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quinta-feira, 31 de julho de 2008

#(1)



Doem-me as articulações. De tanto flexão, extensão, compressão, tracção e outras dobras que me querem impôr na vénia forçada do cumprimento lustroso ou nanismo que me encolhe num segundo perante o dedo ameaçador de ter pisado o risco e me arranca metros na expectância de aguentar firme rotas de colisão sem pestanejar ao som do silvo a zunir junto às orelhas.


Plasticina. Esperam-me assim, moldável ao gosto e humores dos dias e das modas, dos homens e das mulheres, sorriso publicitário, cintura fina, fina e maleável de hula hoop, up, up, fwd, sempre para uma frente chacinada na infantaria recolhida a números.


Doem-me as vontades. As dos outros, calcifiquei as articulações e não me vergo mais.


1- Sinal usado na escrita médica para designar fracturas.

quarta-feira, 30 de julho de 2008

Verdadeiras histórias - Espelho sem imagem





continuação





- Sabes o que vês no espelho se a ele te mirares à meia-noite?
- Sei.
- Experimenta e vês o diabo!
- Já experimentei, tia Celeste!
Ela apertou os lábios finos e segurou-se à beirada do lavatório, sem resposta.
João apertou a torneira e estancou o jorro de água, passando-lhe a toalha turca.
- Sabe o que vi, tia Celeste?
- Tu desafias-me?
- Não. Já experimentou olhar-se ao espelho, tia Celeste?
- Mas o que é isto?! Olha que eu chego-te a roupa ao pelo! Fedelho insolente!
- Experimente! Agora! Vamos! Tem o espelho mesmo à sua frente!
- Pára! Maldito, pára com isso agora…não me faças isso… – e algumas lágrimas começaram a verter-se, a voz enfraquecida pela dor.
João segurou-a pelos ombros e tenaz, virou-a de frente para o espelho. Mas ela escondia a cabeça e gemia, as mãos trémulas seguras no lavatório. Então prendeu nas mãos a cabeça branca da tia-avó e obrigando-a a olhar em frente disse-lhe junto à orelha defeituosa:
- Veja! Veja o seu diabo! E ainda não é meia-noite, tia Celeste!
- Tu não sabes de nada! És um miúdo ranhoso e medroso, que se mete debaixo da cama! Tu não sabes nada da vida! Nada de nada!
- Sei que a tia é má e assustou-me muito quando eu era pequeno! É má tia Celeste! Má!
- Cala-te! Cala-te!
- É má e é por isso que ninguém gosta de si! Por ser tão má até o seu noivo a abandonou!
Celeste olhou para ele através do espelho, a boca aberta num esgar, os olhos a saírem das covas. As mãos de João continuavam a prender a cabeça da tia a par com a dele ligeiramente tombada sobre ela, que o Joãozinho pequenino de outrora tinha crescido muito, muito.
- Tu não queres saber…ninguém quer saber de mim… – e chorava baixinho, não como uma velha de muitos anos mas com uma voz doce, quase ciciada.
João não estava perceber o que se estava a passar e assustado recordou a história do diabo, libertando a tia Celeste e dando dois passos atrás.
Então, reflectida no espelho surgiu a imagem de uma rapariga morena, os olhos castanhos muito brilhantes, pescoço alto emoldurado por um cabelo longo e de aspecto sedoso, um sorriso aberto para receber das mãos de um homem um par de arrecadas em ouro e um beijo na testa junto à raiz do cabelo.
João aflito tentou sair da casa de banho mas a porta trancada manteve-o perante as imagens desfiadas no espelho pendurado por cima do lavatório. A tia Celeste mantinha-se amparada à beirada, velha, negra e chupada como sempre.
Só a figura de uma rapariga em vestido de noiva aparecia reflectida. Um ramo de pequeninas rosas brancas seguro ao peito começaram a murchar lentamente, pétalas caíram, o véu que a cobria toda engelhou-se, descobrindo no longo cabelo uma madeixa branca onde recebera um beijo, levado em pedaços por um vento súbito que fez apagar em escuridão as imagens.
A tia Celeste pegou na bengala e estilhaçou o espelho.
Depois virou-se para João e disse serena, como ele nunca a vira:
- Agora já sabes o que é ver o diabo.
E saiu, amparando-se na bengala e no peso dos anos de sofrimento e abandono.
João não sabia o que pensar, o que fazer, como agir a partir de agora, achou-se com um medo redobrado da tia Celeste e começou a convencer-se que ela era mesmo o diabo em forma de gente.
Voltou cauteloso à cozinha onde a tia Celeste havia retomado o crochet com a atitude de sempre.
Endireitou a cadeira que deixara tombada e sentou-se. Havia um silêncio violento no ar. João tossicou. A tia Celeste largou os trabalhos e cuidadosamente retirou a arrecada de ouro que lhe pendia no lóbulo esticado. Depois embrulhou-a num dos inúmeros trabalhos de crochet já feitos, rendado e minucioso e entregou-a a João.
- É para ti, já não preciso dela.
Ele mudo e temeroso.
- Ao fim destes anos todos, foste o único que pareceu não ter medo de mim. E foi também a primeira vez que chorei desde o dia do meu casamento, que nesse dia chorei muito, muito…
João engoliu em seco, apertando o embrulhinho na mão transpirada. A tia Celeste levantou-se e serviu-lhe um refresco.
- Há sete anos quando fui para as termas, encontrei-o novamente. Um velho…como eu. Mas podia passar uma eternidade que sempre havia de o reconhecer… – olhava a direito para João que não descolava os lábios do copo e bebía atentamente as palavras da tia Celeste.
- Ele não se lembrava de mim, não se recordava de mim…agora também já não tem importância. Arranquei a arrecada que ele me oferecera e deixei-a na portaria do hotel, para lha entregarem…
João arriscou a pergunta:
- Falou com ele, tia Celeste?
- Não. No dia que me deixou também não falou comigo.
Ela não disse mais nada.
Na manhã seguinte, a irmã estranhou que Celeste não havia meio de se levantar e foi bater à porta do quarto dela. Mas não obteve resposta. Insistiu e por fim resolveu entrar, dando com ela deitada em cima da cama por desfazer, um véu de noiva poisado sobre o rosto.
Assustou-se e chamou pelo nome de Celeste, tomou-lhe o pulso e não encontrou a veia a bater. Tomou um espelhinho de toillete e chegou-lho à boca mas nenhum bafo embaciou a sua imagem.





(in Verdadeiras Histórias, C.G.-31/01/2007)

terça-feira, 29 de julho de 2008

Acabou



Puxou a noite para as costas, acomodou-se, estava bem, as mãos preparadas, dentro de breves segundos escrevería adeus, não sería só um acto mental, um ganhar coragem para a atitude, sería mesmo em definitivo. Já tinha pensado que se não o fizesse assim de nenhuma outra forma o faría, era igual como quando fazía as contas da semana e constatava o dinheiro que lhe sobrava para o essencial, os legumes, o pão, o leite, nada de extras apenas o nutritivo e vital.

Pôs a data no topo à esquerda, linha abaixo o adjectivo, mas não lhe quería chamar querido pois já não o era, como podería? um preguiçoso isso sim, um cansaço contínuo em trabalhar, em fazer por, em dar-se, em ter vontade para, dizía-se diferente, doente por dentro, incompreendido numa luta abstracta a quem de um certo filósofo aprendera existencial.

Escreveu o nome dele, simplesmente.
E foi como abrir uma comporta, saíu tudo, alinhado e revoltoso, consciente e despegado daquela pele que se teme seja tocada de novo e reviva os momentos de riso e beijos e faça retroceder a decisão que se jurara não voltar atrás.

Dobrou a carta, pegou no envelope mas parou. Não merecía tamanho desvelo em guardá-la protegida, entregá-la-ía na mão dele. Desdobrou-a e releu-a, ouviu distintamente dentro do seu peito a sua própria voz a olhá-lo nos olhos e a dizer-lhe todas aquelas palavras.

Depois sorriu. Rasgou o papel em muitos pedaços e estes em bocadinhos ainda mais pequenos.
Bebeu um copo de água.
Ele bateu à porta como quando lhe apetecía aparecer. Ela abriu, olhou-o, repetiu o sorriso e fechou de novo a porta.

segunda-feira, 28 de julho de 2008

Criaturas




Há medos que não tenho. Aliás tenho medo de ter medo. Já houve um tempo em que tive medo do que não vía e imaginava. E passava a ser: eu dava-lhe forma, textura, movimentos. E criava-se no meu medo. Até lhe dava voz e alguns tinham nome. Mais à frente já era eu que os chamava, apoquentava-me não os saber. Mas não voltavam. Quando descobri que eu é que tinha essse poder e controle sobre eles uma estranha melancolia tomou-me, quase me desencantei e tive várias revelações a outros níveis. A magia do desconhecido esvanecía-se, aos poucos adensava-se outra névoa muito mais próxima do mundo real e dos homens. Mas também de outros que se descolaram de mim mesma numa insatisfação de sobreviverem sob o meu perfil e carácter, exigíam independência. Aquela sensação de saliva a mais e um arrepio no estomâgo ou na barriga ou nas costas regressou, agora completamente nomeada pelos sons das palavras, nada de tapar os olhos ou engolir o grito no disparo do coração. Lembrei-me dos medos mas isto é coisa diferente. Compliquei-me. Dantes era mais fácil, nem precisava de justificação e de lá até aqui encontro-me. No ser. Medo de não ser.




Nota: A imagem é de um tronco. Com muitos nós. Como muitos de nós, desdobrados como uma folha em que entornámos tinta e apertámos para o decalque da imagem na outra metade. Faz medo, não é?




Um beijo aos que sabem do que falo.

quinta-feira, 24 de julho de 2008

Verdadeiras Histórias- Espelho sem imagem


Continuação




- Sabes o que vês no espelho se a ele te mirares à meia-noite? – perguntou a tia-avó, sacudindo-o pelo crâneo.
Joãozinho fechou os olhos com força e mordeu a língua.
- Sabes? – insistia.
Ele tentou ficar surdo.
- Sabes? Experimenta e vês o diabo! – trovejou junto ao topo da cabeça.
Joãozinho conseguiu libertar-se e fugiu para o quarto, para debaixo da cama. Nem conseguia chorar, só tremia.
Ouviu abafado, as palavras trocadas entre a tia Celeste e a irmã. Mas o peso da colcha tirava todo o sentido às frases e ao fim de algum tempo desistiu de tentar perceber o que diziam e cansado pelo susto, aninhou-se e acabou por adormecer.
Passou o resto do mês a tentar evitar encontrar-se a sós com a tia Celeste e quando não o conseguia, virava a atenção e especialmente o olhar para outro lado, desde que não a encarasse.
Difícil era à noite, pois dormiam no mesmo quarto: os sons que a tia Celeste emitia pareciam urros de um monstro, entrecortados por uma aflição no respirar, um engasgo que ele temia sempre, fosse o ultimo e ela morresse, ali mesmo junto à cama dele. Nessas noites terríveis tapava a cabeça para não a ouvir mas também para se esconder – do que ele tinha a certeza – da tentativa da tia Celeste o agarrar e o arrastar igualmente para uma morte certa.
Depois havia sempre aquela sentença do espelho, o diabo à meia-noite, solto para espreitar por trás das costas à espera da oportunidade para roubar a imagem reflectida.
Quando o Agosto terminou e os pais o vieram buscar, sentiu uma felicidade imensa pela segurança dos que lhe queriam bem e num acto de coragem, à despedida da casa da avó, virou-se para trás e deitou a língua de fora à tia Celeste. Mas arrependeu-se imediatamente ao ver que ela passava a mão descarnada na mancha branca do cabelo e isso, era muito mau sinal.
O Outubro chegou, a tia Celeste partiu e quando no inicio de Novembro ela regressou, o seu aspecto estava mais tenebroso que nunca: a orelha direita estava completamente rasgada no sítio onde tinha havido o furo que suportava a arrecada de ouro, apresentando duas peles tristemente penduradas. No entanto, mantinha a outra orelha adornada, tão solteira como ela.
Ninguém fez perguntas e ela também não deu explicações. Voltou tudo à rotina da organização metódica da tia Celeste.
Passaram os anos. Joãozinho passou a João, mas o temor da infância não o tinha abandonado quando estava perto da tia Celeste, agora de cabeça toda branca, a mancha menos destacada, de bengala que a gota não dava tréguas, autoritária e mais envinagrada que nunca.
Numa tarde de Agosto como sete anos atrás, João sentado à mesa bebia um refrigerante e a tia Celeste manejava na sua habitual velocidade a vareta ganchuda embrulhando fios e fios, sem olhar o trabalho de mão, mirando-o profundamente.
Na repetição do destino, João engasgou-se com o gás da bebida e espirrou adiante o líquido, atingido a tia Celeste.
Num sobressalto ergueu-se, tombando a cadeira com estrondo. Pegou num pano e rápido, começou a limpar as mãos da tia-avó. Ela arrancou-lhe o pano das mãos e deitou-o ao chão com raiva. Segurou na bengala e com esforço levantou-se, caminhando manca até à casa de banho. João atabalhoadamente tentava ampará-la mas o pânico de lhe tocar deixava-o apenas preso na intenção.
Chegaram os dois junto ao lavatório e com a água a correr, lavavam à vez as mãos peganhentas.
Foi então que João olhou o espelho e viu reflectida a imagem da tia Celeste, negra, afiada como um traço, as duas metades da orelha direita trémulas, o nariz mais bicudo que nunca, os olhos como dois buracos escuros. A única coisa que parecia iluminar aquela figura era a cabeça branca com a faixa nívea a demarcar-se no cabelo. Quase sentiu pena dela, nesse momento.
- Que estás a olhar?
- Nada…
- Sabes o que vês no espelho se a ele te mirares à meia-noite?

continua

domingo, 20 de julho de 2008

Mistérios da (minha) natureza




Se por acaso me encontrarem não se assustem. Sou eu, mais nada. Posso não parecer mas sou mesmo eu, até eu por vezes não sei que sou eu, mas sou-o. Tenho de ser. Penso assim para não amalucar de vez... mas cá no fundo, só mesmo para mim, sei que sou outros.

Não é minha intenção assustar-vos quando vos apareço mas simplesmente porque não sou eu nessa altura não tenho como vos avisar e nem sequer o faço por divertimento! é que são mesmo outros! Até eu já me apareci a mim!

Que susto!

Quem és tu, eu, eu sou eu, não, eu é que sou eu, não, sou eu, eu é que sou eu!

E neste dilema afasto-me. Sem fazer barulho mas deixando calcado no chão as marcas de que lá estive. Só para eu saber que existo. Marcar posição. Delimitar território.

Portanto, se por acaso vos aparecer um homem ou uma mulher ou um cão e até mesmo um elefante, não se assustem! Sou só eu.

sábado, 19 de julho de 2008

Heróis de papel




Quando formos todos heróis havemos de escrever sobre quem somos. Realmente. Sem armadura ou escudo, de mãos limpas, de canetas carregadas de tinta prontas a exibir pingos alargados de manchas azuis como sangue nobre a lavrar decretos.


Havemos de contar de nós sem vaidade nem glória, apenas comuns heróis aposentados a necessitar de descanso e da simplicidade de sermos homens, de revelarmos quantas vezes nos apaixonámos e de quantas fomos o que nunca seremos. Heróis.

sexta-feira, 18 de julho de 2008

Crónicas do Tejo (XV)



O Rio está mar.

Mergulho na chávena de café, sem açúcar, sem aditivos outros que não o cheiro desta água escura que me há-de levar até ao outro lado.

Mergulho no Tejo, cumprimento delfins e tritões, tantos dias sem vos ter, até o bico laranja da gaivota me mordisca como um peixe incauto, sou eu, eu sei diz ela e desembaraça-me no cabelo restos de homens e mulheres que de boleia se arrastam num sonho embalado pelo cacilheiro que geme triste nas cordas que o amarram.

Sete minutos para ser Rio.
E já sou de novo mulher.


(in Crónicas do Tejo, CG.-01/07/2008)

quinta-feira, 17 de julho de 2008

Verdadeiras Histórias - Espelho sem imagem




Aquela era uma tia-avó.
Celeste de seu nome.
Mas só de nome: magra como um pau, os dedos longos, o nariz fino e dobrado, olhos encovados, cabelo arrepiado num rolo, orelhas demasiado pendentes pelo peso do ouro das arrecadas rendilhadas.
Sempre vestida de negro, porém casada nunca o fora que o compromisso que tivera por quatro anos, deixou-a viúva no altar, à espera de um noivo fugitivo. Desde esse dia trocou a alvura pela escuridão do temperamento e do azedume pela vida. O único brilho que parecia iluminar aquele rosto era uma mancha de cabelo branco que lhe despontara na primeira noite das núpcias não consumadas e de cada vez que a imagem do espelho lhe devolvia a recordação do abandono, ela passava a mão e alisava na madeixa o seu desgosto.
A tia Celeste tinha as funções de governanta de uma casa: tanto orientava a despensa como se ocupava dos netos da irmã. Sempre vivera com esta, não como hóspede mas como suporte de toda a família. E em Outubro, quando partia para as termas para uma cura de um mês da gota que a afligia, todos sentíam a sua falta. No resto do tempo aguentavam calados os seus humores e a sua língua áspera como paga pelos serviços prestados.
Joãozinho era o neto mais velho e naquele Agosto ficara entregue aos cuidados da tia Celeste.
Tinha medo dela. Dos olhinhos pequenos e fundos, do nariz idêntico ao bico das aves. Tinha medo dos sons que ela fazia quando dormia no mesmo quarto dela. Tinha medo das histórias que ela contava, em que os maus ganhavam e os bons eram humilhados. Tinha medo porque ela nunca sorria. Tinha medo que ela o tocasse mas também por ela nunca o ter abraçado.
Joãozinho quase perdia a fala quando estava perto dela e obedientemente cumpria as tarefas ou as ordens que ela lhe dava e não adiantava de nada queixar-se à avó, pois esta já lhe dissera de outras vezes, que a tia Celeste só queria o bem dele.
Ele desconfiava mas aguentava como podia.
Naquela tarde de Agosto, depois de contrafeito ter dormido a sesta chegou-se à mesa para o costumado lanche e sem proferir palavra quanto às natas que boiavam, fechou os olhos e engoliu sem saborear o leite frio e sem açúcar.
A tia Celeste fazia crochet a uma velocidade considerável e sem olhar os fios que engatava uns nos outros, fitava-o profundamente, muda, sem expressão.
Joãozinho agoniou-se com uma nata mais espessa e engasgado pelo vómito, tombou o copo ainda meio e verteu o gole que lhe enchia a boca. Celeste deixou caír a agulha feita de uma vareta de roda de bicicleta que ela própria havia dobrado na ponta e aquele barulho da gancheta a cair ao solo, teve a dimensão de uma avalanche.
Erecta, moveu a figura até ao menino e alçando-o por um braço levou-o de arrastão até à casa de banho.
Empurrou-o para o lavatório e forçando-o pelo pescoço atirava-lhe chapadas de água que o sufocavam no nariz e na boca. Ele aflito começou a debater-se: não conseguia respirar e aquela mão parecia uma corda a apertar-se como um enforcamento. Sentia-lhe os joelhos ossudos a pressionarem as nádegas e num ímpeto agarrou-se à beirada do lavatório e abriu a garganta ao grito.
Celeste pareceu surpreendida pelo acto de revolta mas rápido tomou a compostura e entre as mãos prendeu-lhe o rosto: olhou-o primeiro, longamente; ele calou-se de imediato. E logo de seguida virou-lhe a cabeça para o espelho que pendia sobre a bacia. Só que a pequena estatura de um Joãozinho de sete anos, apenas permitia que os remoinhos no alto da cabeça aparecessem reflectidos…para além da imagem de estaca negra que surgia em toda a sua dimensão desde a cinta até à mancha branca do cabelo.
- Sabes o que vês no espelho se a ele te mirares à meia-noite? – perguntou a tia-avó, sacudindo-o pelo crâneo.




Continua

quarta-feira, 16 de julho de 2008

Atitude






E também veio esta estampilha que o Papagueno distribuiu pelos seus lidos, no quais eu me considero incluída no seu rol de amizade.

Pela tua generosidade em palavras, imagens, atitudes MUITO OBRIGADO.


Do gesto do Bairro do Amor faço uma réplica e estendo-o aos que constam na minha lista de links.




Com um beijo para todos.

terça-feira, 15 de julho de 2008

Prémio dos Blog's mais interessantes



Este é o Prémio dos Blog's mais interessantes que o Xico Man concebeu, atribuiu e segundo ele designou, a Árvore da Gasolina merece.

A Árvore fica toda vaidosa por tal atributo e agradece sentidamente a este Man por distingui-la.

A ver se não o desmereço, Xico!

Beijo para ti, muito obrigado!

E se me é permitido, gostaría que todos os que constam na lista aí à direita se sentissem englobados neste conceito, incluíndo o Blomeu.

segunda-feira, 14 de julho de 2008

Cartas ao Poeta (XIII)


Não fugi Poeta.
Nem te esqueci, como podería? Antes olvidar a mim e perder-me no mundo.

Tenho vagueado por mares e montanhas, outras de outras cores, aquelas que nos recheiam por dentro da memória e saboreamos devagar com medo do gosto se extinguir rápido na gula de tanto as querermos.

Não desapareci, apenas me refugio na couraça de passar escondida entre gentes, recolho a cauda das dores, fingo que não olho o sol a nascer e nem sei do que falam... mas nestas linhas meu Poeta, acho o meu tamanho e até posso esticá-lo nos bicos dos pés até tocar a Lua.

Já te falei da minha Lua?
Pois que te contarei dela quando cheia voltar, agora faz-se curva e talhada aos olhos dos homens.

Estou aqui Poeta.
Eu e o meu abraço calado em ti.


(Cartas ao Poeta, C.G. -12/07/2008)

domingo, 13 de julho de 2008

Contos Curtos Quase Escuros - Rosa negra




Achou-a pálida, até mesmo uma lividez que lhe ressaltava mais as veias azuladas do pescoço, aquela mais saliente na testa como uma água serpenteando entre levadas. Não chorava mas os olhos parecíam gastos, encovados num cinzento afundado que fazía esquecer o traço dos lábios. Mordiscava-os. Ele estranhava tal estado e perguntou-lhe o que tens e ela não respondeu, só fechou os olhos como se se ausentasse dali, quase parecía não o ver. Que tens, repetiu, deixas-me assustado, ela abriu os olhos e mostrou-lhe uma rosa muito escura, quase negra, depois beijou-lhe as pétalas, encostou-a ao peito e no contraste da roupa preta a rosa parecía vermelho sangue.

Porque estás assim e de negro vestida e ela nada falou. Picou-se no espinho que protegía o caule, chupou o dedo e tingiu os lábios no carmim liquido. Deixa ver, disse ele, e ela esticou o braço na lentidão do gesto sentido, porque estás tão triste e ela soletrou muda amo-te, eu também te amo, mas que tens, que tens, ela cerrou o olhar para dentro de si, pousou-lhe a rosa no peito e taparam o esquife.

quinta-feira, 10 de julho de 2008

Zeca



Entrou e viu um espaço vazio. ENORME. Não parecía quando ele lá estava. Sempre tão pequenino nos seus passos, no seu ocupar, quase imperceptível. Enchía. Sem se fazer notar, sem ruído demasiado.

Em dias de sol cantava até insuflar o corpo, estufava o peito, afiava os olhos negros e parecía que a qualquer momento a explosão se daría no tom melodioso. Mas no final acabava a silenciar os demais barulhos cacofónicos de vozes que não sabíam falar de outra maneira que não na sacudidela do gesto das mãos a acompanhar décibeis desencontrados que ajudavam a demonstrar dificil o que de mais simples se tentava.

Entrou e já não o encontrou. Nem a cor. Só a memória de se rir de si mesma ao tentar imitá-lo, um desconchavo quando ele lhe retorquía e ela vía o quanto ele se impunha na gigantesca pequenez do seu corpo.

Entrou e ele ausente enterrou-a em agonias de fechar os olhos com força para o guardar na memória.

(Ao Zeca, o canário coral que me enfeitiçou até ontem. Voa alto.)

terça-feira, 8 de julho de 2008

Eu sei do que gosto



Não fora eu capaz de escolher e decerto não estaríam nestas linhas, que já lá vão muitas, o que se gosta e o que se detesta, o que se inveja e o que se apupa, o que se comenta e o que se ridiculariza.

É assim que se desenha a fisionomia no retrato das letras. É assim que se inventam cabelos, olhares e mentos, estatura, colam-se atributos, fomenta-se na estimação cuidada o odiozinho pelo gozo primário e orgásmico de apenas se odiar.

Não o espicaço pela simples vontade de ser do contra, muito além descubro no meu gosto o gosto de paladares diferentes e caminho de pé na escolha que faço sob o dedo que quase me espetam no olhar e na acusação de aqui ser a infiel que precisa de se dobrar à cruzada do homem bom.

Mas religiosamente deixo que a minha opção decida no esmiuçar de que sou aquilo que quero e aquilo de que gosto. Embora a susceptibilidade de alguns se belisque, não os incomodo nas suas preferências mas - aviso à navegação - da minha liberdade de expressão não abdico.

segunda-feira, 7 de julho de 2008

Banalidades



Se se olhar com um pouco mais de cuidado descobrem-se pequenos pormenores interessantíssimos. Ou talvez não. Provável mesmo é que seja apenas de quem olha essa capacidade de transformação do banal no arrojado ou de formas estranhas nas curvas que todos sabem encontrar. Como quando vemos um quadro que aparentemente nos fere a vista pela mancha de cor que nos ataca até ao céu da boca. Isso, talvez seja isso... depois rodamos a cabeça, devagar, muito lentamente até a cor dos olhos se esbater suave na do quadro e fica-se assim, a saborear tons até nos inundarem num circuito de veias e libertarem pequenas faíscas no cérebro.


Se se olhar com mais atenção desfocamo-nos do contexto, labirintos de conteúdo emergem sob a vista. Espreitamos ao redor... talvez ninguém se tenha apercebido do nosso desvio, até mesmo da coisa que parece ser tão evidente, tão evidente que ninguém a acha! Encolhemo-nos. Primeiro na vergonha de nos acharem doidos, depois na guarda do segredo descoberto.


Deve ser por isso que consigo saír de dentro de mim e ficar a assistir-me a escrever. Como o faço agora. Sei que sou eu porque reconheço a minha sombra! Mesmo que ela me fugisse conseguiría encontrá-la no meio da multidão. Trazía-a por uma orelha e voltava a sentá-la, aqui, onde a espero. Onde a preciso de olhar com mais atenção e dar-lhe o mérito devido, quando eu cansada permito que ela me pegue na mão e escreva. Até ao fim. Até este ponto final.

domingo, 6 de julho de 2008

Distinção



Há blogs que pela sua qualidade me merecem destaque.

Seja pelas palavras ou pela imagem, pela constância do nível e empenho do seu autor, pela inovação dos temas, pela simplicidade com que me fazem viajar. Pelo tanto que me dão.

Assim, resolvi publicamente nomeá-los, sendo certo que a regra única é o meu gosto pessoal pelo blog.

Não é um prémio nem um meme.
Não é uma corrente e logo não é transmissível a mais ninguém pelo que só a Árvore das Palavras tem o direito sobre o registo de os indicar e o indicado não o pode oferecer.

Todos os meses, aos primeiros dias, revelarei a minha escolha. Publicarei aqui o selo Distinção Árvore das Palavras com a identificação do meu seleccionado de cada mês e gostaría que o blog distinguido também o exibisse. Mas isso já fica por decisão do visado.


No mês de Julho distingo O Jardim Casa da CNS.


Pela sua qualidade literária quer nos detalhes da coisa comum quer na riqueza com que exprime sentimentos.

Aconselho a todos a sua leitura.

sexta-feira, 4 de julho de 2008

De mim outros



Se eu vos dissessse que eu sou eu e o eu é outro e desse outro outros eus há, será que ainda gostaríam de mim?

E que desses eus nenhum sou eu porque eu estou aqui e ninguém consegue estar noutro lugar quando se é eu e outro eu?!

Que desse eu não há clones nem réplicas. Há outro eu que não sendo eu é tanto eu como eu e no entanto alguns outros revelam-se mais eu do que eu, afoitam-se em mim como se não fora eu e sem resposta para cada um de mim, sempre vos digo que tanto sinto eu como eles, que tão verdadeiros são os outros eu como eu.

Confuso?

Não me perguntem a mim. Deixo isso para os outros.

quinta-feira, 3 de julho de 2008

Pontapé na Lua




Regresso de férias. Encontro tantas palavras que me deixaram. Gestos de quem gosta de se sentar à sombra da Árvore. Esperar pelos diferentes frutos que amadurecem. Saber que houve quem cuidasse da sua sede, que afastou insectos nocivos.

Que da lembrança se fizeram presentes de verbo. E outro, como a imagem acima. Uma coreografia de sentires e gostares e dar o que se gosta de receber.

A Patti presenteou-me com dança. Que eu amo, que sabe que eu amo.

Que da generosidade da oferta há o acto tão simples de se saber do outro aquilo que se gosta, que do cuidado houve tempo para ouvir e ler e registar, que do agrado de receber há o maior de entregar.

E obrigado é tão pouco Patti.

Mas é o que te ofereço e não esqueço. Muito obrigado.


(A figura desenhada na foto é um pontapé na Lua. Imagem poética...)

terça-feira, 1 de julho de 2008

Julho


Mês sete.
Contei-os mais vagarosa que as ondas do mar, surpreendentemente menos matemáticos. A lógica da vida é um caos que parece estar arrumado e pronto para saír mas vai para a rua em chinelos de quarto.
Juntei o que já sabía e entrecortadamente deixa resíduos na minha memória como espuma amarelenta quando as ondas vêm de manso chegar à areia. Tento agarrar essa aproximação, esclarecer dúvidas, refrescar-me mas a minha agilidade revela-se lenta, fogem as águas, regressam para aquela cama gigante de azul-verde.
Contei os sete passados, permanecem as perguntas que o mar não devolve, a lembrança faz-se de areias molhadas, empapa-se e deixa-se penetrar devagar, finge-se impermeável.
Mês sete, descubro nos meus passos chinelos de quarto.