Todos os textos são originais e propriedade exclusiva do autor, Gasolina (C.G.) in Árvore das Palavras. Não são permitidas cópias ou transcrições no todo ou/e em partes do seu conteúdo ou outras menções sem expressa autorização do proprietário.

segunda-feira, 31 de março de 2008

Quem quer?

E se eu chegasse desgrenhada, sapatos na mão, roupa descomposta gritando que hoje sería o dia?
Íam achar que eu estava doida.
E se desatasse a cantar a plenos pulmões sem cuidados na desafinação acompanhando pinotes e rodopios, pulos e ondulações de anca numa correría furiosa à vossa volta?
Íam achar que eu tinha enlouquecido.
E se tirasse a roupa e pedisse para me olharem?
Íam ter pena de mim.
E se contasse do que sei?
Íam ter medo de mim.
Atei o cabelo, calcei-me e até ajeitei a roupa ao corpo. Talvez me abane um pouco para lá e para cá dando roda à saia e sentido bem comportado aos olhos e à boca sorridente.
Calada.
Não precisam de fugir.
Mas confessem: Nunca vos apeteceu?

domingo, 30 de março de 2008

sábado, 29 de março de 2008

Fábrica de letras



Depois de tantas palavras escritas e tantas frases em sangue, muitas e variadas formas de chorar e rir, fazer amigos, sonhar, despertar amores e ódios, encher o peito de ar pela falta de ar que se sente nos suspiros aconchegados, beleza e tristeza, inveja e cumplicidade, liberdade e vicio, dilaceram-se ainda tantas e mais do que as que já aqui estão.

É provável que um dia haja em que a mão incapaz morra na presa da ferramenta da escrita, que se encrave o gesto metódico e que até o monstro do cansaço se deite acolhedor sobre o corpo e o dome na desistência batalhada. Será um dia normal. Será um dia diferente pela abstinência do acto tão costumado de sentar e deixar fluír, sem restrições, sem preparos, sem ensaios repetidos, sem apurar a ideía até aqui chegar limpa.

Cá por dentro continua a laboração no alimento contínuo da caldeira, perde-se a conta aos fogachos que ardem desde lentos braseiros até labaredas altas, há um movimento incessante sem dia e noite, come-se do que se produz, ateia-se do desperdicio e renova-se nas cinzas como verbo novo.

sexta-feira, 28 de março de 2008

O fio

Espetou com toda a sua força o varapau no buraco que escavara, retocou o prumo, repetiu o gesto a uns pares de metros com o outro, fechou o olho e delimitou uma linha imaginária a direito.
Depois enroscou-lhe as pernas e atou um fio de arame no topo, prendeu a ponta aos dentes e trepou à outra estaca esmerando-se no remate.
Experimentou a segurança, a extensão e a vibração provocadas.
Descalçou-se.
Galgou a pulso o pau e de pés em diagonal chamou gente, freguesia, prendeu a atenção nos gritos e promessas.
Acercaram-se.
De braços abertos equilibrou-se no principio da estrada de fio, abanando, tremelicando, arrancando suspiros, silvos e caras tapadas com as mãos de dedos afastados ao imitar o perigo da queda. Correu de passo ligeiro e felino até ao fim.
Aplausos.
Percurso inverso, mais rápido, ágil, profissional, agora de vista cerrada, sabe o caminho de cor, calcorreia vaidoso descuidando o fio para cá e para lá.
Bravos estalam com as palmas, contam-se as passagens de um lado ao outro.
Exulta-se.
Excita-se.
Um pássaro poisa na ponta do fio nas suas costas.
Gargalhadas.
Ele dobra-se e agradece narciso.
Mais gargalhadas, sente que não são dele.
Esquece-se de contar os passos, passou-lhe, um pormenor de somenos para quem é tão importante, ninguém notará, nunca perceberão, roda o pescoço para ver quem lhe faz sombra, apenas um passarinho.
Cai.

quinta-feira, 27 de março de 2008

Arnaldo Sem Cabeça Para Nada - 3ª e Ultima Parte

(continuação)



O telefone tocou estridente, rasgando a escuridão do serão avançado. Assustou-se que alguém o tivesse ouvido. Pegou no auscultador e disse a medo um “estou”. Do outro lado do fio a voz da mulher num ralhete das desoras, o jantar comido havia muito, a cozinha por arrumar.
Desligou o computador, despiu o colete largando-o nas costas da cadeira e saltou-lhe à lembrança o rigor dos horários.
Nessa noite dormiu mal, atrapalhado pelo sonho do doutor a rir e as “lindas” em uníssono a repetirem Se Me Chamas Naldinho, o colete teso mas animado de vida própria desfiando em folhas brancas o titulo em letras garrafais sombreadas por um lápis gigante que tomara o seu posto no Departamento de Tesouraria.
Chegou ao escritório com a promessa de esquecer a sua leviandade e retomar, como bom profissional, a tarefa de ensinar ao seu instruendo os meandros do sector. Mas a visão do colete abandonado nas costas da cadeira alarmou-o para o pequeno canudo de papel esquecido algures. Procurou por todo o lado e não conseguiu encontrá-lo. Uma tristeza profunda como um luto provocou-lhe um tremor e um novo canudo tombou-lhe no ombro. Apalpou a cabeça tentando descobrir a proveniência de tal fonte que lhe debitava aqueles poemas apócrifos mas desta vez o terror apossou-se do sisudo Sr.Vaz que apenas encontrou um crâneo pela metade, muito idêntico ao abatjour do pequeno candeeiro. Os dedos encontraram no topo desaparecido um buraco fundo que a medo vasculhou. Remexeu até. Sentiu papel a agitar-se entre os seus dedos como uma tômbola cheia de boletins a concurso. Retirou um, trémulo.
Desenrolou o papel amarelecido e leu o titulo SE ME CHAMAS.
Amachucou-o de imediato e cerrou-o no punho. Fechou os olhos e sentiu o ardor de umas lágrimas envergonhadas. Murmurou para si o que lhe estaria a acontecer e formula mágica, “já não tenho cabeça para nada”.
Na mão, uma força desenrolava-se, obrigando-o a esticar os dedos, a palma, o papel agigantando-se como um cenário: ao topo, a letras negras viu o titulo que já sabia, seguido pelo poema que – recordou – havia escrito como promessa do seu sonho de jovem.
Sentiu-se pequeno e execrável por se ter arrumado no esquecimento e dobrado a sua vida na ultima gaveta como fizera ao colete.
Gritou o poema de braços abertos: “Se me chamas é porque estou! E se o faço é porque sonho!”, declamava. E por cada verso proferido, rolos de facturas e notas de encomenda e outros papéis a rosa, amarelo e branco saltavam da sua cabeça como confeti atirado em dia de festa e Arnaldo ria e chorava e repetia infatigavelmente as linhas agora bem decoradas na ponta da língua.
Os funcionários que entretanto haviam chegado, comentavam baixinho “coitado” ou “ele bem dizia”, acrescido de uns sábios “foram tantos números que lhe fizeram isto”.
O doutor resolveu tomar conta da situação e chamou o providencial 112. Depois dirigiu-se ao Sr.Vaz e disse-lhe que estava tudo sob controle, que ele já sabia tudo e o Sr.Vaz só precisava era de descansar. Sentou-o à sua secretária e aconchegou-lhe o colete aos ombros, sussurrando-lhe que tudo estava bem. Depois dirigiu-se aos outros e pediu-lhes que fossem trabalhar, que já não havia nada para ver.
Arnaldo Vaz reparou na sua figura projectada no ecrã negro do monitor. Sorriu. A sua cabeça estava onde deveria estar, tinha recuperado tudo.
Os paramédicos entraram acompanhados pelo doutor. O Sr.Vaz deixou-se mansamente injectar e ser levado.
À porta da ambulância virou-se para o doutor e sorriu-lhe. Afagou-lhe o rosto e disse-lhe:
- “Não vais ter cabeça para nada. Mas se chamares os teus sonhos, ela volta. Ai, volta, volta”.
Entrou na ambulância e atirou-lhe o colete teso de tanto uso.

(in Verdadeiras Histórias, C.G. - 31/01/2007)

quarta-feira, 26 de março de 2008

Arnaldo Sem Cabeça Para Nada - 2ª Parte



(continuação)


Ficou sentado a olhar o monitor em sleeptime, negro, com uma janelinha a viajar de canto para canto.
Veio a noite, abriu a gaveta e vestiu o colete duro e áspero de tanto uso e a folha que intitulava um resto a branco impiedoso.
Ligou a luz do pequeno candeeiro de metal prateado, o quebra-luz em forma de tijela, a mão esquerda aquecida pela lâmpada de 40 watts.
Reparou na sua imagem reflectida no ecrã, o contorno da cabeça, o desenho das orelhas sobressaindo do crâneo, um pedaço de pescoço encimando os ombros estreitos. Rodou a cabeça ligeiramente e tentou avistar-se de perfil, o nariz rasgando o negro do monitor contra a luz projectada. Sorriu e notou como reflectida surgiu uma bochecha como um pequenino montinho junto ao olho. Depois experimentou desenhar aves com as duas mãos, as asas prontas a erguerem-se conforme afastava os dedos e deixava trespassar a luz sobre o negro do computador. E fez também um coelho com as duas orelhas espetadas, e depois um cão e até um busto de mulher e já agitado nesta profusão de sombras chinesas reparou então que já não via a sua cabeça a destacar-se. Olhou novamente e constatou que reflectido apareciam os seus ombros, o pescoço mas das orelhas e consequentemente da cabeça, nada.
Levantou-se de sopetão e voltou ao assento devagar, na tentativa de capturar todo o contorno. Tudo na mesma. Olhou para trás e não viu ninguém. Desligou a luz e mantendo o indicador no pequeno botão voltou a activá-la. Tudo na mesma, nada da cabeça. Repetiu consecutivamente o acto de acender e desligar o candeeiro. Levou receoso as duas mãos ao crâneo e tranquilizou-se de imediato por sentir a dureza dos ossos, a espessura do cabelo, as duas orelhas uma de cada lado como deve de ser, o nariz saliente da bola da cabeça. Voltou a mirar-se e mais uma vez, decapitado. Sussurrou que já não tinha cabeça para nada e de imediato sentiu uma comichão por dentro, sem saber se ele provinha do nariz ou da garganta e acto continuo caiu-lhe no ombro, um canudinho de papel fino, ratado nas pontas, amarelado de muitos anos guardado.
Desenrolou cuidadosamente o que se assemelhava a uma rifa de quermesse e descobriu no seu tamanho original palavras que se atrapalhavam em linhas e exclamações num trambolhão de sentidos.
Reconheceu a sua letra mas não recordava porque razão havia copiado aqueles versos, nem quem era o autor, nem tão pouco a intenção de ter guardado um poema tão melado. Leu o titulo e esgaçou a vista ao constatar a semelhança com o seu actual ensaio falhado: SE ME CHAMAS. Mas aqui o poema prosseguia, tombado do titulo, prometendo a quem o chamava sempre lhe acudir, segurar a mão direita na pena molhada do sentimento forte da devoção, musa de encantamento, luz da vida e do existir.
Leu inúmeras vezes, algumas delas em voz alta. E cada vez que proferia os versos mais forte e agitado se sentia, tomado por um frenesim que o electrizava todo.


continua

terça-feira, 25 de março de 2008

Arnaldo Sem Cabeça Para Nada - 1ª Parte



Arnaldo Vaz, 46 anos de idade, casado e com um filho, natural da Capital, escriturário de profissão, sem uma falta ou baixa dada nos 25 anos de serviço na mesma empresa. Rigoroso nos horários, ainda anota a lápis afiado a canivete vistos nas notas de encomenda e veste nas manhãs frescas de Setembro quando o sol ainda não entrou pela janela banhando a sua secretária, um colete de jacquard tricotado pela sogra, que guarda meticulosamente dobrado na ultima gaveta da sua mesa e nunca foi lavado desde a sua estreia, vai para 12 anos.
Arnaldo Vaz é o Sr.Vaz.
O Sr.Vaz é o chefe do Departamento da Tesouraria.
Ao Sr.Vaz nunca falharam as contas e factura alguma ficou por cobrar.
O Sr.Vaz é sisudo mas competente.
O Sr.Vaz aguarda paciente a altura de se reformar e até lá há-de cumprir a sua missão de funcionário irrepreensível.
Mesmo que agora a empresa o ponha à prova, empregando com subsídios da Comunidade Europeia um estagiário imberbe, mal largado da capa e batina de Economia, para daqui a um ano o pôr à frente dos destinos do sector e dar algum sossego ao Sr.Vaz.
O Sr.Vaz foi nomeado tutor do recém doutor.
O Sr.Vaz é o professor do doutor.
O doutor ensinou o Sr.Vaz a potencializar o uso do computador e até já o iniciou no MSN e a fazer-se passar por um rapaz de 20 anos a trocar galanteios com umas gajas a quem chama “lindas”.
O Sr.Vaz tem chegado mais cedo na hora do seu almoço para ter tempo para as “lindas” e assim não influenciar a sua produtividade.
E teve tanto êxito nas suas ingressões solitárias que resolveu arriscar e assinar “Arnaldo”.
As “lindas” adoraram e as “fofas” também, e agora até já o tratam por “Naldinho”.
Naldinho anda nervoso e não se consegue concentrar na conferência das notas e das guias e dos duplicados e de um monte de papelada amarela e rosa e branca e volta e meia, suspira e ouvem-no murmurar que já não tem cabeça para nada.
O Sr.Vaz está muito cansado, acham os outros.
O Sr.Vaz quer surpreender as suas fãs cibernautas e até já achou uma forma de o fazer. Foi fácil. Bastou recordar-se dos seus tempos de jovem, mais jovem que o doutor, em que riscava numa sebenta poemas nostálgicos.
Sentado à secretária, o almoço a pesar no estomâgo pela pressa, agarrou no lápis pontiagudo e ensaiou o titulo, em letra bem desenhada, grande, com alguns retoques sombreados nas vogais: SE ME CHAMAS.
Às duas chegaram os funcionários para o período da tarde e o Sr.Vaz permanecia ainda no titulo, o lápis parado sobre a folha branca, o olhar perdido naquela ausência da palavra. Repetiu que já não tinha cabeça para nada e guardou a folha baptizada junto ao colete dobrado.
No resto do expediente respondeu afirmativa e ambiguamente a todas as questões levantadas pelo doutor e quando este lhe perguntou o que tinha, repetiu um “sim, sim”, fitando-o nos olhos.
Arnaldo Vaz permaneceu no escritório depois de todos terem dito até amanhã.

continua

segunda-feira, 24 de março de 2008

Em pontas. Sempre.



Agora são de resina. Almofadadas. Dantes a ponta era feita de um toco de madeira, revestido a gaze fina. Sentía-se tudo, as unhas a irem para dentro, a pele a endurecer até calejar num formigueiro, nem o fio de sangue que sujava o exterior acetinado incomodava e quanto mais apertadas melhor, seda de pele pele de sapatilha.

Mas doía. E ainda hoje dói. Talvez me doa mesmo e mais e de uma forma em jeito de golfada pela ausência da dor que as que restaram e se acentuam são as da deformação, as do osso proeminente a aguentar o peso quanto mais pluma melhor.

Quanto mais flor melhor. Quanto menos contacto com o solo melhor, alar, voar, partir.

SENTIR

Saír deste mundo e não sentir que a vida tem dias que são o poço atrás das costas.

domingo, 23 de março de 2008

sábado, 22 de março de 2008

O escritor



Impiedosa a folha que magoa na brancura a espera do que nada chega, nem tinta nem idéia, nem esforço que valha a pena o primeiro risco ensaiando a evolução de trilhos por onde se há-de caminhar até pôr os pés à porta de casa. Chama-lhe crise de identidade, branca do escritor, naufrágio de letras que as há mas a mão não consegue segurar uma que se prenda a outra até formar o cordão da frase que o leve até à margem (in)segura de gostar do que escreve.

Talvez amanhã a inspiração o visite e o diálogo traga nota mais sobre o mote a discorrer... mas amanhã já foi ontem e a aridez parece ter feito de todas as veias um sangue sem guelra. Espraia-se no desalento, quase dorme sobre o nada dito, embrulha-se em coisa batida como se inovado a sentisse para logo a seguir recordar a autoria.

Recorrentes, imagens do passado atravessam a passos largos a sala onde se debate, escondem-se, persegue-as de braços esticados por entre a penumbra da memória e a lucidez da dor, um beijo na boca de uma musa que o chama e desaparece, tropeça nos degraus que o levam até ao sotão que se atafulha de minusculas e reticentes perguntas que se empoeiram pelos tempos.

Entende... e até sorri, segura a caneta entre dedos, debruça-se. Aceita a janela aberta como entrada, espreita, remexe nas questões, compreende que na folha branca nem sempre haverão certezas mas inesgotável é a razão que o porquê interroga ao homem que escreve.

sexta-feira, 21 de março de 2008

Ecos



Diz-se que tudo o que fazemos tem um reflexo, uma imagem copiada das nossas acções que se transfere para um arquivo invisivel como um som que se propaga e se há-de fixar algures, que nós não o vemos, não o ouvimos, mas está lá.

Porém, quando a gravidade do acto se projecta em estilhaços e danifica ao redor, apercebemo-nos de consequências quase imediatas, quiçá uma causa-efeito, um pagamento com troco do qual muitas vezes se evita a mão esticada para receber a demasia, o arrependimento e remorso instalam-se, tenta-se a marcha-atrás mas a mudança não engata, nega-se, apela-se à recusa, enjeitam-se madrastas verdades de outros e impermeável a estas manobras, lá prossegue o eco na recolha do gesto.

Deste decalque eu quero crer que as palavras se hão-de projectar também para esse infinito, apraz-me sonhar que as que aqui deixo a tinta vagueiam entre estrelas e nebulosas, cometas e outros mundos desconhecidos e no dia da minha viagem as hei-de ler outra vez.

quinta-feira, 20 de março de 2008

Clausuras forçadas




Encerrada no próprio corpo, debatendo-se entre delírios e tiritares fez-se ovo de si, unindo cabeça e pés no mesmo aro completo mas imperfeito.

Rolou na forma arredondada para lá e para cá, talvez o balanço quebrasse a casca e os males em fio escorressem para um esgoto que não se sabe onde e se pensa sempre entupido. Não passa, demora a passar esta prisão dos musculos e dos ossos que não obedece ao querer e se debate em chicotadas que lhe ferem o olfacto e o paladar.

De armas conhece a força das antigas mezinhas, vapores que alargam a couraça do peito e obrigam o humus pegajoso a descolar-se arranhado do interior em que parasita escarnecendo da modernidade dos tempos, vive desde sempre, até matou muitos e há que aproveitar que a sua duração é ditadora mas curta como o reinado de uma mosca.

Aos poucos entra a luz que penetra na escuridão de quatro dias na horizontal, sacode o dorso, verticaliza o esqueleto, experimenta a fraqueza do andar, mal dá para perceber da enfermidade que a tomou que não há sangue nem feridas, carrega-se do seu peso aligeirado, uma quase troça da batalha que a debilitou, escapa-se, corre pelos campos da idéia e senhora de si de novo, graceja combalida, Que gripe!

quarta-feira, 19 de março de 2008

Bebedeira


Abssinticamente
Sarcasticamente
Revelo enroladas
Nas viperinas verdades
O peso volátil e intenso.
Dos olhos
Fechados
Tombados
Cerro momentos
Nas pegadas apagadas
O passo travesso e errado.
Sonoramente
Murmuradamente
Canto fados
Nas desgraçadas vontades
O verbo esquecido e baralhado.
Das mãos
Abertas
Espelhadas
Ofereço segredos
Nas lágrimas salgadas
O copo vazio e vomitado.
.
(in Toda a Poesia Despida, C.G. - 29/01/2008)

terça-feira, 18 de março de 2008

Um dia quem sabe, nem eu...



Talvez por uma vez, uma só que seja, haja permissão para mim.

Nesse dia encosto as canetas amestradas, os papéis que se encaracolam nos vincos mágicos da tinta azul, fecho-os dentro da escrivaninha a darem murros e pontapés no escuro e apodero-me como um ditador deste plano de tantas linhas e nesse mesmo dia que não se esquecerá por ser apenas mais um dia igual a tantos outros, escreverei sobre mim.


E será absolutamente fantástico porque sairão de mim verdadeiras frases sobre uma pessoa fantasticamente normal e muito provavelmente ao lerem-me na avidez de uma descoberta tão bem guardada, a revelação se faça no bocejo, na falta do tempero em tanto verbo nutrido e que sabe a encruado!


Porém! Ah! Porém, se achata a manteiga no pão, assim o diría Queiroz, não tropeçarão em bocados fanados nem em imitações de realeza falida, nem em lágrimas de frasco que as há artificiais ou muito menos na pose para o boneco, no riso a meia boca, no provérbio desfocado e promessa! qualquer nódoa ortográfica!


...Até lá... Irão saíndo na cadência das vagas os homens e mulheres que daqui a pouco libertarei, para de novo ocuparem o que é seu. Este bocado de nada.

segunda-feira, 17 de março de 2008

Crónicas do Tejo (XIII)



Há vento que encrista o rio.

Da Arrábida só uma mancha como se fosse um monte de farófias.

De Lisboa, um pardo céu.

No meio do Tejo, serpenteando entre correntes e distracções do Mestre, avisto uma estrada de luz vinda do alto, tocando directamente na beirada da minha margem. Só ali há vida, coisa que mexa...nem mesmo eu, aqui solta neste entremeio de terras tenho a certeza de que esteja acordada, desperta para uma semana que ninguém sabe se é de Primavera se dum Inverno vingativo.

Aprecio a água que tomba, uma sopa gigante acrescentada para tanta gente, que da boa vontade todos vivem, da acção só uns quantos sabem navegar.


(in Crónicas do Tejo, C.G.- 21/05/2006)

domingo, 16 de março de 2008

sábado, 15 de março de 2008

Despir e Renascer


Chegou o tempo em que as folhas douradas foram varridas pela mão do homem e pelo sopro do vento. Chega o tempo de verdes hastes em que a brisa adocicada desponta o invisivel.
Despem-se os cinzas, renovam-se os brancos e amarelos, embebedam-se as manhãs no azul malhado de um orvalho puro. A terra abre-se, brota, pare sem grito nem dor uma vontade incontrolável do novo, sem defeito nem mancha de vergonha. Não há cicatrizes de um tempo parado e depois aberto, há uma explosão de rasgos que atira como seu o que de seu guardou e agora dá-se, exibe-se, revela-se, pavoneia-se na luxuria única de sempre surgir mais belo, porque de luas guardado tirou apenas da memória o que nunca se foi.

sexta-feira, 14 de março de 2008

Discursos

Tinha tantas coisas para te dizer, até já tinha ensaiado um discurso onde primeiro eu falava e tu apenas ouvías, de inicio no desinteresse de quem escuta um sermão mas depois, à medida que as minhas palavras íam saindo ordenadas na pontaria ao teu coração avançavas o tronco para mim, os olhos postos ora nos meus ora na minha boca sob o receio de deixares caír uma sílaba que fosse.

É verdade, pensei em tudo, até nas respostas que me darías, curtas, cizeladas a afirmativas e negativas e depois o troco de mim num acrescento de verbos no infinitivo a puxar pelas tuas frases que gerundicamente apelaríam a uma constante, ainda, ainda dura, ainda mexe, ainda magoa, ainda perturba o silêncio e deste fazemos tempestades onde para não nos perdermos atamos a mão aos nós dos dedos.

Planeei tudo.

Só não contava que não viesses.

quinta-feira, 13 de março de 2008

Ab (eXtracto)



Há os que o têm, há os que parecem que têm, há também os que gostaríam de ter e os que por muito que se esfarrapem nunca terão.

Aquela coisa invisivel que não se denomina e não se publicita é latente nuns quantos, desenvolve-se na contagem do crescimento medido e do encorpamento da alma, motiva-se pelo simples gosto do saber, oferece-se sem troca sonante na mira da divida e cobre esses de um manto onde a ousadia é o têxtil.

A entrada sem alarido mas que faz rodar todas as cabeças, a presença que enche um estádio, a voz baixa mas que se projecta mais além e cata um ouvido preparado, a frase educada e polida que discorre a idéia sem recorrência agitada de outros membros ou onomatopeias, o saber ser-se dimensionado sem a invasão a terreno alheio, a conquista pela frontalidade, a mão que iça mesmo no risco da queda.

Essência, sumo, o extracto de quem é vero na dinâmica do ser e do estar.

Dos ab, de prefixo usam tudo, emprestam-se de tudo, nomeiam-se no governo miserável da ablação, da amputação dextra do carácter, endireitam-se numa espinal medula roubada aqui e ali às escuras sem cuidar da serventía, do número, da medida na facilidade de no alheio terem meio caminho feito, desperdiçam o que não entendem, metem para dentro das calças as sobras de que não sabem a utilidade, acabam a chafurdar no que nunca lhes coube.

Não se inventam, ab sorvem-se até se tornarem um avesso.

quarta-feira, 12 de março de 2008

Cartas ao Poeta (XII)





Poeta, Poeta, Poeta!!!



Eu ouço-te e entendo-te.

Algumas vezes compreendo-te menos bem, pois a saudade turva-me o fio do pensamento e em vez de solto e fluido, deixo-o borbulhar em vagas desordenadas que tropeçam sem medida no primitivo das emoções.

Faço perguntas, chamo-te e rogo pragas a esse silêncio que te veste. Na verdade, esse silêncio encanta-me e desespera-me.

Por isso, quando abro o meu dia contigo sossego o coração, adoço a alma, releio velhas cartas e guardo-te na caixinha dos meus tesouros.


(in Cartas ao Poeta, C.G.- 04/04/2007)

terça-feira, 11 de março de 2008

A boca do coração





Se afastasse tudo de mim, o cabelo longo e anelado do rosto, o verde dos olhos, as sardas salpicadas na ponta do nariz e deixasse para te dizer apenas a minha boca, será que me entenderías melhor? Será que engolirías as palavras que digo, as pausadas e aquelas mal entendidas entre a gargalhada?


E as que não digo? Todas as que guardo no silêncio e peço que adivinhes como ditas num ar de confissão, solene, irrepetíveis como todas as coisas tremendas que se oferecem um dia? Julgar-me-ías menos ou de outra forma só porque nas mãos nada tería para além disso mesmo, mãos...


Se todo o meu corpo fala que te diz cada uma das suas partes, ou apenas a boca fala em nome do colectivo, um senhor feudal que encarcera na defesa a mentira e a verdade de tudo o que quero afastar para te centrar na atenção única do som das palavras que deixo escapar?


Hoje nada mais direi, deixo a ti essa faculdade de me pores a mão no lado esquerdo, dizem que mora aí o coração, ouve o que ele te diz.

segunda-feira, 10 de março de 2008

Cumplices

Primeiro dá-lhe a mão, ela aperta-a. Duas vezes, rápido, de mansinho, a dizer que o sente. Ele também, mas não vai olhar para ela, vai tentar adivinhar o que lhe vai no peito, no sorriso húmido, pôr palavras bonitas e encantadas na boca que vê mexer devagar, esperar um pouco para lhe ouvir no som o que já viu no desejo.

De todas as vezes será a primeira, a estreia do toque no amornado código de se saberem perto. Talvez se queimem, talvez o lume que lhes bombeia o musculo agitado desvie em morrinha até àquelas mão atadas mas ninguém vê, ninguém sabe que quem caminha no jardim não é só um homem e uma mulher que não se olham mas que sorriem sem trocar verbo.

São parceiros de um acto único, uma conspiração sem projecto ou plano, encobrem-se no querer um ao outro, escondem dos demais o que agigantam entre quatro paredes e no entanto, é vê-los tão iguais, tão pares a seus pares.

Agora é tempo de no som falarem, proferirem fogo e atingidos pelo unívoco do projéctil dilacerarem mundo fora o que do seu mundo falam tão simples.

- Já te disse que te amo?

domingo, 9 de março de 2008

sábado, 8 de março de 2008

Por Santiago



Há na imaginação do homem que retorna a casa um caminho verde pontilhado de branco em margaridas muito abertas. Lembra cada seixo que ovala as curvas que sobem até ao monte, lá onde o topo é o mundo e de onde segue mão em pala o voo da ave que plana nas asas abertas a procura de presa descuidada. Aí consegue ouvir o vento, o silvo que o desafia a entregar-se aos ares como o pássaro e deixa-se ir, por agora deixa-se ir embalado nessa memória que é a única que o leva até lá que nas costas só tem a terra ou o braço do companheiro de lutas e este já não sonha.


Olha o céu, desavergonhadamente azul não tarda virá o anil e depois tudo escuro pela noite que há-de escorrer eterna, ri das últimas horas, ri da vida, ri do caminho que o leva até casa mas chora da força que empunhou na defesa da sua palavra, do seu castelo fortificado no carácter e crença, aviso aos inimigos, aqui há Homem.


Há na imaginação do homem que acredita uma bandeira sempre hasteada a vermelho e verde, um grito que cala no pudor do respeito, hoje regressa a casa, Santiago espera-o.



Para o Santiago, com um beijo

sexta-feira, 7 de março de 2008

Por Favor!


POR FAVOR!
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Amanhã não me desejem bom dia internacional da mulher!
.
Que esse é um dia de Natal, todos os dias em que as mulheres o queiram ser, por completas, inteiras, com direito a dizer sim e não e se há um dia da mulher também o tem de haver para os homens!
.
Dia Feliz para todos.

quinta-feira, 6 de março de 2008

A Sereia: Cauda e Barbatanas

Nessa noite decidiu que tinha de a conhecer, mas de perto, falar com ela, tocá-la e muito principalmente constatar que aquilo que o peitoril da varanda dela escondia não era uma cauda de peixe, mas um par de pernas altas e finas que lhe davam aquela imagem de estátua comprida.
Procurou e sondou e foi bater-lhe à porta às véspera de uma nova lua cheia.
Ela abriu apenas uma fresta da porta, protegida por uma corrente de segurança e sorriu-lhe.
Ele respirou de alivio ao verificar duas pernas que se erguiam do chão de madeira, como estacas que aguentam uma roseira carregada. O sorriso aberto e franco emoldurava-se nuns lábios carnudos de uma pele tão fina que brilhava. Pediu para entrar e ía começar a explicar-lhe que era o vizinho do prédio da frente mas ela fechou-lhe a porta. Ele sentiu o mundo a abrir-se e a despenhar-se naquele buraco imaginário. Pelo menos talvez acabassem agora aqueles pesadelos medonhos…
Rodou o sentido dos pés para seguir o seu caminho e esquecer aquele episódio mas, surpreendido ouviu a voz que meses antes o tinha despertado numa noite de verão; olhou para trás e viu-a de porta aberta, camisola de cavas, delineando a silhueta esguia e alta. Ela fez um gesto com a mão convidando-o a entrar, que ele devagar demorou a compreender por lhe parecer uma fantasia impossível de realizar.
Ela fechou a porta e abraçou-o: ele sentiu os seios dela muito duros, compactos contra o seu tronco.
Beijou-a, apertando-a contra si, testas ao mesmo nível, a respiração no ouvido um do outro, o calor numa troca de vontade igual. As mãos dele tomaram numa brutalidade o peito dela, que sussurrava e repetia “vai, vai”. Tirou a camisola e lançou-a para o espaço: ele ficou ali a admirar o que apenas tinha visto ao longe, aqueles pequenos triângulos de bikini marcados a branco por uma falta de sol. Ela sacudiu a cabeleira e meneou a cabeça à esquerda, os lábios dele entreabriram-se para em pequenos pedaços de pele apertada passar a língua quente e húmida. E demorou-se a pô-la fora de si e a ele também. Despiu-se e preparado para concretizar o que nunca tinha conseguido nos seus sonhos e pesadelos, rodou-a e tomou-a de costas procurando uma entrada suave.
De olhos fechados completamente esquecido das escamas da cauda do seu imaginário, passou as mãos pelas nádegas dela, firmes e macias e apontando a sua vontade avançou decidido.
Mas sentiu-se resvalar como uma travagem brusca na gravilha solta…Tentou novamente e de novo o mesmo e ela a arfar pela demora do que queria.
Ele então, de palma aberta tocou-a pelo meio das pernas altas e sem abrir os olhos espantou-se por encontrar o caminho fechado.
Rodou-a, agitando a cabeleira dela pela volta brusca.
E gritou que o que estava à sua frente não era uma sereia com cauda de peixe era um homo erectus com tronco de mulher.
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(in Contos da Fogueira, C.G.-20/11/2005)

quarta-feira, 5 de março de 2008

A Sereia: Tronco


Era uma noite típica de Verão, morna, envolvente, de um azul profundo de veludo e um halo amarelo pintado pela lua gorda que estava cheia. Apetecia andar na rua, estar numa esplanada, conversar e rir sobre coisas inúteis, deixar o tempo passar devagar…
Ele não apreciava confusão, nem multidões nem barulho, por isso deixava-se estar numa lânguida posição na espreguiçadeira que tinha na varanda da sua casa, absorvendo os sons do mundo, de olhos fechados, apenas sentindo a carícia do estio a sussurrar-lhe no tronco nu.
Esteve assim sem tempo medido, chegou mesmo a dormitar, de quando em vez a buzina de um carro ou uma gargalhada a trazerem-lhe os sentidos de volta; mas voltava àquele abandono saboroso e sem preocupação, deixando-se ir.
A certa altura apercebeu-se que o chamavam: abriu os olhos, soergueu-se a custo apoiando as mãos nos braços de madeira da cadeira funda ficando em posição de partida; levantou-se e espreitou junto ao peitoril da varanda para o passeio lá em baixo, longe, distante que estava do seu 5º andar. Não viu ninguém. Que horas seriam? Entrou dentro de casa e espevitou os olhos para o mostrador do relógio a marcar os ponteiros para lá das 3. Inquiriu-se se teria mesmo dormido profundamente…e ouviu de novo uma voz a chamá-lo. Voltou à varanda e mais uma vez indagou junto à entrada do prédio. Nada. Ninguém. Correu a vista pelos edifícios em frente. Tudo escuro, só a lua lá no alto, gorda e farta. Ficou ali a cheirar o ar, as narinas dilatadas para a noite que fechava a cidade. E de repente, descortinou no prédio defronte de si uma luzinha amarelada, difusa, que fazia destacar o contorno de alguém também na janela. Apurou a vista mas não conseguia distinguir muito bem…até que teve a certeza absoluta de se tratar de uma mulher pois viu o perfil de uma cabeleira longa a ondular pelo jeito da cabeça.
O seu primeiro instinto foi agachar-se e ficar protegido pelo muro da varanda, de cócoras como se houvera sido descoberto nalguma falta, numa indiscrição do olhar; depois, cuidadoso, esticou o pescoço até a vista atingir a paisagem de novo; e confirmou, agora o castanho dos olhos afiados completamente habituado àquele azul nocturno, que era uma mulher. Alta, apercebia-se, mais alta do que o habitual, longilínea, cabelo comprido, braços finos. Ficou à coca, o coração a bater como se o pudesse ouvir, naquela atitude de voyeur na eminência de ser descoberto…perguntava-se sobre a identificação de tal figura e resolveu atrevido, demonstrar a sua presença. Levantou-se devolvendo à estatura uma presença anunciada. Apercebeu-se que ela reparou na sua presença porque a viu endireitar-se daquele meneio de cabelo e debruçado como querendo aproximar a distância entre os dois edifícios, foi surpreendido que a viu tirar a peça de roupa pela cabeça e deixá-la esvoaçar da altura do prédio até aterrar no passeio.
Abriu a boca como não querendo acreditar no que via, naquele tronco completamente nu, os seios apercebia-se, mais claros com marcas de um biquini reduzido a dois triângulos minúsculos por ausência do sol naquela parte do corpo; ela tocou-se e ele encheu o peito de ar.
Então, fora de si, assobiou.
Ela parou naquele toque e abriu os braços desenhando na noite um T perfeito. A lua iluminava brandamente a figura dela e ele voltou a assobiar descarado. E viu então, um par de mãos extra a rodear a cintura dela, fechando-se no umbigo como um cinto. A cabeça dela tombou de novo sobre o lado esquerdo enquanto as mãos subiam até ao peito e a apertavam, deslizavam, afagavam, ora tapando ora cobrindo as marcas brancas do biquini. Ele pestanejou e então teve a certeza de que ela estava acompanhada e as mãos sobressalentes eram de um homem.
Recolheu-se de imediato dentro de casa, o coração quase a saltar pela boca num medo de ter sido detectado.
Mas a curiosidade tão forte como nunca havia experimentado, levaram-no por detrás dos cortinados finos a espreitar para aquela varanda fantástica: agora eram um par pegado em beijos e abraços, as cabeças tocando-se, a dela sacudindo a cabeleira, ele dobrado sobre o peito dela. Estava fascinado. Depois sorriu por saber-se abrigado mas observando tudo. E até falou consigo próprio quando viu que o homem a virava e pelas costas a cópula se iniciou. Não quis perder nada, nenhum pormenor: o balanço do corpo indiciava os movimentos ritmados, as mãos dela e dele alinhadas em quatro sustentavam no peitoril o aumento do acto.
Ficou ali até ela se dobrar para fora da varanda e receou que o homem a empurrasse. Mas não, tinham chegado à consumação apenas e agora recolhiam-se e apagavam a luz amarelada.
Continuou um pouco mais envolto no tecido dos cortinados mas mais nenhum movimento aconteceu, veio à varanda olhou a lua, nada surgiu e decidiu-se por dormir na sua cama.
Mas o sono não vinha e a imagem daquela mulher mais alta do que era habitual não o largava, envolvia-se nele, nos seus lençóis e quando exausto já o dia despontava pela madrugada, adormeceu a sonhar que ela era uma sereia e que a tocava nos seios, a beijava no pescoço e nos lábios, a afagava na cabeleira longa e solta…mas, desespero! Da cintura para baixo era tão só um peixe! Como entrar nela?! E o sonho tornou-se num pesadelo pois por mais voltas que lhe desse só encontrava escamas!
Passou mal esse dia e outros, que o sonho mau perseguia-o nas noites em que ansioso, procurava da sua varanda a cena uma única vez vista no prédio defronte do seu.
De quando em vez, apercebia-se da luz amarelenta na casa dela e esperançado achava que nessa noite voltaria a repetir as sensações tão estranhas que tinha tido.
De cheia, a Lua passou pelas suas outras fases e regressou gorda e grande como de costume.
Tudo se repetiu menos o assobio dele.

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(in Contos da Fogueira, C.G.-20/11/2005)

terça-feira, 4 de março de 2008

Contos Curtos Quase Escuros - O camaleão



Na suposta intenção de se mostrar diferente, um quase chic, excêntrico, mais não era do que uma amálgama de outros, captados aqui e ali pela apreciação velada do gosto no tique ou no gesto delicado pela vida que deixava crescer na colheita dos que com ele se cruzavam.

Imitava o trejeito, o timbre, o passo, ensaiava em frente ao espelho até se satsifazer na comunhão da parecença, falava consigo próprio adorando a última descoberta ajeitando-lhe outras que achara e já muito treinadas encaixava na sua forma de estar.

No fundo compunha-se de retalhos, que de si pouco se recordava e de cada vez que no pesadelo nocturno se vía numa infância perdida em olhos de adultos, despertava atormentado por algum dia retornar àquilo que seu pai tinha sido, ébrio no mundo, perdido de laços.

Era agradável o seu estar e a sua companhia que afinal os outros encontravam sempre de si um conjunto nele exposto, um tanto deles próprios, mas rápido se incomodavam com a fragilidade da composição, um castelo de cartas que ao menor sopro não se sustinha e descaía no disfarce de várias capas.

Levou a vida assim, aos bocados, uma espécie de papier-maché humano e quando suspirou pela última vez não souberam que lápide lhe marmorear nas palavras já que de tantos era feito.
Plantaram-no na vala comum com uma etiqueta no pé que dizia camaleão.

(in Contos Escuros Quase Escuros, C.G. 01/03/2008)

segunda-feira, 3 de março de 2008

Sonhar é preciso



Sento-me sobre passados e conselhos dos mais avisados que não devo esperar pelo que não se vê.

Já sei, já mo disseram muitas vezes, tantas que agora me dou a luxos de esquecê-los e de mouca troçar do que gritam. Também me falaram de esperança e de utopias. Rio-me... Vem-me à memória um Abril que já ninguém esperava e não respondo.

Falam-me de ter os pés assentes na terra mas só me ligo à terra quando danço. Ou quando canto. Ou quando escrevo desalmadamente. Ou quando deitada no chão húmido de uma serra calada deixo o céu azul abafar-me no peito, braços abertos a sentir a imensidão do mundo que posso abarcar num abraço só. Ou na partilha de um gosto comum, na gargalhada sem razão alguma apenas a de tontería.

Não sei que fazer desta vida sem o sonho, sem a sonhar mil e uma vezes e mil e uma vezes de forma tão diferente e sempre contrariar-me na oportunidade de morrer devagarinho no conforto simpático de saber que o amanhã me bate à porta fardado, de embrulho na mão e me estende com um bom-dia ensaiado este é o seu dia de hoje, todo programado!


(não é que rimei?!)

domingo, 2 de março de 2008

sábado, 1 de março de 2008

Março


Mês três.


Acho-me de malas feitas para seguir nesta viagem meses fora, o degelo da solidão permite agora que parta sem olhar para trás.


Ganhei força, ânimo, sinto raízes como uma planta vingada na terra que a acolhe, exibo-me ainda vagem, tenra mas hei-de chegar a flor e até espalhar pólen e outras sementes de mim.

Servirão para depois fazer o caminho de retorno, mas para a frente, que isto tudo é um ciclo que se completa no começo e no fim, um aro que se fecha sem marca de soldadura, porém sempre novo, sempre renovado na esperança e no conhecimento alcançado de tanto me calejar nas mãos as malas feitas, refeitas, desfeitas, sabidas de olhos fechados onde se esconde a roupa suja e onde se acha o aroma de lavado.


E neste mês visto-me de novo, tenho companhia na viagem.


(in Calendários, C.G. -01-03-2008)