais uns segundos de vida.


terça-feira, 23 de junho de 2015

Os brincos



Ela caminhava sedenta, o calor a morder o pescoço nu exibido do cabelo arrepiado em rabo-de-cavalo, ora descendo o passeio ora subindo, evitando os encontrões dos turistas e as saídas do emprego às seis da tarde. Beberricava da garrafa de água, mole da mão quente que apertava mais o desejo de frescura do que a sede matada no vicio de levar à boca os lábios molhados.
Os olhos despertaram-se à cor variada de frutas expostas para o passeio atravessado, mercearia tradicional, tudo dispostamente arrumado em pirâmide, os preços espetados como bandeira na Lua conquistada, meias-frutas abertas a mostrarem qualidades num regalo de perfumes, uma frescura a vir de dentro do estabelecimento, convite do dono perto da balança, O que vai ser freguesa?
A freguesa quería tudo: Uma talhada de melão amarelo sorridente ou um gomo de polpa de nectarina, talvez uns figos de capa roxa escachada ou não, o que vai mesmo são uns bagos de uva preta e luzidia! E as peras? Granulosas e doces? E as ácidas maçãs riscadinhas a puxarem à saliva? Mas a melancia cristalina e de castelo carnudo só de olhar limpa a sede!
Aparece o dono com um par de cerejas pendurado na orelha, Oh Dona, olhe que destas mais ninguém tem! É mel puro! Pois que seja, venham de lá os carolos vermelhos que um desses refresca qualquer um!
E logo ali atirou-se aos frutos na mão cheia e caroços na bochecha, olhos velados, o calor esvanecido, sentada no banco do dono da mercearia a esquecer o mosquedo e algumas abelhas que tentavam a sorte, pernas de turistas para cá e para lá, trânsito danado de seis da tarde.
O último par gémeo de cerejas fê-lo de imitação e pendurou na orelha, lembrou-se do avô, pagou e partiu.
Na boca rebolou o caroço como fazía em criança até ficar com a boca áspera e ignorou os olhares que lhe deitaram a um estranho par de brincos.

segunda-feira, 22 de junho de 2015

Cargos, cargas


 
Outra. Perco a conta. Talvez nunca tenha contado e dessa maneira é mentira que tenha perdido a conta, maquinalmente as coisas fazem-se, faço-me, empurro-me porta fora e lá vou eu, outra ficando por dentro a ver-me ir e a que vai nem interessa se vai bem ou descontente, tem de ir. Ponto. Ao menos que vá pronta, arranjada, os outros contam com isso e estão habituados a esse desempenho, a uma figura assim e assado, compõe-se assim e assado e manda-se, nada de mais nem de menos, a quantidade que esperam é a que recebem, outra poderia despertar no descuido alguma estranheza de não ser a mesma ou até desconfiança de ser a mesma. Que o é não sendo. Já perdi a conta. A fragilidade com que se enumeram as que são, quantos são, a que vai e a que fica, a que ajeita e a que cuida e educa, os venenosos, a que se desdobra e enxota outros e a que rabisca podem parecer a mesma, os mesmos, ter a mesma marca, são tonalidades diferentes mas não compete a mim diferenciá-los, a outra que os distinga que eu não estou para isso, só tenho de mandar a outra e conferir se ela vai para fora como deve ser e não sai dos eixos e manter tudo em ordem enquanto fico por dentro, os outros e as outras que se tratem, amanhem-se, nem eu tenho quem me ajude, já perdi a conta às vezes que o pedi. Pelo menos que me visse livre desta tarefa ingrata de ser eu a mandar a outra a ir embora.


domingo, 21 de junho de 2015

[Inventar] Chuvas de Verão




Para limpar todas as poeiras e afastar sujidades de fim de estação, o Estio chegou-se de lavado, ainda de cabelos molhados a pingarem pelo tapete da terra, uma imagem que refrescou os olhos depois de tanto destempero de calor a adivinhar meses antigos em que cada um sabía o seu tempo, o seu lugar.
Mas hoje e para desconcerto dos homens, apresentou-se logo no primeiro dia disfarçado de outonalidades, um beiço caído para quem segura o bilhete de férias e olha os céus adivinhando a melhoria no rasgo aberto que outra coisa não mostra que pingas de chuva preciosa, engrossando a quem insiste e profere que não é sitio dela, hoje Verão, hoje sol e calor e só azul de matar olhos, e vai que molha e manda e desta natureza não há homem que comande destinos de estações a preceito.
Chuvas de Verão.
De um dia primeiro para marcar de cruz e lembrar e contar depois como estória feliz, recordo-me como tudo era simples naquele tempo, as estações eram de frio e de calor, ou chamava-se Verão quando havia calor e havia chuva e todos vinham à rua, ou houve um tempo em que as estações tiveram um nome e uma delas era o Verão e costumava fazer calor, de quando vez chovía, um certo ano há muito tempo atrás a água apareceu logo no primeiro dia...
Porque se o Verão nos prende em casa, muito do que se pode fazer é inventar.
 
 

sábado, 20 de junho de 2015

Leituras



Calmaria preciso, deito-me alongada sem o receio de me notarem diferente, aqui todos diferentes nesta igualdade sem olhares de soslaio, quase só, os joelhos deixo-os ao trabalho de quando me apetecer voltar à posição sentada, outra coisa não serão senão ferramentas de brincar, balançar pernas abaixo e ver a biqueira dos sapatos, a traquinice de os lançar e dedos nús abrandar movimento até à aquietação, reservo quase estátua a mim, respiro. Suspiro, deito-me alongada nas páginas que alguém tão bem desenhou, só, nenhum de eus à minha volta a precisar de tomar espaço e eu a pedir ar e sossego e independência para estes instantes que nem são meus, letras de outros, palavras belas de outros para mim, frases completas que me completam quando sorvidas na calmaria que me alaga como se veias me tornassem a pulsos. Marco a página lida e bendigo quem assim tão genialmente me seduz.

sexta-feira, 19 de junho de 2015

Corredores


 
Já despi, já vesti e voltei a despir, tudo como se o ciclo do dia e da noite tivessem começo e morte na minha mão fechada, uma vontade que não segue adiante só os atropelos de anos a quererem chegar primeiro à boca em palavras que não são ditas, memórias de letras contra dentes que esmago à medida que faço corredores para lá e para cá apertada pelo caminho que conheço de cor e pelos que me visitam a meter conversa, vão-se, já me bastam as paredes, e destas saíem como portas escancaradas todos os que me conhecem e outros que não lembrava mais visitando sem cerimónia casa alheia fazendo da minha moradia de ficar. E eu sem roupa. Na alma. Esta noite de mão aberta, a fechada perdeu a força de segurar a vontade de dormir e os latejos do coração subiram sem precisar da ajuda de elevadores até às recordações mais escondidas. Dói. Fazem de conta que são dores de cabeça, enxaquecas, dores de um corpo que já nem sequer é de minha pertença, despido vagueia pelo corredor a responder a visitas desavergonhadas que não se escondem de me olhar desnuda e aproveitam, fazem perguntas à alma, porque não dormes, não sei, que te apoquenta, não sei, não sabes nada.

quinta-feira, 18 de junho de 2015

Inovar renovando (?)


 
 
Inovar renovando, diz-se que já tudo foi inventado apenas se está ajeitando às novas tecnologias o que foi descoberto para trás, e nesta recuperação do passado aproveitam-se os vintages, realça-se o pitoresco do envelhecido, reforça-se a patine dos anos e vende-se a idéia como testada mas muito melhor agora sem os malefícios dos materiais tóxicos usados na invenção primeira.
Dou comigo em déjà vu e pergunto-me se são partidas da cabeça ou se estarei à la mode mas perante a resposta dos quantos anos tens tenho cem que há cem anos fazem e os risos que desta troca se libertam e as consequências dos diálogos pós, levam-me sempre a duvidar da renovação, porque as palavras corridas na frases deixam os outros mudos como desconhecedores da língua que nos dá a bandeira e perguntam, perguntam, três vezes e mais que idioma é este com tão bizarro verbo que falo.
Das escolas aprenderam o mesmo que eu, a tempos diferentes que eu, não ouviram falar de coisas por inúteis que foram e talvez que concorde com algumas mas do falar, da língua que têm na boca como sabor conservo-me céptica, franzo-me na ausência do conhecimento da palavra, do sinónimo, da escrita, do erro, das abreviaturas encaixotadas que significam frases como amo-te, quero-te, preciso de ti, falam de nós e da vida e do futuro em sinais conjugados que transferem para a oralidade, poupam-se à articulação.
À memória salta-me um maço de cartas atadas por uma fita de cetim, falo delas. Ácaros, dizem, alguns nunca receberam. Prometo escrever-lhes uma. Alguém diz que o faça por email.

quarta-feira, 17 de junho de 2015

Discursos que são cuspo



Escutar palavras. Transformar palavras em imagens. Fazer destas imagens uma rua de saída e por aí escapar sem ser achado, ouvir os passos de procura e as vozes perguntando para onde foi? Rir baixinho acobertado pela noite e pensar só voltar quando decidir que o quer porque quer, deixá-los procurarem, perderem a cabeça a dar voltas como alguém se pode escapulir debaixo do nariz, uma figura de tolos.
É isso que são, uns tolos. Porque não sabem que as palavras são vielas de escape, são noites escuras que vestem do melhor disfarce à vista desarmada como um camaleão que se balança na folha verde agitada pela brisa.
Não sabem que escutar palavras é transformá-las nas imagens de arremesso com que as recebem, paredes de vidro, uma transparência que esmurra a cara e não deixa passar para o lado de cá, não, este lado meu, esse aí o de quem só cospe sons, na verdade eu nem estou mais aqui.

terça-feira, 16 de junho de 2015

Caleidoscópio



 
Buscam, rebuscam, escarafuncham, não porque consigam ver mais além, mas a miopia condiciona-lhes a distância do geral ou a pressa limita-os no detalhe precisado para a leitura de um todo ou até de muitas partes se não o bocado inteiro e desta forma, não é a imaginação nem a procura interessada que os leva a afastar e a chegar perto para a descoberta de novos formatos, novas cores, outros desenhos, o deslumbramento da conquista. O que se prisma é sempre o mesmo, o que se obtém é o reflexo da mão entendida ao procurar chegar lá e esse é que é o momento mágico, porque se nada se tentar por mínimo que seja, são apenas missangas de vidro imóveis, como dois olhos que se colocaram num morto a fazer de conta que ainda estão abertos ao mundo a espantarem-se de tanta comoção por neles se dedicarem.

segunda-feira, 15 de junho de 2015

O livro negro dos homens (dezoito)


 
Há pessoas que ao longo de toda a sua vida cumprem, executam, sem proferir um ruído ao que lhes encomendam. Sempre foram assim desde a verde idade e desta forma se mantém, inalteráveis, inaudíveis, a maior parte das vezes, o rosto fechado ou aparentemente sem expressão de agrado ou reprovação pelo comando que lhes é transmitido. Param para receber a ordem e partem para dar cumprimento sem discussão.
Durante muito tempo este tipo de gente exasperou-me, revoltou-me, questionei-os, cheguei a agarrar-lhes os braços e a sacudir-lhos esperançosa que despertassem para a vida mas a mortalidade estava lá, apenas não se incomodavam, não queríam saber, eu incluída. A certa altura ganhei-lhes asco, achava-os colaboracionistas e fiz o que era preciso para me afastar do que me fazia mal.
Claro que a vida impele a que a convivência se faça também com estes e assim sendo, de nada me valeu, pois de quando em vez, lá estava eu na presença de um e outro e na força das circunstâncias passei a ignorar. Mas essa distância deu-me igualmente a perceber como eram apreciados!
E quanto.
Sem o desacato da interrogação nada a opôr, logo tudo sobre os eixos!
É que esta conduta não se desenrolava só a nível profissional, mesmo sendo servidos com um prato de comida que lhes causasse desgosto eram incapazes de demonstrar desafecto e até noutros exemplos achei esta falta do dizer de si, que acabei a perguntar-me o que lhes faltaría dentro deles.


 
(Lx.Set/2011)

domingo, 14 de junho de 2015

Um dia na praia


 
A melhor hora para chegar à praia é quando ainda se reconhece nos nossos passos chutados de chinelos as marcas das patinhas das gaivotas, um trilho que se segue à procura de alguma descoberta formidável no ondeado do caminho alto e baixo, baixo e alto, curvas que obrigam os olhos a procurar a pista seguinte da pegada. Na verdade, o que depressa se discorre é que andar de pés nus é muito menos cansativo que trazer a reboque pazadas de areia que se catapultam em direcção ao traseiro e a sensação do quente na superfície da planta do pé ao pousar a contraste com a frescura do escondido quando os dedinhos se enterram na areia, não tem idade para explicar tal prazer.
É a praia.
E é chegar e ficar feito estaca a olhar o mar. Como se entendidos nesse estado liquido toda a nossa essência nos fosse revelada, aquietada, varridos os traumas, problemas, achadas as soluções mirabolantes e ali tão à mão de uma vista, apenas escondidos pela pala do braço a defender o astro ou outro invejoso que queira desvendar o nosso segredo. Nosso, meu.
Vai que num instante desperta-se, arrancam-se toalhas da cor do arco-íris, sacodem-se como velas de nau, esticam-se, fazem-se montinhos a jeito de almofada, orienta-se a aresta do raio ao bronzeado melhor, tiram-se roupas, pelam-se cascas de armadura de humanidades ferrugentas, dá-se brilho à derme com aroma de coco, baunilha, jasmim e enxotam-se insectos que tentam debicar a moda do óleo havaiano em trópicos de jardins à beira-mar plantados e na euforia de tanto movimento sai a corridinha para a coragem do mergulho.
Gritinhos, arrepios, joelhos apertados, ombros a pescoço, duas mãos de concha e um mar pelo rosto, conta-se uma, contam-se duas e é à terceira que tem de ser, é a praia, é o riso, é o grito solto, ai que fria, mas nem tanto, afinal nem nada, ai que boa, vai já outro, toma-se-lhe o gosto e rápido esquecido de dois braços e pernas apetece-lhe o mesmo que aos patos, só a cabeça é que fica de fora, mas lá no fundo tudo é uma lente e de sereias é que se contam estórias, fura as águas, é pirolito.
Agora é tudo sereno.
A toalha doce, os pingos que secam no umbigo, os estalos dos ouvidos e que fazem ouvir ao longe o pregão do gelado, da língua da sogra, da bola de Berlim. De vozes familiares que não se sabe de onde vêm, longe, longe e embalam, um colo delicado que abraça e pousa de novo na toalha. Um quase frio bom, um olhar em frente, saudades, vontade de voltar sem saber onde, joelhos a peito a segurar o coração, em que pensas?
Agarra-se os chinelos e não se olha para trás.
As gaivotas têm destes segredos, não adianta segui-las.
 
 

sábado, 13 de junho de 2015

Manhã (de Fernando)



As cortinas embalam levemente pela aragem fresca, sabe-me bem esta solidão de ruídos em que me consigo ouvir esfregar a pele quando o sangue acelera os anticorpos e os olhos desviados da atenção procuram devaneios em objectos inanimados, a caneta na boca é adereço, tão pouco lhe sei o gosto, é mais o jeito do macio no lábio e a contemplação perdida em palavras também perdidas como peças de um puzzle escapado da caixa, um dia alinho-te, hoje o verbo constrói-se como de tantas outras, lembro Fernando e a arca de mil papéis, um tesouro deixado para ser encontrado pergunto-me e as cortinas enfunam, parabéns digo muda, haveria de escrever sobre ti, de novo, outra vez, não, estas conversas são nossas, e não encaixo peças que se arredondam em cantos, outros que me ocupam a secretária, tampo, braços da cadeira, quase me enxotam, lá se vai o silêncio, divagações sobre uma arca que se fecha devagar sem ao menos eu ter o vislumbre do seu forro.
As cortinas imóveis vedam a claridade forte de um dia de sol. Metamorfose de uma folha branca, anticorpos de escrita feita.

sexta-feira, 12 de junho de 2015

Bem ou mal ou conforme



É assim mesmo, olhado ninguém vê nada e é nisso tudo o que mais importa do nada ver ou tudo ver ou tudo achar que nada se encontra, que tudo está bem, ou se menos bem, um pouco de pó, sacode-se e diz-se óptimo e está tudo fantástico, para quê questõezinhas sobre estar ou não estar bem, afinal o que olha e vê é que está bem e vai-se a ver hoje em dia quem está realmente bem, quem pode afirmar-se de consciência plena estar bem ou melhor, quem pode duvidar de estar mal ou bem quando outros estão bem piores? Esta mania egoísta de só nos olharmos, ai ai, é assim mesmo, olhando não se vê nada, só se vê composto, por dentro é só buraco de dor ou de tanto pensar porquê e achar no achamento de cousa nenhuma que seja bem ou mal, resposta para tanta indecisão que nem chega a ser demanda, um cansaço.
É mesmo isso, melhor nem dar a olhar. Fica a surpresa das partidas, a revelação de quando se foi e na boca aberta dos outros o espanto de que nunca se tinham apercebido, nunca tinham visto. Pois não.
Melhor continuar a ir bem. Ou mal. Conforme queiram ver. Ou não.
Somos todos estranhos maravilhosos a respirar o mesmo ar mas não sabemos nada sobre quem somos, não olhamos para quem somos, cansamo-nos dos demais a olhar para nós mesmos e desculpamo-nos em etiquetas do privado para não perder tempo a pensar.
 
 

quinta-feira, 11 de junho de 2015

Engulo (palavras)



O pé batido e a palavra secreta são do palco, esses ficaram na memória. Agora aguento outros palcos sem a praxe porque os aguento e mesmo de coreografia sabida na ponta da língua foi-se o encanto do prazer, demasiadas repetições sem a surpresa da composição inovadora. Mas a vida cravou-me a mania de outras superstições, tiques, cuidados que observo porque não arrisco passar sem eles, uma lembrança colada nas costas da mão a dizer não faças, não leves, não vás. Riem-se de mim. Deixá-los. Riem-se da minha aversão aos anos ímpares, à minha tendenciosa visão azarenta e à falta de sustento na explicação quando calo palavras. Bastava contar-lhes que todos me morreram nesses anos mas não quero, guardo-os no meu sofrer e entrego o riso à coincidência, dou-lhes as quintas-feiras do boi, dia dos meus mortos e das pérolas verdadeiramente frias que nunca ponho nesse dia em memória da voz que me trouxe a noticia da minha mãe, engulo as cores vermelhas que usava e o colar emprestado dela nesse dia e disfarço com um pé batido e uma palavra secreta. Danço num palco antigo e não há dor que me pegue.

quarta-feira, 10 de junho de 2015

O espaço do tempo (a ocupar-me)


 
Estaciono-me onde as ideias permitem, a verdade é que isto é uma grande mentira, as ideias não me deixam parar, uma valsa sem os três tempos clássicos, 123-1, 231-23 e rodopia, nada é como dantes e nem as ideias são a última apresentada, água é o mais semelhante, câmbios e espaços que procuram alagar onde couberem.
Estaciono o corpo e permito o pensamento evoluír, mais verdade, mais corpo, tão mais belo se torna este invólucro na felicidade das ideias terem tempo de chegar e mudarem e transformarem-se em gestos de dedos, mão aberta a contar linhas ganhas no destino, ainda acredito? e passo o dedo da outra contrária a sulcar imagens adivinhando onde ganhei esta ruga de caminhos aconchegados a um monte de pensamentos recorrentes e renovados como águas que conheço e afinal tão novas.
Escondo palmas.
Fecho os olhos, danço inebriada num século perdido uma valsa, a minha mão na de alguém que decerto devo ter amado mas não recordo.
São os segredos que se estacionam por dentro de mim.

terça-feira, 9 de junho de 2015

Portas & Janelas - Esboço nº 19



Por vezes a salvação resta tão só por dentro, na inspiração das palavras mexidas entre língua e dentes, mudas pelo próprio, uma estória contada para entreter tempo ou evitar o salto para o buraco, é desta vez que escapo ou é desta vez que escapo, para onde, para onde, e a pergunta acaba a ser respondida nesse fio dos olhos a perpassar a parede, a janela fechada, a porta batida que devería estar aberta, planos a um só plano que se distorcem e decompõem pela medida do verbo.
Sem que se pressinta o som a mão alcança o fecho e abre.
Estava fresco porque assim se quería, assim se desejava, um escuro mas não tão escuro que velasse a imagem no recorte do vestido branco, a cadeira, um espaldar de costas ligeiramente curvo pelo peso da emoção, frémitos, o desejo de um soluço na adivinha de uma lágrima fria no rosto escaldado.
Cá fora tanta luz.
Silêncio dentro da boca. A língua procura o filme na continuação, as mãos dadas a amachucarem o tecido do colo no disfarce da espera do discurso, primeiras palavras...
- Voltaste.
Talvez a devesse levantar e rodar para lhe ver a face. Ou então mantê-la assim, misteriosa, ele distante, fazê-la sofrer um pouco mais, a ele o papel de juíz, uma decisão agora, o poder das palavras a rolar entre dentes e língua, quase uma vingança. Mas o que deseja e o que desejava que tivesse acontecido era que nada tivesse acontecido. Pousa-lhe as mãos sobre os ombros brancos.
Sem que pressinta tudo volta à luz do dia. Ao momento do segundo estalar a hora exacta.
Olhou a janela, a porta fechada e seguiu caminho.
Na boca sentía um gosto de despedida.


(in Portas & Janelas, Agosto-2014)

Todas as fotografias da Colecção Portas & Janelas são da autoria de Eduardo Jorge Silva

segunda-feira, 8 de junho de 2015

Quando for grande vou ser livre



Não há roupa de homem que me assente, a pele encrespa-se ao contacto e mesmo a seda se transforma em asperezas de lima que arrepanham até ao cabelo se levantar como crista de electricidade pegada na recusa que outra cousa que nua, pele de pele, me vista unicamente sem vergonha da simplicidade do traje.
Liberdade, liberdades, quando for grande vou ser livre, que este crescer demora tanto a chegar, que esta verdade demora tanto a acontecer, que quanto mais avanço mais presa me encontro nas verdades que me impelem a calar e de tanto as quererem que eu as esqueça minguo, fico-me pequena à espera e aprisionada, uma à vez de papel na mão a aguardar que me chamem, sou eu agora?
Não há vez que me assente, este campo onde corro vestida de pele e de verdades de seda macia faz-me grande mas é caminho secreto e privado, não entra nele os que me mandam esquecer e ter cuidado.
Um dia destes, cresço para todos verem. Mas nesse dia, deixo de me importar com o jogo das mentiras porque serei finalmente livre.


domingo, 7 de junho de 2015

Empenho(s)



 
Depois de dias complicados sem direito a bónus e um tropeção (AH!Finalmente!) numa tranquilidade imposta por mim própria a quebrar o mau ritmo dos últimos tempos (já chega, vamos parar com isto!), jantar de sushi, saké, conversa boa (inteligente, diálogo), na minha mala o meu caderno encostadinho a um livro do Mia Couto emprestado por um amigo (adoro surpresas!) eis que se chega a este pedaço da semana que arrasto como uma corrente de condenado, que peso, que tormento e ainda este tanto de canícula para agravar a insuportável sensação do já se foi o que estava a ser tão bom, a brevidade do instante é o diabo.
Não há mal que nunca acabe nem bem que sempre fique.
Sem solução que não seja resolver-me, salvo-me.
Não acredito nas fés sem ser na do homem, a minha, visto as asas, subo ao caderno e de caneta em punho ataco a página em branco.
Não tenho memória a última vez que tinha feito uma sesta tão saborosa.

sábado, 6 de junho de 2015

Caixas [Esta face para cima]


 
Manias, perfeições, arrumação, lembrança, histórias, conversas, entardecer, desarrumação, correria, sózinha, recolha, recordações, caixas, arrumação, perfeições, manias, silêncio.
Todas estas palavras poderiam corresponder ao ciclo completo de um dia de arrumações, geralmente com o argumento de que a arrecadação tem tralha que não serve para nada nem a ninguém, ocupa espaço que daría serventia a coisas bem melhores. Sei o que me espera, sei o que vai acontecer, conheço-me, sei de cor as tralhas que não têm utilidade a não ser a mim e à minha alma, não pelas coisas mas pelo toque seja dos dedos seja dos olhos e do ressurgir das emoções na vivência lembrada dos instantes. Sei o desvendar das tampas de cartão de cada caixote onde se abrigam cadernos velhos, conchas apanhadas na Ilha do Farol ou na Zambujeira do Mar, Sesimbra, Figueira da Foz, por mim ou pelo Pai, bolotas de castanheiro e de eucalipto, as primeiras sapatilhas, a primeira prova escolar, o furador, crivador e bastidor da Mãe, renda de bilros inacabada de uma avó, a roca do meu irmão, cartas, muitas, tantas cartas de amor entre homens e mulheres. Sei que me hei-de perder a contar quem eram, a explicar o que faziam e o que disfarçavam numa carapaça aparente de frieza. Há-de ficar tardar e eu hei-de calar-me para falar apenas com as coisas que não fazem falta a ninguém e só ocupam espaço. Porque detesto coisas desarrumadas e o dia foi-se, arrumo tudo, componho tudo numa mania limpa de deixar espaço onde ele não existe porque por dentro de mim estas coisas que não fazem falta a ninguém são-me, e até mesmo daqueles que nunca senti o cheiro e apenas conheço a letra ou ouvi contar por outros que os conheceram fiquei a gostar deles e a desprezá-los, mas guardo tudo porque é tralha comprimida, acumuladora de alma. Hoje consegui apertá-la ainda um pouco mais. Perfeito.
O que é que deitaste fora?

sexta-feira, 5 de junho de 2015

Olhar com Vista sobre o Rio (24)



Já te cheira ufano a festança, nem margem tens de escolher, embora da outra o santinho te puxe a maré acolhedor. Entendo-te. Da minha, sento-me à beira, pés de molho, chapinho sorrisos e vejo turistas colherem ruidosos molduras de levar para casa em terras de bárbaro onde fumos de sardinha assada besuntam palavreados no grito pagão. Encantam-se.
 
Encanto-me sempre. Acolhes a cor do fogo que vai queimando os dias, bronzeias poemas e finges que não te importas, empurras o cacilheiro, manso, meigo, adormecidos os aprisionados à vida perdida na meninice que não lembram ou que emprestaram ao vizinho do lado ao passarem o jornal diário, talvez lhes tenham passado os sonhos, a mulher, os problemas, por agora nada, só a brisa fresca de ti, a paz por dentro, nem sabem.
 
Digo Tejo e nada digo, nada sei, engulo conchas de todos e alongo a vista para além de Belém.
 
 
(in Olhar com Vista sobre o Rio, 2012)

quinta-feira, 4 de junho de 2015

Penso-te (para te ter perto a mim)



És tu sim, porque outro me haveria de voar sobre a incomodação do lembrar tantas vezes sem te ouvir e ainda sim esforçar-me para nessa tentativa mágica que quanto mais te penso mais rápido voltas, apareces, dizes lembrei-me de ti que há tanto tempo não te ouço a voz, não estamos juntos e dizemos banalidades ou repetimos coisas já contadas e recontadas da última vez em que nos sujeitamos a ouvi-las de novo para evitar a verdade do medo sobre ser a última e derradeira vez, nunca há despedida nem encontro marcado, lembrei-me de ti e resolvi aparecer, um pedacinho que seja, afinal a nossa distância está medida entre dois dedos afastados, na verdade, verdade mesmo só nos conhecemos porque esses dedos seguram a caneta com que nos inventámos um dia.
Ainda assim, aparece, que gosto tanto de te ter perto de mim.

quarta-feira, 3 de junho de 2015

Contrariar [para ir ao lugar]



A estória do costume como uma pílula diária, tão pouco se aguarda uma resposta ou pelo menos que haja interesse no que se responda, pelo que poupo à sonoridade da minha articulação, poupo-me, lá porque o meu interlocutor não é os do costume não quer dizer que hoje seja diferente mais ainda que este gosta de se ouvir, pergunta se esteve bem, pede para lhe dizerem como é tão bom, emito um som indicador de inicio de conversa, talvez se adivinhe que eu vá responder mas sei que vou ser interrompida, assim espero, é manhã cedo e está demasiado calor, não gosto de falar pela manhã e sobretudo elogios a pedido e sobretudo adivinhar o final do filme e sobretudo falar para ser contrariada.
Porque será que tudo o que diga a este é sempre o contrário do que ele diga?
Já experimentei em dizer o contrário do que penso só para ele negar e assim acabamos por concordar sem ele saber. Retorcido este raciocínio. 
É uma viagem de palavras. Na boca dele. Com erros ortográficos. Vejo-lhe os "deia" pendurado entre dentes até penderem no lábio inferior e se estatelarem no chão. Mesmo que eu tente, porque começo a sentir-me sufocada de tanta patacoada dita, retorquir ou interpelar não tenho permissão porque não se cala, fala por cima de mim ou ignora, e agora estou oficialmente entupida porque zangada, apercebo-me da perda de tempo que é usar o verbo com certo tipo de pessoas que não sabe o que são as palavras, para que servem, a educação de o usar no tempo certo e o desperdício do desperdício das minhas explicações mudas faz-me suar pelo calor desmesurado, pela interrogação que me faço sobre o que terei feito para merecer tal sina e finalmente, a vontade que tenho de lhe dar uma pancada na cabeça a ver se alguma coisa vai ao lugar.

terça-feira, 2 de junho de 2015

Ponto final sem recuo



Foi uma frase curta. Daquelas afirmativas sem margem para dúvida e que deixam o ouvinte sem direito a retorquir, o pragmatismo do ponto final mesmo invisível na oralidade, impõe-se pelo solene do tom de voz e pela postura adoptada do físico. Fica-se sem palavras. Atordoado. Depois nega-se a si mesmo o que já se engoliu como veneno e não tem o retorno do expelir pois volta a queimar por duas vezes: Isso é mesmo verdade?
 
E o da noticia baixa os olhos, acena devagarinho e só depois repete é.
 
Foi uma frase curta mas que teve o dom de vir lá de tráz como o mar para ganhar força e arrastar, lambendo tudo o que é pertences de quem ao sol acha que a água não lhe toca e leva para dentro e fundo, perdendo irremediavelmente o que estava a salvo na areia quente. Tão perto da mão de alcançar.
 
Meia-dúzia de palavras a fazerem uma frase curta. Uma chapada na cara, um salto de cristo para o mar, belo, pleno e cheio, quase intuitivo na entrega da grandiosidade dos braços abertos à enormidade de um leito que clama e no instante do vácuo invisíveis mãos puxam o lençol de água descobrindo um nada, apoio seco, um ponto final sem recuo, uma frase curta para um momento que em tudo parecia ser glorioso.
 
  

segunda-feira, 1 de junho de 2015

Previsivelmente


 
Previsivelmente as noites encurtam-se (ainda mais) no inicio da semana útil, sempre foi assim e sempre (possivelmente) assim o será. Não quer isto dizer que o pontapé de saída se faça torto e a carranca assuste os demais ou pelo menos mais do que o costume. Todavia, o caiado da noite atirou-se para trabalhos de mão que não os de segurar a caneta mas literalmente o pincel, e melhor tería sido se do condicional tivesse passado à acção de galgar o escadote e mão no balde molhasse a imaginação na fertilidade com que a evolução despachada arrumou o cómodo pintado e decorado a novo.
Insisti que a veia me levasse noutra direcção. Até noutros sentidos. Mas as cores alagaram-me o cérebro, mancharam a almofada, o relógio espreitado pelas 3H20 e de blasfémia contra a palete e a insónia fiz a procissão de pé descalço - previsivelmente - até à cozinha: água, maçã, água, caminho inverso. Imaginei um pintor no quarto todo vestido de branco a pintar o quarto de branco, os móveis de branco, os gatos, o cão, eu. Nada mais restaria nesta paisagem para além dele senão branco e finalmente ele passaria com o pincel sobre si mesmo.
Não sei se foi o branco que engoliu as cores se tinha chegado a altura de adormecer.