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sábado, 31 de outubro de 2015

Heteronímias



 
Se as contasse faría uma vida. Ou várias. Algumas idas na vontade própria que afinal foi assim que chegaram e assim quiseram ir-se, usando as letras para nada dizerem, fim, ou nem isso, eu que adivinhasse tal como se entranharam na pele e me tiraram o sossego. Três letras ou a quantidade de muitas que houve alguns que sendo parcos na despedida muito disseram ao longo da pequena estadia. São os que lembro melhor, os que me deixaram maior marca, os que não se importaram de eu os lembrar, houve essa intenção decerto ou não tería de bom grado retirado frases do meu corpo para lhes confidenciar a noite em que nos cruzámos no corredor [também não consegues dormir? nada. nem eu. anda, vamos conversar, gastemos as horas], a madrugada a acordar cansada nas costas e de olheiras de vinho bebido a meias aos golinhos para poupar o momento. A estupidez da saudade de quem não sabe que os memoráveis risinhos ainda fazem sorrir e depois amargam, não há porque os escrever de novo, se as contasse seriam monstros no corredor.

sexta-feira, 30 de outubro de 2015

Ele há dias que são (sempre) assim



Iniciar, ser interrompida, recomeçar, ser chamada e largar, pegar num novo assunto e esquecer o anterior, despachar o presente, retomar o primeiro e ser chamada, por de lado, atender ao que pedem e dar por finalizado, agarrar pela terceira vez o tema inicial e começar do principio contrariada, analisar, tomar notas, lembrar de casos idênticos com soluções favoráveis, animada e concentrada, elaborar parecer, ser interrompida pelo telefone, resolvido, leitura de tudo o que está escrito, rectificação das letras comidas, versos que não devíam aparecer, estórias que se montam em hora de exercício, companhias que querem usar as mãos para conversar, meias-páginas cheias, meias-páginas vazias, iniciar, recomeçar, dissolver, amalgamar.
Saio.
Volto dentro de 5m quando eu estiver presente.

 

quinta-feira, 29 de outubro de 2015

A intermitência da narrativa



 
Olho o Tejo à direita, a espaços contentores pintam o cenário com a narrativa de alguém que morreu, um aventureiro, um verdadeiro aventureiro na boca do contador, ao tentar saltar de um para outro, uma distância imensa e uma altura de abismo, terá calculado mal e espapaçou-se cá em baixo de cabeça, não consigo deixar de o ouvir, desligar, acompanho-o na estória, no funeral do outro que não conheci e a quem todos chamavam o Carola [pergunto-me se não sería por ter ideias de merda], tanta gente, tanta flor [Carola, porque já se adivinhava a morte de cabeça para baixo], a mulher e dois filhos pequenos, os amigos do Carola, toda a rua estava lá, e um que ficou depois da meia-noite só com o caixão disputa a continuidade do enredo, olho o Tejo e peço uma crónica mas só o esqueleto da estória alheia se ergue ensanguentado das águas do meu Rio [ o Carola já tinha estado preso por roubo]. Há um silêncio consternado quando o narrador e a sua comitiva saiem. Não terão mais de dezasseis, dezassete anos. A intermitência destas vidas, da do Carola, fará a do meu dia. Um desconhecido que me leva a escrever sobre ele e não sobre o Tejo.
 
 

quarta-feira, 28 de outubro de 2015

Folhas brancas



Um e outro hão vir exigir o seu quinhão de comida, depois afagos, ao cão rua no passeio da noite escura. Por vezes há só silêncio, doutras palavrinhas murmuradas que pretendo lhes sejam preciosas na intenção com que lhas sinto, sempre muito focinho roçado, bigodes que se electrificam no toque dos dedos. Seguem-me, observo-os, faço a rotina dos dias, eles recolhem ao sono de barriga cheia.
Este pedaço de paz segue dentro de mim. Tenho vontade de mandar recados ao mundo, à vida, sobre a simplicidade de amar no exemplo desta irracionalidade a quatro pelo chão, uma soma igual a dar e receber sem olhar a variantes do belo ou da riqueza e tantas vezes a oferta sem nada em troca. Nunca serei capaz de escrever o suficiente ou o correcto sobre esta plenitude, levo-a entre as páginas do meu caderno, duas folhas brancas a separarem outras cobertas de letras, sei o que são, o que não sou capaz de dizer, o que aprendo todos os dias e me fazem pequena na ignorância de pertencer a uma raça que se mata por gosto. 
 
 

terça-feira, 27 de outubro de 2015

Cena canalha




Aconteça o que acontecer nunca me magoes com a mentira, jura que me dirás sempre a verdade, e davam as mãos e sorríam e beijavam-se muito de seguida a selar a promessa solenemente, quanto tempo passou até chegar o esquecimento nem um nem outro se recordam, tão pouco no acto da infracção tiveram presente as mãos dadas, o beijo, os beijos muitos no olhar aberto e depois fechado a consumar verdades eternas que se revelaram num imenso trambolhão, zás, já era a mentira a verdade e depois de calada é só verdade para todo o sempre. Melhor assim, não se magoa ninguém e nunca se saberá, afinal uma coisa de nada. E depois mais uma de nada e ainda outra e ao fim de pedacinhos tantos de junto, toda a vida era metade de fingir e outra metade feita de um instante de jura de olhos fechados. Até à verdade verdadeira, exposta, descarnada, desfigurada pelos anos a passarem de olhos muito abertos e sem beijos para acalmar. Jura que me enganas e não quero saber de nada.
 
 

segunda-feira, 26 de outubro de 2015

Das portas & janelas - Vol.2 - Esboço nº1




Voltar.
Enfrento-me na promessa e engulo duas vezes, bato, sinto a porta a ferir-me o silêncio de ninguém me atender e quase aliviado, desculpo-me para lhe dar as costas e não voltar.
Voltar.
Tinha dito que aqui não regressaria, há coisas que não se repetem, pela dor, pelo que aconteceu e pelo que trouxe do passado ou pelo orgulho de ser homem, bati e ninguém veio, bati e do outro lado cumprem o meu juramento melhor que eu, talvez me escutem e esperem que eu vá para depois de porta aberta reconhecerem o rosto que tantas vezes acolheram de sorrisos, mão esticada na palma estendida a pedir pressa para entrar, na última vez bati com força a porta, não falei, não vieram pedir-me para ficar, só um passo único a imitar os meus hesitante e depois só eu, a barreira da porta, o lá e o cá fora.
O dantes e o voltar.
Insisto, bato de novo na porta e por cada pancada o coração bate mais forte que os nós dos dedos na separação do que quero aproximar, acaricio a dor da madeira e peço que me ouçam, baixo, volto, ou talvez não, só quero que abram e me vejam que estou aqui, afinal estou aqui.
Alguém passa e conta que ninguém mora cá há muito tempo.
 
 
 
 
(in Das portas & janelas-Vol.2, Março-2015)

Todas as fotografias da Colecção Das portas & janelas-Vol.2 são da autoria de Eduardo Jorge Silva

domingo, 25 de outubro de 2015

A [nossa] hora


 
Vieste desafiar-me, nem horas certas são, ultimamente parecias esquecido do teu papel, folheio o livro a parecer surda aos uivos cada vez mais próximo, tenho sido eu a recordar os nossos encontros, de mulher esqueço-me, habitualmente somos dois a correr ávidos da presa no cheiro ensanguentado dos pensamentos, derrubas-me a leitura mas hoje faço-me difícil, o pêlo molhado arrefece-me na vontade das pernas a partida disparada para te filar no cachaço da surpresa, revelações, a crueza da hora certa em que nos olhamos selvaticamente na expressão do que realmente somos, o que queremos, o que fraquejamos, o medo, a raiva de não abocanharmos um pedaço desejado, os sonhos, atacas-me a garganta, as presas fincadas a trazerem-me até ti. De novo. Sempre. A hora do lobo que se deita a meus pés enquanto me enrosco presa ao meu corpo como se regressasse ao corpo da minha mãe. Vejo-te ir silencioso. A minha mão entalada entre o livro a marcar páginas conta que um instante se passou, só as letras molhadas provam a tua presença.
 
 

sábado, 24 de outubro de 2015

Joelhos à boca




Escola. Calças de fazenda. Com cheiro de lã molhada. E as folhas das camélias muito verdes e muito brilhantes como se tivessem sido envernizadas, só que as árvores estavam despidas, galhos fantasmagóricos como braços muitos fininhos e longos que cresciam assustadoramente à medida das horas a esticarem-se até entrarem dentro da sala de aulas e pegarem nos ombros brancos de batas. Gritos estridentes em silêncio. Para dentro. Só de imaginar. Como uma estória. Sem escrever, sem palavras dentro de um saco de onde se pudessem tirar e colar numa folha, só palavras na boca à medida que íam crescendo e se diziam quando a trovoada fazía mais barulho. Depois só a chuva. A lembrar o ruído de batatas a fritar. Muita água a fritar a calçada e pés molhados a procurarem lagos como palitos de batata que se mergulham. E as árvores lá. Sozinhas. Cheias de frio e sem roupa de lã, sem calças de fazenda a cheirarem a camélias. As camélias não têm cheiro.
Mas eu lembro-me de tudo. Até do cheiro da chuva tão diferente. Eu tão outra.

sexta-feira, 23 de outubro de 2015

Explosões



Ficar com a cabeça à roda ou ver-se em latitudes onde o mapa, indecifrável por mais ângulos que se lhe procure não se acha o ponto onde estamos para referenciado apontar-se o norte na bússola louca que gira os ponteiros magnetizada por lembranças de já aí ter passado sem localizar o sitio, é o mesmo que ter bem presente a memória de uma cena passada há uma dezena de anos mas não recordar a refeição do dia anterior. Sabe-se que se comeu mas o quê, onde e com quem parecem ter sido recortados como dispensáveis e supérfluos substituindo minúsculos reavivares de sons de fala e até cores que pareciam de somenos importância. Aparecem como pequenas explosões, perguntamo-nos de onde vieram, porque raio nos puseram a cabeça à roda dispersando a atenção quando nos perguntam onde almoçámos ontem e o esforço para trazer a véspera, compreender o ressurgimento do passado e ainda mantê-lo para acaricia-lo, embrulha-nos o estomago, dobra a língua no silêncio das reticências, coçamos a cabeça. Quem nos interpela perdoa, acha que é senilidade precoce. Mas só acontece aos que muito já guardaram dentro de si, nada a ver com tempo de vida, muito de vida vivida.
 
 

quinta-feira, 22 de outubro de 2015

Inconveniência(s)



Que incomodativa. Mal chega para mim e ainda vem esta pôr-se de cotovelos espetados no meu espaço, respirar o meu ar, sem dizer palavra plantou-se, sentou-se, foi-me empurrando de anca e aos poucos no assento ganha-me o lugar. O tempo. O tempo a passar e eu nada. Não faço nada, olho o ar, olho-a e admiro-lhe o silêncio do desplante de me tomar, a progressão da conquista e o destrono da minha concentração, não tem noção da inconveniência e os meus afazeres, a obrigação da hora de serviço, hierarquias, essas coisas do cumprir para cima com nome de compromissos. Olho-a, está ausente ocupando a minha cadeira e eu já de pé ao seu lado, ela na folha branca que rapou das minhas mãos sem eu a ter. Aguarda-me na hesitação da minha fala, esperamo-nos: Eu na cena que assisto, ela por alguém que não lhe chega.
Afinal não há letras no papel, o incómodo dela é ter chegado antes do cenário da partida, ainda cá estou, não seremos duas, há um narrador a contar e por vezes as aparências iludem.

quarta-feira, 21 de outubro de 2015

O bater do coração (vinte e nove)


 
Terá sido o enjoo do dia ou o transbordo de ruído excessivo ou somente a loucura. Direi, resumidamente como se não prestasse grande atenção que já não quis saber mais porque já nada mais tinha grande relevância quando os rostos se reconhecem à mesma forma, todos semelhantes numa tristeza pintada a um tom sem olhos distintos de outros, ou então, simplesmente porque me apeteceu.
Ergui-me da cadeira bem sentada e nos braços ondulei a imitação do voar, girei em mim, o pescoço alto.
O silêncio musicou a perfeição dos segundos, de seguida vieram as gargalhadas, algumas palmas a fechar a pirueta que ofereci.
Vi-lhes os dentes, a língua avermelhada, o comentário sobre o jeito circense para dispor bem a plateia sisuda e o meu coração agitado pediu recato à pele, à roupa, aos gestos e ao olhar porque ninguém me vira despida nos passos toscos de dança que precisei sentir para não me perder.
Voltei ao que fazia, todos recompostos. Só a veia no meu pescoço, teimosa, insistia em manter-se em palco.

terça-feira, 20 de outubro de 2015

Parágrafo único



Este mundo cada dia está mais feio. E quem o faz assim são os homens.
 
 

segunda-feira, 19 de outubro de 2015

Depósitos do cansaço [o custo do começo]



Foi como empurrar um carro. Os pés a resvalar na terra, a gravilha a saltar, e o maldito sem deslizar um milímetro sequer, por mais que as palmas das mãos se apoiassem na convicção do esforço e no ângulo do corpo quase a par com o chão tão próximo, as rodas não rodavam e o monstro permanecia estático, inerte, parado. Parado. Mais uma tentativa. Parado. Até se sentir que a pele do estômago se rasga toda até às coxas e o sexo se estica até desaparecer sabe-se lá para onde, parado. Depois, as mãos suadas e os dentes apertados mais de raiva do que qualquer outra coisa impelem tudo e numa facilidade vagarosa o carro mexe-se, anda pastoso, contrariado, avança, surpresa, apanhamo-lo distraído e de bicos de pés fincados vai-se cravando aos poucos e vencendo cada vez mais a renitência até ligeiros o afastarmos e em definitivo vê-lo caír pela ribanceira.
Custaram-lhe as primeiras palavras, embrulhava-se nelas como uma mortalha a que se apiedava caso quem a escutasse no silêncio de bom ouvinte não demonstrasse desconforto, emoção, um leve encher de peito que suportasse o peso dos segredos. Por vezes engolia em seco para logo a seguir falar rápido em tom de pergunta, mas do outro lado, sem respostas, sem partilhas, sem comunhão, apenas um pedido de seguimento obrigava a que o trilho da fala se retomasse à confidência.
Suspirou, um cansaço profundo porque tudo lhe era importante e não sabía por onde começar, disse.

domingo, 18 de outubro de 2015

Experiências (de são e de louco todos)



Dizía-lhe o nome, uma, duas vezes, à terceira era o primeiro seguido do segundo nome na entoação do se for aí vamos ter aborrecimentos e a resposta era sempre a mesma hum, hum, hum, num crescendo a condizer  com o volume do chamamento até finalmente e num rompante tasquinhar e, violenta, se pôr a pé ou de prontidão ou o que fosse, tudo menos o que fazia que geralmente era nada ou nada era o que se fazia, porque na verdade, a manufactura era imensa, coitados dos curtos de vista que não tinham poder para situar a obra a que se dedicava, construções maiores que o Everest, apenas de palavras ditas para dentro das goelas embrulhadas a cuspo, uma ou outra safava-se no silvo da repetição sonora [com quem falas tu que não me respondes?]
Já vou.
Não foi. Não fui, deixei-me estar no hum, hum, mesmo só havendo pedidos dirigidos a um único nome e escutando-os à primeira, deixei-me ficar para sentir o que sería a reacção do outro lado, sibilei algumas palavras mas nem isso despertou estranheza. Minto, só a minha. Hábitos de quem convive com mais do que um, uma [ouço-te falar, mas sei-te entre os teus outros, tudo tranquilo].
Experiências, refiro e sorrio a desculpar-me [os loucos são sempre os outros].

sábado, 17 de outubro de 2015

Correr, conhecer, conversar


 
Corria, corria muito, tanto, tanto que se surprendía pela autonomia das pernas e da novidade da coisa, aliás coisa já muito antiga porque há muitos, muitos anos que tal não acontecia, tantos que acabou por se estatelar, surpresa da surpresa, uma velocidade ainda mal começada e logo terminada, caçada na mão que lhe deitou as unhas ao casaco. Do resto não se lembra, agora estava ali deitado. Mas não tinha sido um sonho, que acreditassem nele.
 
Tinha ido ao Marquês, aquela grande bolacha onde os carros andam à volta até entontecerem e depois de ganharem corda suficiente para seguirem saiem. Tinha lá ido, grande movimento como sempre, melhor tinham-no levado mas ele conhecia o caminho como a palma da mão, pudera, tantos anos a conduzir para ali, cada buraco, cada esquina, cada boteco, todos os cheiros lhe são familiares. Mas não conhecia o laboratório onde o tinham levado hoje a fazer o exame, que acreditassem nele que não estava enganado e nem tinha sido um sonho.
 
Falei com ele e ele respondeu-me. Achei tão natural como se fosse uma pessoa a responder-me. E quando contei disseram-me que tinha sonhado mas eu não estou tão certa disso, acho mesmo que o gato falou, claro e pausado como sempre o conheci nas conversas que temos.
 
Tanto ele que corria como o que revisitara o Marquês foram aos lugares despedir-se do que tanto sonharam ao longo da vida, por tanto terem vivido realmente esses bocados. É bem provável que me esteja a acontecer o mesmo.
 
 

sexta-feira, 16 de outubro de 2015

Sabe-se mas não se vê


 
Insufla-se um derradeiro sopro, ainda o há, maquinalmente os pés poisam nas últimas pegadas feitas, as do próprio ou de outros que copiando o caminho conhecido assim acham facilidades no seguir, tudo vale, olho à direita a minha salvação porque de lá vem onde nasce o sol e quero convencer-me que enquanto tiver a capacidade da descoberta nem tudo vai mal, sejam manhãs frias sejam azuis, a água que rasa a terra como plano dos mortais é para mim a minha imortalidade, aquieto-me, daqui a pouco tempo terei tempo de outros tempos para mim, por agora arrendo-o em troca do que sei, sabem lá eles o que eu sei, todos os segredos que trago, mas também não estão à venda.
Um derradeiro sopro que me veio donde, pergunto, talvez da sabedoria do que não troco e que me foi dada por outros sem perguntarmos na quantidade entregue, salvações, redenção sem perguntas e por isso tanto no peito que sempre se encontra uma réstia que nos empurra suave onde não se encontra a força nos músculos. Tudo essência e leveza, sabe-se mas não se vê.

quinta-feira, 15 de outubro de 2015

Eu, a gaivota e René Maltête



Cinco, dez minutos, um cigarro queimado ou um século que vem detrás, a gaivota é a mesma de sempre ou pelo menos ou acho que é pois se se deixa ficar de pés plantados em cima do tejadilho do carro a arranhar o metalizado brilhante da pintura enquanto roda à medida do som das minhas palavras a si dirigida, vieste hoje, lá resolveste aparecer para me dares importância, fazeres dos meus imaginares a certeza da tua existência nestas pequenas conversas que tenho à beira do ar, como vai a vida e todas as coisas vistas lá do alto?
Pisca um olho assustador como se tivesse luz por dentro, vai-se a ver é um boneco e eu tenho andado a falar para ele, respondo-me apenas na garantia destes minutos não serem em vão, encostos os joelhos ao cimento e o ar que não se vê oferece-me uma chapada, levanta-me cabelos e saias, leva a cinza do cigarro até ao tutano.
Lembro-me de uma fotografia de Maltête onde um grupo de mulheres se encostam a um muro, quase se escutam as suas gargalhadas. Bem que podiam arranjar um espaço para mim e aí encaixar-me, sem gaivotas, sem altivez, sem perguntas, só instantes de uma existência despreocupada.

quarta-feira, 14 de outubro de 2015

O livro negro dos homens (vinte e um)


 
Há as coisas boas e belas que nos põem o coração a bater louco como a querer furar o peito e há também as outras diametralmente opostas que de tanto nos acelerarem o ritmo, o coração deixa de ter vontade de bater. A maior parte das vezes por injustiças, pela dor da injustiça e a tristeza profunda que cala como um poço o som que o bater vivo do coração possa ter ao rebelar-se contra o que lhe fazem. Deixa de haver intenção, sangue que anime, sente-se que a própria vida se tornou um punho que rompe pelo peito adentro arrancando tudo o que até então oferecera. Há quem nunca se recomponha, outros vingam-se, uns quantos endurecem deixando o coração com quem lho levou não lhe sentindo a falta nem lhe lembrando a utilidade.
Mas os que tentam de alguma maneira recuperar o que é seu, ajustando sensibilidades ao que de facto sentem, passam na sua maior parte da vida a lutar pela reposição da verdade, cognominados de lamuriosos, incomodativos e inadaptados, na verdade cansados, na verdade nunca chegam a ter justiça, na verdade a vida é mesmo assim, não há para todos.


Lx., Fev.- 2012

terça-feira, 13 de outubro de 2015

Escorregadio [também o lembrar]



A tentação seria andar no meio delas, um colchão alto, fofo e encarniçado onde perdesse os pés até aos tornozelos revolteando de lá para cá, enquanto assentavam nas suas metades ocultas o dourado que ficara por queimar.
Mas aos olhos só uma placa acamada e ensopada das chuvas fortes dos últimos dias.
As folhas não resistiram, sucumbidas pelo espernear do vento e da muita água inesperada pelo inicio deste Outono ajoujaram-se prensadas contra a calçada, acinzentadas e sem tempo de tomar a cor da estação, quase pardas, tristonhamente falecidas no meu lembrar traquina de correr entre o amontoado.
Deixei-me parada a observar o lençol desoladamente esticado sem uma única folha que pudesse salvar para trazer para casa e dizer muda é deste Ano, do meu tempo favorito e das cores que mais gosto a recordar o fogo que se consumiu.
Um homem passou por mim e aconselhou-me a desviar os passos. Demasiado perigoso, muito escorregadio. É verdade, as memórias têm destes truques.
 
 

segunda-feira, 12 de outubro de 2015

Um dia há-de passar


 
Depois de dois dias seria normal vir descansada mas bufa, sopra, aperta os lábios na contrariedade da obrigação, olha a escapatória do reservado para poder chegado o momento da confidência e se dizer estafada, farta, não sei se do agora se do que trás do fim-de-semana, crispam-se-lhe as mãos, as palavras na frase incompleta, as sobrancelhas, eu que adivinhe ou que lhe peça para continuar, afinal será só isso, um pouco de atenção para si e nada mais, nem trabalhos nem trabalhinhos entre o mundo profissional e o universo doméstico onde não percebem o primeiro e deste último só quer a porta fechada, a cabeça tapada pelas cobertas mas ainda assim tem que andar para frente. Suspira, diz que já lhe passa, há-de passar um dia e encosta a testa no braço como se lhe chegasse uma dor de desespero que não sabe apontar para a cura, que é uma  letra de uma música e que só está bem onde não está, abano os queixos e canto baixinho e ela num gesto pede para parar. Tem medo de começar a chorar e não conseguir parar.
 
 

domingo, 11 de outubro de 2015

A morte da bezerra



Era nada. Um abstracto contínuo numa linha invisível, uma ausência total num corpo presente. Chamavam e ninguém para atender. Nem mesmo uma alma colada ao tecto a observar-se cá para baixo, inerte como um saco vazio depois de se ter ido às compras e tudo arrumado em  prateleiras. Eu estava una. Simplesmente não estava para ninguém. Só para mim, era o nada dos outros, diziam que estava a pensar na morte da bezerra. Pobre bicho. Nem ele nem eu mortos, ele porque nada sei e eu porque vivíssima de latejante nem conseguia atingir a pouca de vida que se fazia por cá. Aparentemente os universos apartavam-se e carne mais essência de mim transpunham fronteira para um lado paralelo, oculto mas tão perfeito e belo que a vontade era não regressar. De uma forma ou outra, sempre arranjaram maneira de me puxar por um braço e arrastarem para o que me diziam realidade, acordar.
Hoje voltei lá. Passado tanto tempo sem atravessar este território não foi preciso identificação, passaporte, não houve estranheza de minha parte por alguma mudança súbita ou desgosto por lembrança das memórias de anos passados. Tudo se mantém intocável como da última viagem que lá fiz, imaculado lugar onde só o próprio atinge e onde só este convida quem quer. 
Mas a grande surpresa é que desta vez ninguém me trouxe de volta, fiz eu o caminho inverso por ter vontade, por ter estado o tempo que me precisei comigo. E a bezerra lá, luzidia num pasto de olhos mansos entre o verde espevitado no branco dos malmequeres quando tranquila me aproximei e no afago do lombo lhe disse até à próxima.
 
 

sábado, 10 de outubro de 2015

Instantâneo - Episódio onze



 
O primeiro gole deu-me a certeza de ter acertado com a temperatura da água, nem demasiado quente nem desconsoladamente morno, até o cheiro que fumegantemente me aperta as asas do nariz e depois rápido as larga, engana os sentidos de tal forma que abro muito os olhos para ter a certeza que se trata de café instantâneo, a coisa promete, vá lá que o sentido se aprume neste fingir e eu ache que hoje sei escrever e faço-o, porque afinal até sei o que quero dizer, assim não me falhem as palavras ou a língua às voltas debaixo desta à busca da melhor ou a sacudir a caneta que velhaca nesse preciso momento resolveu encolher-se e a tinta chupou-se de acabada, é sempre assim, distracções para acabarem com a função ou com o tempo ideal de se tomar uma caneca de café enquanto há o oásis de que é realmente uma bebida à séria que se chama café, predileções, só faltava aparecer por aqui algum dos outros a fazerem-me companhia e agarrarem-me na mão que segura a caneta de aparo seco, desatarem a dizer por uso de palavras minhas o que dizem ser seu, ironias, o café da comunidade, mal lhe tomei o gosto vai a deliciar goelas que me deixam a salivar.  Não escrevo, não bebo mas sou senhora do meu bocado de folha.

sexta-feira, 9 de outubro de 2015

Futuros de um presente



Junto os pedacinhos todos que restaram, uma mão pequena de quase nada, o gasto foi tanto que das sobras mal dá para engrenar o motor e ter vontade de pegar, não é cansaço, já nem é cansaço, é não ter importância, desapaixonadamente.
Abro a palma e vasculho os restinhos, nada de interessante que me provoque, ainda assim acabo de me preparar, tomo um café, meto as chaves na carteira, guardo os restinhos no bolso.
Obrigo-me na normalidade da multidão e sigo anónima sem interrogações como em algumas vezes desejei, sem a inquietação da procura, uma tranquilidade que quase me deixa triste sem saber muito bem se é isso que sinto ou a novidade de nada ter para me ocupar nos sentidos.
Levo a mão ao bolso e do pouco guardado escapou-se para as costuras desviando-se em nada, nem mesmo rapando com as unhas conseguirei recuperar o que fui dos restos. E se nada sou do que fui outra serei sendo agora o que sou.
 
 

quinta-feira, 8 de outubro de 2015

Travessias do Rio - 3



Falam alto, muito alto, uns quantos gritam, suponho que é a forma de se acharem salvos ao esconderem o seu medo de caminharem sobre a água, travessias de barco são apenas um disfarce e ninguém os engana apesar de haver um letreiro a informar que estamos no rio e não no meio do oceano, manter a calma, há coletes para todos e a tripulação está treinada em caso de incidente.
Ninguém deve ter lido, demasiado ocupados a brincarem aos berros uns com os outros, a agitarem as mãos, ou a fingir que dormem, como se fosse possível alguém sossegar com todo este ruído, as orações por dentro a vencerem mais um dia para lá e outro no regresso, ufa que já cheguei, não é à toa que lhe chamam mar, desenganem-se os que escutam achando que houve erro na atribuição do apontar, basta um balanço e o silêncio calca como uma mão na boca aberta todo o som do cacilheiro.
Saiem a correr.
 
 
in Travessias do Rio, Setembro 2015

quarta-feira, 7 de outubro de 2015

[entre] Dias



Alguém me esclarece que os dias andaram, confusamente faço contas ao que fiz ontem que não será mais a véspera mas noites e dias que me vincaram sem ter memórias dos minutos a rasparem números no acrescento de se contarem horas e depois dias e depois o tempo de fechar olhos no escuro, terá sido sempre essa ausência de luz que me comeu a dimensão do que passou e me fez fixar lá atrás, quanto tempo? Hoje é o dia de hoje, salto rápido para o presente mas as pressas do chegar aqui deixam-se ficar esquecidas pertences no que não lembro de ter passado, daqui a nada vou dar falta do que não trouxe ou talvez não se não recordo a quantas ando, fiquei presa entre espaços ou entre minutos, tudo tão relativo penso, e volto a deixar de ouvir as explicações de quem tão claramente me conta o que fiz ontem na sua presença, anteontem também, relativo sublinho, vejo os lábios a mexerem-se, dobrarem-se, e não alcanço o que me conta, procuro nos meus dias e nas minhas noites as coisas esquecidas como sinal de que lá estive e passei, atravessei até aqui e aqui estou a ouvir esta boca na repetição do que sei. Não sei, não ouço, não devo ter chegado ainda, só as pernas deram o salto.
 
 

terça-feira, 6 de outubro de 2015

No peito deles



Na verdade ficam mais consternados eles do que eu quando lhes falo dos meus mortos. Não porque eu dê rumo à conversa nesse sentido mas de alguma maneira, uma e outra vez, inadvertidamente a curiosidade estala-lhes em forma de pergunta e pedem para saber. Eu não conduzo o tema mas também não o escondo, não sou dada a secretismos mas alguém me olha de véu posto e envolta em mistérios que eu própria - confesso - gostaria de ter nos atributos, mas não possuo tal arte.
Respondo-lhes com os meus mortos.
Um fascínio que lhes enche o peito.
Condói-me a falta de não os terem, o empréstimo alugado pelos instantes dos sentidos muito apurados em que o sofrer é tão intenso que me causa estranheza, a ausência do longe, das recordações, de pequenos nadas sem significado a esboroarem-se em cantos de gavetas, os sonhos e os pesadelos, a troca de memórias na leitura de recados meio apagados da tinta pelo tempo, nada possuem, nada condensam dentro de si para lhes doer como seu ou afagar como dor a passar.
Na verdade nunca visitei os meus mortos no cemitério ao contrário destes bons fiéis que levam flores, limpam o frio da pedra de insectos duros e folhas encarquilhadas, prometem a volta na semana seguinte ou no primeiro de Novembro.

segunda-feira, 5 de outubro de 2015

No meu peito



Quanto mais longe tanto mais juntos, um dia de cada vez e tantas palavras mastigadas, algumas saboreadas no prazer de as termos alimentado nos olhos em comum, tantas que ficaram na teimosia do nosso orgulho de nada comer, um jejum estúpido quando no fim só queríamos dar na palma até aos lábios um do outro, lamber, sorver, dar na insistência de tentar encher a barriga, dois tontos sempre fomos, acabamos por ficar com um monte de letras soltas que deixamos cair e em nada aproveitamos, nem ao outro nem a ninguém, espezinhadas na convicção de que o tempo nos endireitasse ou dobrasse para aprender, tu, e tu a pensares que eu, e assim fomos levando o desperdício até ao silêncio.
Longe é o lugar da morte onde estás, mas o tempo das conversas aproximou-nos sem olhar a fome ou modéstias de primeiro passo, eu não sei onde estou, estaremos no ponto onde deveríamos ter marcado encontro antes e a distância não sofresse dos males das saudade.



Ao meu irmão, 05/10/1965-09/01/2013 

domingo, 4 de outubro de 2015

Do outro lado da(s) linha(s)




Vi-o descer rápido e ligeiro tal como um risco de tinta que distraidamente se desliza pela folha branca enquanto se olha para outro ângulo. Outras estórias serão, se a importância do plano vazio não se constrói na mão aplicada. Os meus olhos vazios, o gato outra estória a fazer-se quando desceu da árvore frente à janela onde está a minha secretária, bengalas em que me apoio ao deixar a tinta secar perdoando-me pela falta de verbo, talvez tenha descido no dorso do gato e me vigie lampeiro enquanto cuida das unhas, eu escondo as minhas, para quê o uso se a caneta morre neste Domingo.
Tudo parado.
Há um tempo em que nada há.
Vi o gato a olhar-me, quatro patas fincadas no chão. E a minha mão presa à caneta e a outra no bordo das páginas preparadas para o insulto da mancha da cor da tinta permanente.
Chove.
Escrevo sobre ontem sem ser de véspera, sobre amanhã como se hoje fosse, aguam-me as linhas até esticar o tempo ao prazer de nada doer. O gato fugiu, talvez nem um pingo lhe tenha tocado o pêlo fofo, o verbo capeou-o no aviso da água. A árvore em frente à janela onde está a secretária está arranhada, vermelha, quase despida, atravesso-a para o outro lado até ao céu.

sábado, 3 de outubro de 2015

A medida das coisas


 
Mais uma vez, só mais uma, prometo que esta é a última e subo as escadinhas, mãos presas aos ferros com toda a força içada e cá do alto maior que o Cristo-Rei caio de rabo para me lançar veloz na descida do escorrega, pena que o comprimento deste não seja maior que o tamanho das minhas pernas, para onde foram todos aqueles metros de viagem que duravam até atingir o fim e de pés enterrar-me na caixa de areia para repetir a proeza até prometer à exaustão uma vezinha mais com o indicador espetado e ar de inocente, basta olhar e já lá estou, uma míngua de palmo e no entanto daqui do alto tão grande, tão mais grande que o maior Rei de braços abertos, dou aos braços como a imitação de um pássaro louco preso e enganado pelo petisco já que das pernas, traição, nem medida se lhes pode confiar.
Num instante peço mais uma vez, de seguida quero acordar.
 
 

sexta-feira, 2 de outubro de 2015

C782 - Bibliotecas



Sentados ou de pé, portas fechadas em balouço agitado atiram-se ao caminho serpenteado entre buzinadelas e travagens ora suaves ora bruscas que na força da inércia empurram corpos, pertences e letras de livros mal seguros entre dedos débeis a adiantarem-se à marca de olhos.
Onde é que eu ía?
Ai, espera que ainda estou na Rua do Arsenal e a página já me voou até à Praça do Comércio! E agora? Como é que agarro o resto da história?
Valha-nos o buraco no asfalto e a mestria do condutor que num ápice tudo se ajusta e o tempo se cola entre o fuso do lido e a memória do lembrado, assim nada se perdeu, nem heroínas de ficção nem passageiros de mão trocados na revistinha caída quando o descontrole do pé do motorista se enfureceu como personagem capital de alguma noticia cor-de-rosa que capeia a gordas, chavões sobre traição, adultério, desengano à morte, parentescos que bem apurados ainda o tornam o avô do último ocupante do assento do fundo.
Muito se lê e cultiva nesta biblioteca ambulante, quilómetros do vão e vêm em formato analógico e do mais moderno para inveja dos que carregam com o calhamaço a tiracolo, pendente no sono pesado por tanto lhe gastar a frase que adivinhe-se pelo tamanho, o esforço de tal leitura.
Ai, chapéus, chapéus há muitos!


 
(in As fantásticas aventuras do C782, Dezembro 2014)

quinta-feira, 1 de outubro de 2015

Memória sabática (3 - Preparativos)



Neste primeiro estava tudo tratado, tudo comprado com cheiro de novo, indiscritíveis cheiros como um narcótico que vergavam a mente e me puxavam obsessiva toda a minha atenção para os cadernos, lápis, o colorido dos livros de lombada muito dura, a borracha inteira de cantos suaves, as canetas, tudo deitado na caixa de madeira com lingueta escorregadia. E a pasta. A pasta que haveria de acompanhar anos fora até escurecer o couro e esfolar-se nos rebordos, alças penduradas aos ombros ou no arrasto da desmoralização da nota pequena da prova de aritmética que escondia guardada entre sapatilhas ou frascos com joaninhas.
A bata branca de abotoar nas costas.
A impedir desejos de liberdade aos braços pequenos, às mãos pequenas de chegar rápido às casas e saír desse domínio.
Mas também os adoráveis sapatos de pala azuis escuros, tão azuis que pareciam roxos, a condizer com os joelhos e as canelas e uma ou outra manhã, na alma quando a mãe me haveria de deixar à porta da escola a dizer porta-te bem que agora já és crescida.