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quarta-feira, 30 de setembro de 2015

letra pequena



De alguma forma, menos bem, menos mal, aqui vou achando o sangue que me faz viva e completa na mancha que me enche para a visibilidade além contornos quando nas linhas preenchidas mesmo que nas falhas revisitadas de olhos pedidos a outros de mim acompanhada, sinta a transpiração do que já fui ao instante rugoso entre paredes como testemunhas silenciosas que partem sem acusação, sem defesa, companhias a meias entre luz de artificio ou a de naturais proveniências nem sempre a do Sol, nem sempre a da Lua, tantas a da chama que se dispara como idéia que aquece e incendeia no desassossego da comichão do verbo a pulsar nitidez no pedido da escrita [escreve-me], de alguma forma, de alguma forma eu sem letras[menos bem, menos mal] não sou.
 
 

terça-feira, 29 de setembro de 2015

Travessias do Rio - 2



Seguram-se todos ao mesmo mas alguns mergulham de olhos fechados para esquecer o perigo e levam a travessia na ignorância do já passou, preferível não saber, antes sem avistar do que saber e tentar escapar. Mas os que se agarram, vão mudos na mão presa ao pedaço de metal e plástico do telemóvel, um cinto de segurança indispensável para se fazerem aos minutos de água que lambem estas duas metades de terra que um dia estiveram coladas. Proximidades de que ninguém tem memória mas cá andamos a pagar as favas.
Há pouquíssimos na minha loucura, olhos postos janelas fora a debitar manhã nascida ou o paquete agigantado que ondula o liquido e agonia estômagos vazios, morro pelos demais, escoo-me de tanta tristeza até doer no peito uma solidão que seca o Rio a fundo.
 
 
in Travessias do Rio, Setembro 2015

segunda-feira, 28 de setembro de 2015

Uniões


 
A estranha atracção que desde infante me levava a ralhetes, condenatórias recomendações e até ultimatos arrastou-se além adolescência, firme idade.
E a verdade é que se o poder parental já não está presente para com o seu dedo e olhares reprovadores me porem a bufar por conta da selecção das minhas amizades, ainda hoje alguns dos que passam gostam de largar algum comentário singular mas disfarçado, por causa das peculiaridades dos que comigo nos tornamos próximo.
Dantes não era porque a escolha fosse acertada sobre gente mal-educada, com aspecto sujo ou até criminoso. Eram simplesmente diferentes, a maioria das vezes incomuns, solitários, tidos como anormais, doidos, pouco inteligentes ou demasiado inteligentes. Actualmente é porque o físico não os favoreceu, ou os favoreceu demasiado, ou porque falam sem ninguém entender ou porque não dizem palavra, porque acompanham este ou aquela, ou porque não sabem nada da vida dele e apenas se deitam a adivinhar.
Evidentemente eu farei parte deste grupo de anormais, serei eu mesma pasto de conversa durante os minutos onde não há mais tema até que os cafés chegam e se paga a conta do almoço, esquecendo de seguida tudo o resto e todas as pessoas e emoção que veste verdadeiramente o conhecimento do eu. Não eu de mim, mas o de qualquer um dos raros e incomuns que me unem nesta diferença tão única, perfeita e bela que nos atrai e completa nos nossos imensos defeitos de gente feia.

domingo, 27 de setembro de 2015

Só para contrariar (o post imediatamente abaixo)


 
 
Por volta da uma estacionou o carro e buzinou, dois toques fortes e curtos. Alguém veio à varanda ver quem era mas não ele, ela repetiu e demorou-se um pouco num terceiro aperto ao som, sorriu sarcasticamente e pensou que alguém assomara à varanda, não ele, mas ele furioso por saber que era ela a autora. Depois saíu do carro, apertou o comando, entrou no prédio a ouvir do bip dos fechos automáticos do veículo imobilizado, viu-se no espelho do elevador, séria, rodou, saiu no 4º andar e encostou-se à ombreira da porta sem premir a campainha.
Ele abriu, sobrolho empinado, uma mão na algibeira.
- Tiveste saudades?
- Não.
- Ainda bem. Detesto angústias. Quando nos perdermos podes sentir saudades, até lá...
- A buzina. Para mim e para o prédio inteiro!
- Gostava mais que fosse para o mundo inteiro!
- Pouco faltou...
- Então será na próxima, hoje tenho a minha missão cumprida.
- Não vais entrar...
- Não. Tenho-te agora aqui, aos meus olhos, todo o mundo sabe o quanto te amo ou quase.
Ele puxou-a para si com o braço livre, encostou a boca à orelha dela.
- Na próxima não toques a buzina... Deixa-me adivinhar que chegaste.
Ela afastou-se e encarou-o.
- E os vizinhos? O mundo? Vão estranhar o silêncio.
A porta fechou-se devagar.
 
 

sábado, 26 de setembro de 2015

Campo de Palavras (25)



Tenho vindo a gastar muito tempo com muitas palavras que não me arrepiam, palavras que falam de relatórios e se executam como remate em conclusões analíticas, outras sumarizadas a propósito de muitas palavras gastas em tempo de satélite.
Talvez tenha deixado de saber as palavras que falam de amor.
Porque as palavras que o usam para falar e o escrever consomem mais e doem e alegram, coisa que as outras que lhe chamam de valor, as tomo por insipidas. Não me trazem mais calor ou mais frio, são o que são para rotular trabalhos que foram feitos por pessoas que parecem não ter amor. Eu pareço não ter amor.
Tal é o poder do verbo, palavras iguais coladas a sentidos diferentes, pessoas amorosas - que decerto o serão - a mastigarem sílabas para alimentar o instante sem contudo se apegarem, noutra altura as mesmas sílabas e tão hálito doce as faría oferecer.
Demasiado tempo a degladiar palavras e nem sequer em lutas de poema, pobre tempo este em que se esfanica o verbo, interpreta a valia de pessoas pelo que delas se escuta ao longe e se valida em actas  pedindo-se a concordância de todos.
 
 

sexta-feira, 25 de setembro de 2015

A termo



 
Vir até aqui não me dá o direito de ser livre mas escapo-me até cá com a fugaz intenção de que os minutos contados servem para me libertar de olhos atingidos, vontades forçadas, muito cuspo engolido, chego e o ar atinge-me, o Sol abranda-me na sua capital força como se eu viesse dos mortos e não estivesse habituada à vida.
De outra que não a minha não acho vestígios.
Talvez restos de veículos que se movimentam rápido para chegar a uma tão igualmente liberdade procurada mas quem os leva não sei. Das gaivotas conversadeiras só uma apoiada a pé-coxinho em gozo de calor e não está para mim, roda o bico ao ver-me, torce o pescoço incomodada como se eu lhe roubasse algum pedaço do astro.
Deixo a minha liberdade a termo esvoaçar onde a gaivota tirou uma pausa, abro os braços e todo o leito do Rio me roça no ventre em velocidade excessiva para apreciar entre margens, não há tempo entre relógios, trocamos tarefas, o meu cuspo no seu piar.
Alguém me pede lume, aterro, a gaivota rasga um traço branco no céu muito azul. Nem o tempo de liberdade contado me foi dado, peço desculpa e invento que não fumo.

quinta-feira, 24 de setembro de 2015

O céu da boca (Palavras Reencontradas) 11


 
[...]
 
Deixou de ter importância, sem eu ter notado quando, o incómodo das satisfações até perceberem quem era quem deixou de fazer sentido, simplesmente deixava como estava e que entendessem como quisessem. Porque de verdadeiramente especial era a companhia que nos fazíamos, que nos temos, a possibilidade de eu falar deles sem a cauda das explicações de personagens, heterónimos, desdobramentos de personalidade, era eu a falar com eles, a divergirmos na opinião ou a gostarmos similarmente do mesmo.
Esse prazer não era o brincar das crianças em que se segura o boneco pelas costas e imitando os passinhos se afina a voz para lhe parecer outro na boca, saíndo perguntas ou respostas à medida da evolução do diálogo enquanto se trocam roupas bonitas ou se servem chazinhos na companhia do urso de tom grave. Havía o caminho do conhecimento, a desconfiança natural de quem se chega ao outro sem nada saber e depois se aproxima e deixa ou não entrar no peito e instalar-se ou meramente fazer-se visita social, a discordância e algumas vezes sim, a ruptura.
Destes nada sei deles.
Por vezes ofende-me o que leio feito pelo uso das minhas mãos.
 
[...]
 
(in O céu da boca (Palavras Reencontradas), Junho 2014)

quarta-feira, 23 de setembro de 2015

O dia igual à noite



Chegou para meu contentamento a estação do Outono.
Despromovida de letra maiúscula no novel acordo ortográfico bem como os demais meses dos Anos - que é coisa que aqui, diga-se, não tem cabimento algum - a minha estação favorita apareceu contrariando o que se esperaria dela, ou seja, mais frio, menos sol, uma pouca de chuva.
Mas tal como o bezerrado acordo, trocou as voltas e surgiu pintada de Verão pleno com temperaturas de morder as beiças de inveja aos meados de Agosto.
Equinócios de Outono ou o dia igual à noite, um tempo tanto de luz quanto o de bréu, uma imagem feita de poemas na verdade, já que a realidade não confere com esta igualdade de tempos medidos e até ao entrarmos no Inverno límpido vão-se os dias emagrecendo e os candeeiros de rua alumiando amarelentos na companhia das nossas sombras que de esguelha e amarrecadas empurram rápido para casa a fugir do frio.
Mas até lá, maravilhoso Outono de colorir passeios a fogo e ocre, redescoberta de árvores na sua robustez a despir-se, cheiros recordados e novos por serem sentidos outra vez e de novo e tantas vezes quantas se olha o Rio de um lado ao outro e se acha menino nele quando menina se pensa quanto tempo já passou... Nada, ainda agora comecei a ver.

terça-feira, 22 de setembro de 2015

Números


 
Derrapo na contagem de quantas janelas, quantos carros vermelhos, amuse-bouche de pensamentos obssessivos ou meros entreténs de quem hoje não se prendeu a conversa alheia, desinteresses da desgraça que se senta a meu lado e a publica para meia-dúzia ou outra que conta as últimas proezas sobre fezes da sua criança enquanto se equilibra no varão do autocarro, desperdícios de somas nos prédios que viajam mais rápido ou carros que perdem a tonalidade por se envergonharem de ficar para trás, eu ausento-me, talvez para dentro de uma dessas casas onde incautamente as portadas entreabertas deram autorização aos meus olhos e fiz-me ar a levantar cortinas e a pedir guarida de tanta tristeza sem mote no gasto das palavras, economia dos sentidos, miséria minha, será, que me escapei para não ouvir verbo e me passei para o lugar dos números, conforto-me neles, deduzo-lhes o meu engano nas derrapagens de novos itens, quantas árvores até chegar ao meu destino.
 
 

segunda-feira, 21 de setembro de 2015

Posologia



Um em sos. O alarme accionou como uma mão que agarra um braço sem sacudir, segura-o e aperta uma só vez, vigoroso ou intencional o bastante para o arrastar de onde quer que esteja e trazê-lo à superfície, olhos descerrados sem nada ver para além de um manto leitoso todavia outras realidades, novos planos, um martelar profundo sem som onde a ferida dói sem o golpe aberto.
Um com água empurrado, sos, pede-se o regresso ao fundo e ao esquecimento e ao buraco onde se perde o saber de se conhecer a vida e o entendimento, quem somos quando não estamos de pé senão embrulhos de carne sem memória, a mão conduz afrouxando o caminho de volta pelo químico do tamanho de um botão, nada, negro, branco.
Em caso de sos dois. Todas as cores abatidas a tiro de uma só ferida, ainda sem golpe, ainda cá apesar de pé e desembrulhado, horas gastas a abrir ponteiros enredados em confusão de tempo com fios de nervos e olhos fechados a pestanejarem contra a claridade do dia vencendo dolorido e latejante, as mãos que seguram os próprios braços e se afagam no consolo de que o alarme foi soado e nada dura para além do que é preciso.
 
 

domingo, 20 de setembro de 2015

Tão idêntico, tão diferente


 
Entrou com ar fechado e nada lhe perguntei, nestes momentos e embora não o conheça profundamente sinto que o melhor é esperar. Que venha dele o primeiro som, a vontade. Até lá, estou aqui, ele sabe, sabemo-nos ao mesmo nível, estas coisas de conhecer o outro é como um terreno minado, está tudo bem até pormos o pé no ponto X e lá se vai o corpo, a alma, restam pedaços que depois não contam nada.
Estou certa que fala mais para dentro do que o que tem coragem para verbalizar, tenho que acertar o momento exacto para o olhar nos olhos, não é falar e motivá-lo é apenas encarar as suas palavras mudas e estalar o silêncio contra as paredes, batem e devolvem-lhe o som que precisa ouvir, ouvir-se em si, dizer na minha presença para que haja uma realidade.
É agora.
Está assustado. As palavras fabricadas na boca, digo envolvidas com cuspo, batidas contra os dentes assustam mesmo, eu sei, o coração acelera e a respiração ao invés de ajudar a viver parece que atrapalha ainda mais.
Olha-me, é agora, de vez em quando sou eu, agarro os meus papéis, não quero que sinta que é tão importante que não tem fuga, seguro a minha caneta no ar, vamo-nos conhecendo à medida do que permitimos mas somos duas pessoas idênticas e acho que tal nunca havia acontecido por isso tão diferente, tão estranho, tão desconfiadamente sermos nós mesmos verdadeiros revelados.

sábado, 19 de setembro de 2015

[Des]Costurar


 
Que aborrecimento o dever. O ter de fazer sem escapatória ou alternativa. Não apetecer, não querer fazer, e ainda assim ter o fazer. O dever.
Contrariada amachuquei entre mãos o tecido, agulha presa entre lábios, a linha pendurada a meias com o pensamento, um nó pequenino a fechar, o metal do dedal pousado de parte a piscar-me o olho, sempre o repudiei, mais uma obrigação que contrariei, não me ajeito se ao menos fosses uma caneta escrevia nas baínhas e tudo seguia diferente mas não, pico o tecido e o dedo na fúria da pressa, há que despachar o dever, um pingo vermelho pontua os iis dos ais engolidos, linha comprida de mandriona diría a avó, se ao menos eu não soubesse fazer não haveria como fazer. O dever.
O gosto do sangue tem o sabor conhecido de já aqui ter estado, este ou outro pedaço de pano raivoso apertado entre mãos, uma voz do meu lado a guiar-me agulha e sitio onde furar, aqui, ali e aqui de novo, os pontos que unem tempos cingem as primeiras lições até ao saber fazer, gostar de saber fazer por já saber mas nunca ao dever.
Regresso às minhas mãos, ausentada na companhia de aprendiz lembrada, termino a tarefa sem sentir o dever a contrariar-me a vontade, implico comigo mesma por ter sido tão resistente naquele tempo em querer aprender e divirto-me nos pormenores de alguns pontos atamancados, paciências de quem me acompanhou e insistiu na perfeição sublinhando que saber nunca é demais por mais ridículo e ínfimo que aparente ser, amanhã vais precisar, basta-te a ti própria.
Corto a linha.

sexta-feira, 18 de setembro de 2015

Instantâneo - Episódio dez



Sirvo-te. No topo oposto da mesa estou eu. A tua língua é tua e a minha na minha boca terão cada uma a sua sensibilidade mas suponho que comungamos do mesmo prazer neste gosto desfrutado de café, leite, pão que deixa rasto de farinha como pegadas de fantasmas nos dedos que lhe tocam, no queixo, no riso da troça apontado um ao outro, no nariz. Falamos nos gestos com que quebramos a casca do ovo empinado, a acidez da laranja a escorregar no sumo bebido, nas doses repetidas de café. Silenciamo-nos ao olhar a janela, nada de grave por dizer ou solene por contar, as papilas gustativas despertas escondem-se no guardanapo a cuidar as comissuras, sorrisos, dedos distraídos a brincar com migalhas ou a picarem-se em restos da concha protectora do ovo. Primeiras palavras. Sirvo-te, mas com a mão ocupada na caneta e a outra na asa da caneca velha resta-me pouco movimento, há indubitavelmente na minha língua a memória do que imaginei sem ter comido, um quase sal de manteiga suada, o café instantâneo aos poucos foi perdendo o viço e revelou-se em toda a sua verdade, ficção e uma página escrita.
 
 

quinta-feira, 17 de setembro de 2015

Pim-Pam-Pum cada 5ª mata um!


 
Estas quintas que começam cada vez mais cedo, vêm de véspera, aparecem à toa na contagem que me obriga a olhar os dedos, pim-pam-pum cada 5ª mata um, um dia de quarta que pergunto se já é dia do boi, o do santo cabrão que me desnorteia na azarada frase só podía ser hoje que é dia dele e afinal cospem-me que ainda não, amanhã, curto como o perú a fatalidade da revisitação de qualquer coisa torta e desgraçada só por assim ser neste dia de olhar para as costas, o morto de peso que afinal todos me foram neste dia, vão lá contar para outro que coincidências todos têm uma vez que seja e a mim bastam -me as quintas, dias espalmados entre meios da semana e fugas com sabor fingido a liberdade, arrepios esgueirados em que entro descabelada pelo cheiro da pergunta do já é? para entrar a pés juntos no fincar do dia aguentando que não se escoe para o ralo do acabamento do dia seguinte no vislumbre da corrida e ainda tanto que fazer, ai quinta e nem sequer engreno a velocidade da brida para me disparar a luz a cortar a meta!
 
 

quarta-feira, 16 de setembro de 2015

Vozes de (Porque já deixei de ouvir)




- Então, ainda te dás a essas coisas dos escritos?
Apercebo-me  como está barulho à minha volta, nada que me tivesse perturbado até agora, porém neste momento uma surdina que conflitua com a minha própria capacidade de distinguir quem é quem, pestanejo, tento limpar baços em nítidas imagens e apontar nomes mentalmente dispersando o ruído que progride e invade todo o meu crâneo, não me ouço.
Não me ouço, falo surdamente, não me ouço e não vejo ao longe silhuetas que pareço reconhecer e não recordo como chamar, preciso de perguntar-lhes se me ouvem.
Há no entanto um som idêntico a um fio metálico espetado no meu ouvido que em simultâneo se mantém activo sem perder a intensidade da frequência na mistura do bruá geral.
- Lembro-me que escrever era uma coisa obsessiva para ti...
Desenho meios rostos, a outra face deixo-a para a Lua penso, para o que não ouço e não vejo, escrevo o meu nome de baptismo à direita, depois com a mão esquerda e consigo ler sempre da mesma forma ainda que pareça assinado por outrem, faço-o de pernas ao alto, à maneira árabe e mesmo com todo o barulho e sem perfeição nos contornos da distância é sempre o que reconheço como meu.
- Não dizes nada? Só eu é que falo?!
- Está aqui muito barulho... O que é que dizias?

terça-feira, 15 de setembro de 2015

Portas & Janelas - Esboço nº 22



Há portas que se fizeram para se manter fechadas encerrando como colarinhos subidos até ao alto do pescoço todo o pedacinho de pele, cuidados mais que o recato, mais que o silêncio prevalecido, uma aparente clausura de não-vida do que anda por trás delas, sabe-se quem lá mora, quem as fecha, mas não se sabe o que passa, como vão, as portas tapam tudo, escondem verdades ou mentiras e desta ignorância fabricam-se enredos e mitos, esgravatam-se na madeira o som que não perpassa das unhas que desencantam as interrogações sem retorno e à custa de tanto espreitar no joelho dobrado, o olho vesgo pelo buraco da fechadura, um dia vem um sopro e dá uma novidade.
Afinal não se vê nada, tudo plano lá para dentro, portas fechadas para o morto... E vem outro e diz que não, tudo vivo e muita festa! E chegam de outros lados em monte e acocorados e logo descobrem o crime, tanto sangue atrás de portas, por isso sempre fechadas. 
Corre a palavra, corre o vento, corre o tempo e quem quiser saber é passar a mão na aldraba, bater e pedir para entrar.



 (in Portas & Janelas, Outubro-2014)

Todas as fotografias da Colecção Portas & Janelas são da autoria de Eduardo Jorge Silva

segunda-feira, 14 de setembro de 2015

Travessias do Rio - 1



 
Ele estendeu-me o braço e eu aceitei, segurei com convicção, a minha mão aberta presa e ele ligado a mim, o braço dele frio a minha mão quente. O cacilheiro balouçou. A partir daqui não quis saber de nada mais. O Rio estava cinzento, alguém comentou alerta, alertas, deixei passar o resto do que disse porque não me interessava, na verdade só a salvação do marinheiro e aquela segurança do braço a que me prendi tomaram a minha vontade de vida, o que ía à volta podía afundar porque estou cansada de lamúrias e queixas e tragédias e uma bóia atirada quando me tentam sugar para o escuro é como um fósforo riscado mesmo que depois se consuma. O Rio clareou porque o dia abriu a boca, espreguiçou-se e fez-se às horas assim como todos os que entretanto se calaram com a conversa do alerta mudada para a bola ou para qualquer outra actividade, económica, social, sexual o que seja, que ninguém aguenta tanta maré cheia nem sempre vazia, o Rio muda e o marinheiro alcança o braço a outros enquanto eu salto sozinha, a minha mão quente pronta.
 
 
 
 
in Travessias do Rio, Setembro 2015

domingo, 13 de setembro de 2015

Visitas



Logo hoje que chuvisna tenho o sabor de mar a entrar-me pela boca, aquele gosto acre a salgar à roda dos lábios e que tentamos com a ponta da língua tocar até ao nariz, proezas de concurso enquanto se enxuga na toalha depois dos mergulhos e se sacode o pão caído na areia que treme entre os dedos frágeis e mirrados do gelo de tanto tempo de molho.
 
Será que dormes, não ouves o mesmo que eu, Rajá fresquinho, não sei como fiquei a gostar tanto de chocolate, aguadilhas cor-de-laranja a pintarem braços e cotovelos como índios e os bonequinhos de brinde que não sei onde foram parar, há mistérios na minha vida que nunca hei-de resolver por mais que pense neles, tu dormes?
 
Logo hoje que as pingas da chuva cantarolam no varandim e tantas saudades eu tinha mais ainda me deu dos dias de Verão, dos outros, dos que não posso ter, dos que a água se enxugou em água de chuva e agora me visita para me acordar.

sábado, 12 de setembro de 2015

Integral



Chega, dou um chega e basta e arrumo de vez comigo, empurro-me contra a parede e dispo-me deste aperto sufocante, liberta sou una de novo.
Dobro a dor cuidadosamente, incapaz de meter no escuro de gavetas sem o acerto das costuras, ombros direitos e alinhamento da fímbria que me manteve a pé, sem rugas e graciosa, agora arrumada, pretendida que não tenha uso ou fora de estação, fecho a gaveta e selo-a nos segundos de pensamento em que as mãos se pousam a guardar na simbologia do já passou, já passou e não custa nada e os olhos sublinham uma e duas vezes, sem hesitação abro a gaveta e olho a dor muito arrumada e muito limpa.
Minha.
Tiro-a e penduro-a onde a possa assistir junto às outras que não esqueço mas que não me incomodam, visto-as porque me são o que sou como una.
E nada mais me dói, estou completa de novo.
 
 

sexta-feira, 11 de setembro de 2015

P/B



Voz macia. Ía falando aos pedacinhos, calava-se quando ela falava. Voz macia. Ouvia-a a respirar devagar do outro lado da linha, muitas interrupções, três pontinhos imaginava, muitos pontinhos, uma fotografia com o fundo claramente desfocado ou sem o claramente porque nem sequer foi uma conversa, ela estava aflita e não quería denunciar o que lhe doía, fazia-se de grande, mulher crescida. Voz macia. Dava-lhe palavras de conforto sem serem considerações de conselho, nestes momentos ninguém está para ouvir isso, só se quer um ombro macio, um lenço se houver lágrimas. Voz macia, bem entendido. Demorava a dizer e ele deixava que ela demorasse, muitos pontinhos, acabavam a falar os dois, ele calava-se, ela seguia rápido e calava-se logo, um discurso com sabor de perguntas mas não deixava ele responder, retoricamente ela só quería uma fotografia onde estivesse bem. Voz macia. Desligaram.
Ele ficou a pensar nela.
Lembrou-se do beijo. Comemorações aparte, fora a questão do parentesco luso, essas coisitas que a punham de olhos arregalados, as conversas de riso com mão à frente da boca até sufocarem, só quería vê-la de parágrafos completos de novo, fotografias nítidas em que as afirmações tomam os contornos do branco e negro.
 
 

quinta-feira, 10 de setembro de 2015

Ter e não ter


 
 
Vou embora com a sensação de ter deixado qualquer coisa muito importante por fazer [até amanhã a todos], já ontem o mesmo e provavelmente esta agonia da falta vai durar até sentir que o deixar é haver nada por fazer porque não há [recolho o eco como a folha do dia arrancada, que bem que me faría se ainda houvessem calendários de folhas penduradas, encaracoladas nos cantos de tanto de se levantarem as pontas molhadas de saliva à procura do dia especial], o dia fecha-se com tudo do todo possível, restos permanecem agarrados ao que eu gostaria e isso não passa da minha imaginação [olho as biqueiras dos sapatos a despacharem ligeiro os passos e a ganharem distância do que deixei por fazer], fora isso o caderno entre fronteiras, clandestino, escondido na carteira insinua-se no que se despede e no que desejo, no que não há e sinto falta [vejo as minhas mãos desocupadas do que tanto quería mostrar em palmas estendidas], saio, portas fecham-se nas minhas costas, não ouço nada, não quero nada, tudo me é solitário desde que perdi o que não tenho a fazer.
 
 

quarta-feira, 9 de setembro de 2015

Saliva



Se pudesse desenroscava a cabeça e entalava-a entre joelhos, veio um golpe de cutelo e deu-me certeiro no pescoço, eu a mim digo, que mordo a língua não pelo arrependimento mas pelo arrepio que esta dor me está a custar na decisão executada.
E vai que não se fica na saliva engolida de calar em silêncio o que custa, custa. Ainda perguntam se dói, onde dói, porque dói, porque quero que doa, porque faço para ter dor.
Ah... Quase peço a morte aos berros a ver se espanto a multidão que não entende que a boca apertada não é promessa nem mau hálito, acaso sou de recato de palavras ou de sorriso para quem gosto, é mesmo dor de quem quer estar só e não espalhar o veneno deste mal-estar quando sei que o remédio é esperar a cicatriz acalmar até o tempo sobrepor na ferida aberta dos dias a temperança do enamoramento de outras palavras, novas palavras que me façam erguer a cabeça a despertar a sonoridade de velhas palavras.
Mas por agora dói, sinto um silvo que me agacha como se ardesse um corte na língua. Mordo-me.
 
 

terça-feira, 8 de setembro de 2015

Carta de despedida a quem conheceu o Viajar




Marinheiros,


Faz hoje um Ano que parti deste porto.

Cumpriu-se a viagem, quase a do Cabo da Circunferência, mais dia menos dia, encostando o bojo da nau a terra de verdade, outras nem tanto que só do canto da imaginação a alguns aportaram e mesmo assim quantos nativos a receberem a caravela, a aparelharem, a ajudarem na palavra o sopro de bons ventos para seguir outra vez caminho.

Viagens. Fizemos.
Eu sigo, levo-vos na minha tinta e sem juras nem promessa faço-me a marés guardando-vos para erguer em verbo que vos mereça na memória destes instantes que carrego feliz na tatuagem de mais um, dobra feita na aventura que partilhámos.

Este é um tempo de partir e fechar este diário de bordo.

Obrigado pelo tesouro que me ofereceram, pela vossa companhia.
 
 

segunda-feira, 7 de setembro de 2015

Tremem-me [os barcos, as palavras e o tempo]




Fico por aqui, os joelhos encostados ao cimento, os pés a sentirem o cimento, o peito a encarar o cimento. As mãos a tremer, o vento gozão a desfrutar do meu cigarro, nem uma gaivota para vir tirar uma palavra de mim. Daqui a nada há-de ser meio-dia e há-de rachar-se o que é completo do que há-de acabar, um jus ao nome das partidas e das chegadas dos barcos grandes que avisto a pontilhar o Rio como serei eu vista deles, pontos sem letras para pingar ou separar na respiração da necessidade de dizer espera, sem ar, mais, mais rápido, mais rápido que o vento que me comeu o gozo de dez minutos de cantarolar ou pensar no Outono ou nada.
Nada direi quando depois do dia for meio-dia e disser que as palavras me são importantes mesmo que tantas vezes me nasçam sem saber donde, que já cá devem andar desde sempre mesmo sem nos lembrarmos. Tremem-me as mãos como se tivesse medo do que vou fazer e a verdade é que nunca tenho medo de nada mas hoje o cimento é demasiado duro e tomou-me os pés, até o cigarro, perdão ao vento que afinal nem uma brisa corre, perdão aos barcos que cimentei.

domingo, 6 de setembro de 2015

Depois da fantasia a fantasia




Visto-me da que serei amanhã e depois e ainda nos vindouros, outros me verão de olhos novos por me porem atavios que me acham vão melhor, desconheciam em mim figurinos que se ajeitam na surpresa da novidade, admiro-me narcísica na imagem reflectida que será um passado, démodé estará na moda, logo eu que nunca fui de modas e sempre tracei os meus riscos a prender-me em prisão própria mas esta que enfia o vestido pela cabeça é a que sabe que se liberta de realidades, visto-me, serei outra para amanhã, experiências do que já sei a lembrar o toque do pano a roçar os ombros, ser olhos novos na fantasia antes de acontecer. Faço um vinco, o calor decalca as páginas da minha mão à memória do que me tornarei, sem roupa são apenas letras a contar o que não sabíam o que eu fazia.

sábado, 5 de setembro de 2015

[Preciso da tua] Vontade


 
É mesmo disto que preciso, que me obrigues a ficar e prendas nos braços os meus, os pulsos atados nas tuas mãos e os olhos nos meus fechados por não consentirem que frágil preciso de ser contrariada sem o ser, estou acostumada a outros papéis, não me permito a vulnerabilidades nem mesmo a mim sob receio da força que esse poder possa ter e dobrar-me, sentar-me, fazer pensar para dentro do que cai como derrocadas. Mas hoje. Hoje preciso de seguir e ser puxada de volta ao teu corpo, ao teu peito, aconchegada até debater-me e perder a vontade e sentir a vontade de ficar. Não falar nada. Ficar sem ar até ter o peito pronto para se abrir num grito e pedir a chance de mais uma vez e tu adivinhares antes de tudo chegar e beijares-me a testa sem medo da minha boca no som. É disto tudo que preciso, de te saber pronto para me acolheres quando injusta pareço não te precisar mas tens a força que preciso para me parares quando quero ir e fazes-me ficar. Hoje, porque sabes que é hoje, sem aviso, as tuas mãos a prender os meus braços no teu peito.

sexta-feira, 4 de setembro de 2015

Bom Fim de Semana



Desejo a todos um bom fim de semana, há uma mensagem audível de sorrisos que se espera consigam ver de mim ou nada será como todas as sextas, sobremesas que se deslizam na ponta do dedo até ao rapar dos olhos, este o último fim mas só eu sei, bom há-de sê-lo sempre mesmo sem as estórias embrulhadas em papel de faz-de-conta, desta feita até eu me deixo desaparecer no amachucado do conto lido, já está e venha outro, estórias de príncipes tão fortes que nem precisam de palavras ao final da semana a juntarem-se em era uma vez porque eles são essa vez, a única, e eu sou a emprestada que durante um tempo entreteve apetites em horário de expediente quase-quase. Do ponto final para a Letra Maiúscula do inicio do parágrafo escondo-me até partir das sextas-feiras desejadas de sorriso sincero enquanto também eu me alimentei do que me raparam, embrulho-me e faço-me ao cesto do lixo.
 
 

quinta-feira, 3 de setembro de 2015

Ficções e verdades ou a inversa



 
Podía aproveitar este pedaço e simplesmente contar verdades sobre gentes que conheço, coisas que assisti, presenciei, em tudo estive lá e agora como narrador voltar ao passado neste hoje em que o todo lido por outrém mais se aparenta como uma ficção. De nada adiantaria dizer e reforçar que se trata de vivências, pessoas de carne e osso, eu a que vi e ouvi de tantas vezes a sofrer e a rir e a pôr pedras em segredos confiados. Mesmo assim. Invenções de quem muito se perde à imaginação e nomeia sempre os homens como ele e elas como ela, a outra a que conta. Ou melhor, a que inventa, a que escreve. Na verdade, não inventaría nada, os meus limites estariam bordejados à procura do verbo que correspondesse ao que aconteceu, uma semelhança o mais nítida capaz que me fizesse vibrar como no instante daquele tempo, uma aproximação feita de ponte de palavras em que tudo se sente tão bem e tão fundo como se de novo fosse tão verdade que parece impossível de acontecer.

quarta-feira, 2 de setembro de 2015

Pacifica



Agora que tomei a decisão e a dor não é mais incómodo, é característica como parte memorável de mim, posso sentar-me e perder-me do espaço sem qualquer preocupação, tudo o que tenho são páginas lembradas do gosto, muitas vezes passei a língua nos lábios a humedecer a tinta com que as escrevi, recorrências antes do tempo do acontecido, acontecer porque me decidi, recordo-as porque há-de acontecer.
Quase me sabe bem esta dor, pacifica-me, não a antevejo no cristal das adivinhações com o brilho de quem piedosamente proclama uma intenção chamando a si os olhos, preciso deste golpe na privacidade para poder olhar sem pretender corajosa desviar-me quando não o sería ao colectvo. Decisões minhas, custos meus, mas cicatriz que amacio no afago de dias bons.


terça-feira, 1 de setembro de 2015

Estória de uma nau



Escrevi muitas palavras numa folha, dobrei-a em forma de barco, deitei-o à água e meti-me dentro.
Viajei.
À medida que aprendi com as gentes que fui encontrando, as palavras organizaram-se em história.
Então, escrevi no casco do barco por cima das letras, NAU e estórias nasceram para me entreter.
Viajei.
Muitas gentes vinham soprar para que a Nau encontrasse outras gentes e mais palavras inventassem novas estórias.
E um dia alguém bebeu toda a água.