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sábado, 9 de novembro de 2013

Crónicas de um Bazófias - 3ª


 
Pela mão da Mãe, sempre de tailleur e de saltos altos, condenadamente a enterrarem-se nos torrões que fazíam o caminho até à paragem da camioneta que nos levaríam até ao trolei e neste sempre a descer, a Ponte de Santa Clara muito branca à esquerda. À direita, eu tinha medo. Havia um morro em rocha e uma escadinha que serpenteava até ao alto onde os Pais me tinham dito haver um convento. Sentía frio quando passava por ali, só o esquecia quando atingíamos o plano e vía o bulicio da cidade. Descíamos, as montras das pastelarias piscavam-me os olhos, mas os cremes eram-me interditos. O pão de deus era-me passado para a mão, não te sujes, segura bem. Eu só quería pular, correr, ver as cores que me despertavam histórias e fantasias e o dedo a indicar perguntas, como se chama aquele mar? É um rio, Como se chama o Rio? É o Bazófias, É o quê? É o Mondego, não foi isso que tu disseste, estás a mentir e não se diz mentiras que é feio! É o Mondego, nunca te esqueças dele. Não, nunca me vou esquecer.
 
 

sexta-feira, 8 de novembro de 2013

Túnel



Até onde os extremos se tocam ou se opõem afastando-se para distâncias incapazes de serem medidas pelo senso do homem, que de frases elipticas em que estes se chegam a atingir também eu piamente cheguei a crer e agora... bem, agora nem tanto, que se o pico da alegria me é trampolim para saltos que nunca pensei, a dor é bem mais a mola que impulsiona a dimensões que nunca houvera descoberto não fosse cortada por ela.
Achar não ser capaz, pensar não ter mais força e no fundo do fundo desconhecido de nós mesmos, de mim própria que tão bem conheço [e nem tanto, afinal], uma réstia de um pó que ainda ergue e empurra e leva, limites, fragilidades, ténue luz, um fiapo. Mas vou. Quando achei e me disse não conseguir mais por achar ter derramado o sangue da alma, aquele diferente de outras veias.
O extremo da escuridão e da cegueira e da dor a diluirem-se à medida que a força recuperada no tempo entra numa aguarela de mãos, sorrisos, claridade e lembranças de ser feliz.
 
 

quinta-feira, 7 de novembro de 2013

Campo de Palavras (13)



 
A sensação de ouvir, ler, sentir, degustar nos olhos a simplicidade de duas palavras pelo desempenho de um trabalho é dos melhores presentes recebidos.
Bom trabalho. Ou apenas Muito bem.
Ser recompensado através do gesto verbal ou escrito é tão materialmente eficaz quanto uma coisa, pois a palavra torna-se a dimensão do presente imaginado e logo, muito maior do que qualquer outra gratificação comprada. Esse é o verdadeiro valor da palavra. O momento em que o reconhecimento entre géneros se dá sem expectativa de troca, oferecer o que de si se é a outrém como verdade.
Para além da banalização das palavras, do seu significado há o motivo e a intenção, fica uma memória, uma alegria, momentos de palavras boas que se repercutem em palavras boas a despontar em campo fértil.
 
 

quarta-feira, 6 de novembro de 2013

Pensar



A mim o que me apoquenta é a rotina. A normalização, a norma, o formato, o molde, o standard, a massa, o igual de todos os dias sem pensar que a diferença é a beleza do próprio pensamento no despertar que nos destaca no bloco cinzento que cumpre sem interrogação porque mandaram e se mandaram é porque é assim e se assim é assim será para tudo e para todos sem diferença, mesmo que à força e de calçadeira a acção se tenha que encaixar na vida. Repetição da repetição, nem relógio de ecos pois se o minuto passado nem do mesmo respirar se fez dos apoquentos consumidos e a mim agita, trantorna, transborda.
Pensar cansa, suspiraram-me.
Pensar gasta, ensinaram-me há pouco tempo.
Pensar ilumina, é o que sinto.
 
 

terça-feira, 5 de novembro de 2013

A estrada



 
A certa altura caminha-se sózinho, a mão do nosso lado está lá, aquece-nos e ampara-nos mas sabemos que o carreiro é nosso e a decisão de a ele nos fazermos a nenhum outro juízo poderá ser apontado senão ao próprio, já não há desculpas para a tenrura da idade nem influências sobre estilos de vida, o estilo de vida é ser-se assim, é ter o poder da opção.
Caminhar, caminhar sempre mesmo que aparente fazê-lo às arrecuas ou num passo enviusado, a escolha solitária da estrada que parece tão nua por deserta de sinais, pistas, um simples atalho que poupe a dor das pernas na busca não se sabe bem do quê e tão profundamente se deseja no intimo o que não se explica, a felicidade, um conta-gotas que pinga para tão logo secar na lingua ávida que arfa na continuada senda da caminhada.
Cansaços, vontade de sentar e desistir e o caminho a andar numa lenta passagem a pedir o esforço da tentativa... A certa altura achamos que caminhamos sózinhos mas surpreendentemente se descobre, maravilhosamente se desperta, quase assustadoramente se reconhece pequenos nadas que nos restaram dos caminhos de outros que nos amaram. Decalcados na nossa memória como mapas. E seguimos. Porque a nossa vez de emprestarmos os mapas há-de chegar.
 
 

segunda-feira, 4 de novembro de 2013

Olhar com Vista sobre o Rio (10)




O marinheiro de olhos azuis deu-me a mão e senti-lhe o frio dos ossos da tua água penetrada pela noite que arrasta na travessia entre margens, cabos que me são cordas endurecem-lhe calos que me seguraram as palmas, tentaste a minha queda, balanços de quem está bravo, uma ira ciumenta de amante despeitado, quase arrancas sem me levares, açoites de cacilheiro e urros para dar medo a quem veste valentia.
 
Cuidado diz baixo o marinheiro de olhos azuis e o azul dos olhos é o Tejo tingido plácido, dois Rios transbordados, um que me reclama e um que me avisa, afasto-me e fico pequenina a meio de tanta água, nunca o lado de lá encolhe, é sempre ilusão achar que o que é grande possa alguma vez ter outro tamanho.


(in Olhar com Vista sobre o Rio, 2012)

domingo, 3 de novembro de 2013

Que tome conta


 
Quando se sentar no corpo, vestir o invólucro sobejando pregas e idéias caídas por não sabê-las onde arrumar e a essência do todo rumar de lá para cá alternando destino com incerteza da meta no intermeio do fio da realidade da terra plana e da terra só por si vista, em que a importância de uma visita no bater da porta terá a dimensão de um Domingo ou de um dia comum na semana a que se perdeu o nome enquanto se procura o chinelo a fazer par a um luva porque não se lembra que caminhar de pé se faz crescido quando ainda se escuta os risos da infância e se olha para trás à busca do rosto de quem nos chama pequenino, deixá-la sentar-se, repito, a velhice a sentar-se no corpo e a tomar conta.


sábado, 2 de novembro de 2013

Portas & Janelas - Esboço nº 5




Empinar cartas em V inversos ou contar a estória de ti vai dar no mesmo, tudo em meia-dúzia de palavras ou uns quantos dias que no caso não houve tempo capaz de nos segurar como também não o é nos jogos de cartas empilhadas, basta um passo apressado ou um suspiro e tudo se desmorona espalhado, um plano só sem graça nem tino e quem olha aponta dizendo na certeza que se tratam apenas de cartas de um baralho mal arrumado.
Ao alto, sempre ao alto, até na ponta dos pés tentava chegar-te e mal te debruçavas a mim, olhava-te num plano de eu pequena e tu no céu, águas furtadas próximas de um sonho onde eu fechava os olhos e nos imaginava enroscados ao frio de um Inverno por chegar e os pequenos quadrados de vidro da janela a deixarem ver a noite da tarde a escorregar devagarinho sem nos importarmos com nada.
Tudo mentira, era Verão a pino e o calor encarniçava as telhas que desforravam o cómodo e da janela só me apontavas ponteiros apressados a vestirem-me o tombo da claridade.
Um dia não voltei. E tu não me chamaste. As cartas servem para jogar, estão arrumadas numa caixa, a tua pequena janela fechada e num V derrubado, altiva e medrosamente debruçada numa estória de um só plano em telhados perfeitos de carne viva.
 
 
 

(Portas & Janelas, Agosto-2013)

Todas as fotografias da Colecção Portas & Janelas são da autoria de Eduardo Jorge Silva

sexta-feira, 1 de novembro de 2013

7 Anos de Árvore*



Saltam os dedos um a um e contam-se sete, dizem, um número de sorte, cabalístico, para mim que prefiro os pares e nem tanto de algarismos sirvo o meu mundo nem dei por aqui chegar, só notei a
árvore a crescer, foram linhas e mais linhas,  foi a vida a viver e eu dentro dela, eu e a árvore, eu e as árvores das vidas, umas a subirem e a florescerem na estação própria, umas quantas a definharem, ainda outras abatidas.
A das palavras enroupou-se no tronco e ramos em verbo mais ou menos constante consoante a vontade da luz, nunca interrompido sempre livre e idêntico à sua natureza, vir quando apetece, voltar a campo de frutos mesmo que tombados pelo chão quando a mão tem ensejo de os agarrar, apenas passar e olhar sem manifesto porque há dias de noite que a copa se cerra e os olhos só querem adivinhar contornos.
Por enquanto afago folhas nas palavras marcadas que saiem por entre dedos, não as conto, deixo-as ir como vento que penteia a Árvore, acaricia o tempo de aqui estarmos as duas.



* sem esquecer a malograda Flor da Palavra