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segunda-feira, 31 de agosto de 2015

Átrio



Há-de parecer um convite, mês rasgado até parecer que não tinha fim e afoito ainda intrometer-se na semana como se fora visita de casa, daquelas que vão passando logo para o cómodo confortável e instalam-se sem a barreira dos pés compassados que se pedem no gesto da mão ainda à porta, transfigurações de tranca invisível que separam a segurança dos que habitam e dos que tentam ser parte.
Chegou sem ter partido, um 31 sem fazer ruído e a deixar burburinho de contas mas a mexer na cabeça, será que há bebida de jeito para servir e biscoitos, e bolachas, ou figos secos, ou outra coisa de entreter a boca para remoer conversa até se achar uma frase perfeita e não se deixar passar do átrio da entrada, afinal já chega, outro tempo e a esta hora e neste dia, tão fora de propósito, nada a calhar, quem sabe mais logo, para o no Ano seguinte talvez, andamos todos tão cansados que nem nos apercebemos que já acabou e tudo o que se avista é o reflexo do que pudemos ter.

domingo, 30 de agosto de 2015

Por minhas mãos




O mal é ser bom e achar-se que nunca acabará.
O mal é um pequeno fiozinho começar a formar-se em borboto e deste atar-se em nó e acabar-se em corda que liberta pendurada no muro da fuga.
O mal é acabar com o bom balançado na corda inventada antes que se torne mau e se saia pela porta vestido de defunto.
O mal é achar-se que se é corajoso antes de se acabar quando ainda sabe tão bem.
O mal é que tudo acaba um dia, seja bom seja mau, e antes que acabem a mim o que me é, decido eu qual o dia do fim.
Mas dói à mesma e tanto que quase apetece esperar.
 
 

sábado, 29 de agosto de 2015

Diário de uma omnipresença




O meu Pai referia algumas vezes que quem pretendia sentar-se em duas cadeiras ao mesmo tempo acabava mal sentado. No principio do entendimento às suas palavras, eu achava aquilo um tremendo disparate, coisa de adulto, coisa de pessoa velha, como todos são velhos à vista dos que têm mais anos que nós. Mas à medida que a compreensão foi crescendo dentro de mim, percebi finalmente o que queríam dizer duas cadeiras para uma só pessoa com um único traseiro: É que dedicar a atenção a mais que um objectivo não sai tarefa perfeita.
Ora isto para quem é perfeccionista, é exacerbar até ao limite.
E tão ao extremo que acaba mal, faz envenenar como todos os vícios.
Não me curei, confesso, mas aprendi na maior parte, a dosear e até a ponderar se tão paternais e sábias palavras [ainda se me]aplicam, pois a multiplicação a que a vida obriga no cumprimento rigoroso de tantos e tão diversos actos, sempre com elegância, disponibilidade empurram no silêncio dos segundos antes do dormir para a pergunta se estou toda ou se omnipresenças, alguma de mim adormeceu estoirada entre cadeiras...

sexta-feira, 28 de agosto de 2015

Rodar, desfazer e rir



Para as piruetas treina-se muito, é necessário equilíbrio, noção de espaço. Mas como todas as crianças, não deixei de fazer o que todas fazem, como rodar continuadamente de olhos fechados até ficar tonta e sem tino, trocar as pernas e caír. Dizía-se que depois tínhamos que desfazer as voltas e rodar sem parar no sentido contrário. Claro que isto não evitava tontura alguma e por vezes, náuseas, mas o divertido da brincadeira era observar a falta de domínio, a bebedeira dos sentidos, o descontrole próprio e o riso histérico de todos.
Ao fim de uma semana de trabalho, sinto que rodei continuadamente no mesmo sentido como um parafuso apertado. Não de olhos fechados, mas muito abertos, tão abertos que agora quase não os consigo fechar.
Talvez deva desfazer este nó rodando no sentido inverso, rápido, para que as pálpebras se amoleçam e desçam sobre os globos oculares dando descanso a tanta fealdade. Devo entontecer, tenho de entontecer, é urgente que perca o equilíbrio e que troque as pernas e que caia redonda. De olhos fechados. E ainda a pensar que giro, imóvel no chão, que venham os gatos, o cão e me trepem no seu jeito animal de amar sem condições.

quinta-feira, 27 de agosto de 2015

Passeio no terraço



Passos longos e mentirosos [digo que vou a Sintra], o cimento do terraço recebe-me duro e a coluna insatisfeita retrai-se defensiva abrandando, devía ter trazido a bengala [no bolso o cartão magnético para entrar]. Vasculho o piso, é impressionante o que se encontra da noite para este sol das dez, as gaivotas belas são do mais mortífero, talvez por isso nem se avistem no céu que pelo chão deixaram um rasto de carcaças de pequenos pássaros e até de pombos já feitos, o tamanho das asas mortas mede-lhes a envergadura que não voa mais, entristeço-me, perco-me nas baforadas de um cigarro entretido em desculpas de saída, não fumado, mais olhado no horizonte da chama dos barcos que parecem queimar-se como pontos luminosos. [De Sintra] Nem rasto de verde para a esperança de menos calor, só azul como mil canetas vazando no tinteiro aguado do Tejo [dou o braço a Eça], reentramos ao sombrio casarão.

quarta-feira, 26 de agosto de 2015

Anteontem e hoje


 
Finco os dedos dos pés com força até sentir que a testa se engelha. A porta é a fronteira. Do lado de lá é saber o que sei e quería não saber, de cá é fincar os pés à espera de acordar de um pesadelo a somar aos tantos. Olhos abertos a ver a porta branco-concha e pedir que me impeça de eu ter o poder de pegar as chaves, rodar, abrir e ir de encontro ao que sei que não quero.
Ainda anteontem quería. Refilava, pugnava, defendia, amava e quería. Hoje, não sei se me importa e sendo assim não quero.
Finco os dedos dos pés com tanta força que me imagino a abrir buracos no chão de mármore e a despontarem-me raízes violentamente rápidas que se agarram ao centro da terra prendendo-me para sempre a este sitio e daqui assisto a tudo o que não quis arregalando os olhos ao ver o destino dos que como eu que não querendo não tiveram a sorte de se imaginarem árvore para se salvar.
 
Abro a porta.

terça-feira, 25 de agosto de 2015

O Chiado está a arder*


 
 
- Mãe, o Chiado está a arder!
Mas antes já eu vira o vermelho, o dourado e o negro com que se come no lume as cousas da lembrança que rápido se devoram amachucadas por mãos invisíveis que torcem e rebentam e depois se erguem ao lado na ousadia de nos mostrar a pequenez da humanidade perante o lume a destruír a memória.
Cá do alto, na travessia do rio numa manhã de Agosto tremenda de sol e Verão como não devería acontecer quando em dias de desgraça se pede por chuva para apagar o que se aponta, olha o fogo, olha o que arde, é Lisboa, e todos e mais eu levámos as mãos à boca para tolher o grito do não, para engasgar as lágrimas que guardámos para deitar sobre a labareda mais arisca que se atreveu a fazer-se de parede e de chão e a levar-nos os passos.
- Mãe, o Chiado está a arder!
As contas de vidro, as rendas e os brocados, os lanches mimados, as passeatas a propósito de coisa nenhuma, a escada rolante de sobe-e-desce, as músicas de fora e a calçada portuguesa muito lustrada de tanto salto alto encravado no pensamento que agarro com tanta força que queimo por dentro mais forte que o dia me leve este dia que me há-de esquecer.
- Mãe, o nosso Chiado está a arder!


 
*Memória de um dia, 27 anos depois

segunda-feira, 24 de agosto de 2015

Desacelerar



Desacelero, o vicio do tempo apressa-me e confunde, afinal gasta-se mais rápido, corro atrás dos meus próprios passos e a sombra nunca há-de ser de outrem. Outros entraram no mesmo circuito que eu, enganamo-nos todos, não nos avistamos, passamos entre frestas de nós próprios evitando o confronto da palavra e o toque da vista.
 
Desacelero, abrando tanto o meu passo que quase me sinto projectada em câmara lenta. Corredores de gentes deslocam ar, levantam-me o cabelo, batem em mim, desta vez não ultrapassaram obstáculos, atrapalharam-se na surpresa do meu filme mudo, não me pedem desculpa, seguem caminho girando levemente a cabeça para me fitarem uma última vez, perdão digo, não devo desacelerar em hora de ponta, perdão digo, há quem não me veja e por isso não me desvio, desacelero mas sigo a direito.
 
Derrubam-me, caiem, erguem-se, seguem sacudidos e estremunhados e imediatamente compostos da aceleração para entrarem nos eixos. A minha sombra ajuda-me a levantar. É tarde, se correr ainda chego a tempo.

domingo, 23 de agosto de 2015

O grito e o silêncio



A criança do lado vai fazendo perguntas, um espanhol pequenino e interrogativo como saído de uma gravação de uma boneca. A avó espanhola, de visita, responde a tudo com muitas palmas e cantoria, um som volumoso que deve ter o posto o gato a esconder-se num recanto.
Ouço-as distintamente na minha casa, depois a música infantil, o coro, de novo as palmas, os guinchos da pequena Maria excitada a repetir e a repetir como um eco qualquer coisa a que achou muita graça.
Vem a mãe, diz o seu nome na entoação portuguesa e com pedidos para reduzir o barulho e a Maria responde no mesmo nível sonoro de sempre mas em lusitana expressão que está a brincar com a abuela e desta só ouço preciosa, preciosa.
Imagino que a aperte e a beije entre as palavras replicadas mas só escuto os silvos dos gritos da criança bilingue, que sendo uma expressão natural não têm como berro que são qualquer nacionalidade, são apenas momentos felizes, alimento que guardará por toda uma vida e se tornarão jóias quando em Domingos baços lhe trarão brilho e claridade para sorrir. Silenciosamente.
 
 

sábado, 22 de agosto de 2015

Um dia de Verão


 
Vento, chuva e frio, o Inverno lá fora e na pele por dentro a arrepiarem a espera do banho que corre até o espelho se embaciar nos pensamentos.
A imobilidade do corpo atada a um fio que não sabe onde começou, pendura-se na apatia do que decorre, daqui a nada o banho transbordado da espuma a mais e trabalhos que não pediu quando achou que o que lhe podia caír bem era o tempero da imersão, quente, relaxante, esquecido dos ruídos do mundo, o abandono dos dias no momento dedicado a si, a lavagem destes pensamentos que a atordoam sem saber porquê.
Um dia após o outro, Inverno agora, um fardo que a arrepia na solidão que não sabe que é, tem desejos de coisa de sol que lhe lembra a casa dos pais mas não sabe explicar, só a atordoa.
Aperta a torneira e o jorro da água cessa, balanços de espuma vazam pelo agitar do seu braço, entra, mergulha, senta-se. Os azulejos brilhantes podiam ser o céu azul e a banheira o horizonte, um fio que não se sabe onde termina, vai até onde os olhos podem.
Mergulha e ouve o seu nome, os pais a dizerem para ter cuidado, não se afastar quando entrar no mar.

sexta-feira, 21 de agosto de 2015

Retorcida(mente)


 
Aos poucos habituei-me à inconstância do equilíbrio, nada a que não estivesse habituada, práticas de outra arte mas essa provocada no treino e no amor à beleza, dores que não doíam, deste balançar fui forçada às quedas e de tanto me debater pelo chão e insistentemente erguer-me na verticalidade, inventei meia posição, fingimentos de quem parece estar de pé mas vê o mundo de ponta-cabeça.
O estranho é que ao fim de algum tempo as realidades de dois mundos mesclam-se, dificilmente se entende o que se há-de perceber como andar a direito e o que se há-de responder como enviuzado, agora sim para logo a seguir ser não, é um nim que não me cabe pois nunca fui de meias tintas e por muito golpe de cintura que tenha, gosto de o aplicar nas tais artes em que me dedico por corpo e alma e aí, claro, dou-me toda, dobro-me e a seguir subo, subo até crescer onde não me apanham.
Estou cansada desta elasticidade em que me esticam em sentidos retorcidos, um dia vai-se que tudo tem um limite e no disparo da torção não vou aproveitar a ninguém, talvez nem a mim mesma.

quinta-feira, 20 de agosto de 2015

Jardim viajado


 
O que semeei e outros ajudaram a crescer gostando, tratando tão mais que eu, que afinal o trabalho simples foi o começo, lançar palavras e mostrá-las, ei-las, venham ver que não custa nada para além do sentir e apegar [ai que afinal até dói], irá breve ser jardim secreto de conversas do lembras-te quando ou a propósito daquela estória de Verão troquei letras com gente do outro lado do mundo que não conhecia e foi tão curioso lermos ao compasso mútuo a mesma (in)satisfação do fim.
O que semeei cresceu rápido demais e trouxe-me o engano do sempre.
Misturou a história com estórias plantadas, a vida com as vidas que fizemos nossas nesses minutos que cuidámos de sementes que se altearam em copas frondosas de árvores que pendiam frutos que aliviavam no açúcar o azedo do dia.
Daqui a pouco tempo esse lugar de prazer acaba, fecham-se em si as palavras e as árvores hão-de enterrar-se na sua própria sombra, restando na memória a felicidade do que dei e recebi da felicidade dos outros, deles o falarem-me quando viajaram comigo nesse jardim por nós feito.

quarta-feira, 19 de agosto de 2015

Pecados



Chegam todos a uma só voz, cacofonias, uma dor, provoco outra para me distrair na atenção dos puxões da negociação, chantagens do tempo, houvera aqui luz e a minha mão sería poder para fazer escuridão total.
Enlevam-me, leem-me toda na singularidade de eu lhes ser palavra e sorriem-me com paternalismo fazendo-me pequena de frágil no sentir, não sou mas sinto-me, procuro a chama da claridade e sopro no esforço vão do que nada há, nem se incomodam, apenas sorriem dando a mão à minha tão pequena e gasta, tão gasta e usada agora reparo, os dedos comidos e sujos que carinhosamente escondem dentro da concha das suas mãos de adulto, à vez e como uma bênção que se dá para seguir adiante perdoada.
Eu sem luz para desligar. Dorida de uma bênção por pecados que não creio, quando lhes senti a saudade não vieram, chegaram como água rebentada e trouxeram parentes que estranho e me tocam na privacidade das mãos sujas das minhas palavras como parte do meu corpo intimo.
Silencio no aparo da caneta, madrugada aberta. [Adormeço].

terça-feira, 18 de agosto de 2015

O pássaro-martelo (texto furioso)



A hesitação de ver melhor o caminho para cuidar os passos e evitar tropeções e quedas leva ao esquecimento do céu, das árvores, dos ninhos feitos por quem lá mora, uma alegoria dos sons que adivinhamos papagueados na repetição de que sejam pássaros mesmo que na forma nos sejam presente um martelo, que lindo martelo, e que bem canta, um chilreio inolvidável, e convencidos desta peça inanimada a soltar sons harmoniosos continuamos dobrados e cautelosos à procura de não cair, sempre a ver onde pôr os pés.
Claro que o peso às costas e a consequente deformação não tardam a revelar-se, quiçá o maravilhoso e enfeitiçado pássaro-martelo - vigoroso mas carregado -  que não há prevenção sem factura, mas a verdade é que de quedas nem uma para noticia e o caminho já usado é o melhor para ser feito. Depois, lembrar acima é coisa que não adianta muito... Vivemos na terra e sonhos nunca são o que se espera. Basta ver o pássaro, que afinal até voa.

segunda-feira, 17 de agosto de 2015

Lugar vazio



Há-de lá estar, pacientemente arrumada à minha espera a fingir-se de objecto invisível até eu ser, nós, invisíveis até fusão sermos, depois objecto no singular, a esta distância e na latitude dos olhos que a lembram a insignificância do préstimo.
Um dia há-de lá estar um lugar vazio e nenhuma falta sentir-se-á.
Eu estarei bem.
De ausente.
De lembrar a paciência da sua espera e do aborrecimento de me acomodar quando quero a fuga do corpo, outras escapatórias não entendo necessárias à pele e ossos mas reconhecendo-me na experiência dos anos, sei que vou sentir saudade de a não recordar. Pequenos defeitos que fotografei nas falhas que eu própria vinquei como sinal de vingança quando não consegui fugir, alturas, inclinações, um balanço sobre a mola safada a chiar nervos nos que escutam de dentes apertados, há-de lá estar mas eu não, nem a cova do meu peso nem o calor do corpo que se quis escapado, armazéns de fusão.

domingo, 16 de agosto de 2015

Colapso



Não importa, nada mais tem relevância. Não interessa se o cabelo cresceu e as raízes estão de outra cor e a pele está descuidada por falta de hidratante diário ou se a depilação não foi cumprida na agenda marcada. É secundário se a lingerie é de duas nações e não combina com a roupa de fora e os sapatos sejam de griffe mas há muito que tenham pedido a reforma. Que a maquilhagem seja perfeita mas nesse dia os lábios não deixaram marca de socorro que pudesse ser escutada, os olhos de cílios alongados não alcançaram alma viva que entendesse a mão esticada para valer à salvação.
Caiu. Afundou-se para dentro de um silêncio no meio de uma rua de Domingo de Verão.
Vieram ver, apontar e comentar, fazer análise ao perto do que disseram parecer belo ao longe e imperfeito no detalhe, culparam o despropósito em passeio público, o dia, a escolha, a afronta. Riram de mão na boca pela descompostura da morte.
 

sábado, 15 de agosto de 2015

[Regresso]Num pulo




Vou até lá num pulo, hoje hei-de fazer esta visita por diversas vezes, não me ficaram marcados muitos mais dias em que o regresso se possa apontar com tantas coordenadas, lembro-me deste no calendário, revisito-o sem evitar encontrões e apertos, para quê escolher atalhos se sei onde quero ir, ficar um pouco, sentar-me e ver tudo de novo e o novo sendo antigo é novo nascido por cada olhar que eu trouxer  [meu] onde o cenário belo se mantém estático para além do que a minha presença viva o possa alterar, colho desta o que não trouxe o ano passado, e no outro e naqueles antigos que já se foram porque passaram a ser imóveis desde que pestanejei, adormeci, esqueci que não estavas mais aqui do meu lado e agora sento-te porque te quero perto, o meu olhar a admirar-se na tua pele e em cada gota de suor que nos salgou naquele dia tão quente e na escassez de água que nos encarquilhava a língua e pesava nos olhos a falta de força, vou lá num pulo e ainda tenho genica para regressar a sorrir.
 
 

sexta-feira, 14 de agosto de 2015

Absolvições



Apesar da brisa quase me brincar nos cabelos e serenar a intensidade com que fervem os pensamentos estes não passam, não vão com o ar que se renova ou é novo na passagem quando se sente outra vez o sopro no rosto a aliviar o rubor do que pressinto ser febre no corpo a electrizar-me, quase raiva, quase cólera do que ficou suturado na boca, agora a fazer-me mal pelo estômago, toda eu entranhas de palavras tão bem colocadas e sonoras que se ficaram na insonoridade dos ruídos de dentro, foram-se como a brisa que brinca entre as mechas de cabelo e me despenteiam e por mais que acame e segure sempre se revolteiam e sossegam quando desisto. Falo comigo. Não são monólogos. São puxões de cabelo. E a brisa leva algumas palavras que não consigo distintamente perceber para que a dureza do cenário não se transforme em mim condenando à inscrição do que escuta perdido da minha boca, alivio o passo, a raiva, as raivas de todos os culpados com crime e sem ele, absolvo-me, aproveito o verbo e dou cor à paisagem.

quinta-feira, 13 de agosto de 2015

Tectos




Branco. Branco e quadrado. Podía escrever nesta folha imensa, braço esticado, aproveitar todos os ângulos na perspectiva de que as letras ficassem coladas e sem me tombar pelo peito, pescoço, bater com força na cara ou entrarem de novo pelas goelas, sufocarem-me na confusão de outras quererem saír, estas a regressar a casa. Não sei quem ganharia, mas eu no instinto primário da luta pela vida, haveria de tossir, cuspir o excesso, procurar um fio que fosse para respirar, letras mortas à minha volta cristalizadas pela falta de oxigénio que canalizei só para mim. Branco, uma folha imensa onde indelevelmente se escrevem frases sobre frases, camadas que protegem as anteriores sem tempo datado, podía cristalizar o tempo na falta de oxigénio das memórias.
Fecho os olhos.
Todo o tecto se derruba pelo peso das páginas cheias atingindo-me nas noites e nos dias em que perspectiva era um plano onde eu assentava tinta azul-china para me salvar.

quarta-feira, 12 de agosto de 2015

Dissolução




Pergunto-me se esses tantos que outrora fazíam ruído na minha vida e que de alguma forma me acompanhavam, mas também no transtorno do aparecimento sem anúncio me ocupavam sem noção das circunstâncias, à força do pedido para noutro espaço e tempo voltarem, deu-lhes na vingança de entrarem nos poros e nunca mais saírem. Pergunto-me por eles, silenciosos na maioria, e receosamente bate-me um eco no peito, difuso, pequenos tiques que reconheço nos meus gestos de mão ou até palavras que não me apetecem mas que se soltam da garganta como indomáveis para contar memórias que não me são.
Evito-me.
Estivemos sempre separados tão perfeitamente, corações que pulsavam por cada cabeça, por cada corpo, por cada visita feita.
Vivências independentes, não co-habitadas, as mais agradáveis e as penosas, sem distinção lutam por me vencer em ruídos novos, baixos mas que pressinto na aproximação de me escalarem aos poucos e defenderem o que acham seu, diluindo-se, dissolvendo-me. 

terça-feira, 11 de agosto de 2015

Campo de Palavras (24)




Quisera eu que na mão que escreve todas as palavras tombassem perfeitas, ajustadas ao sentido do dizer e ao sentido dos sentidos mas desta e da outra que de quando em vez toma o lugar da direita por cansaço, aparecem letras ajuntadas e tão pouco do que se assemelha ao saber fazer.
Não sei fazer, não sei escrever, luto neste campo entre pedras que vou retirando para o lado para abrir canais e aí soltar sementes que pretendo se agarrem vingando, mas a cada frase desenhada mais julgo a incapacidade de as ver medrar.
Passei então, a usar as mãos da forma mais simples e contar o que de mais simples tenho em mim, o que vejo, o que me toca e arrepia, o que me recorda por já ter olhado e cá dentro ter restado um fundo que rapado ainda tem sabor. E doeram-me as mãos, haviam calos de tantas palavras plantadas.
Não sei escrever, deixo que o verbo se escore entre pedras, pedaços de mim, pedaços simples do que vejo.

segunda-feira, 10 de agosto de 2015

Instantâneo - Episódio nove




Instantâneo: Pousou rápido a caneca, a mão queimava-se no café acabado de fazer, mas outras pressas ardiam-lhe nos dedos que ágeis e desembaraçados entrelaçaram o incómodo de um mecha mais curta de cabelo teimoso que lhe pendia sobre os olhos e lhe tirava o convite do papel branco, todo disposto, todo alvo a novas palavras que se esgotassem no tempo da imaginação. Enxotou os gatos da cadeira, da secretária, desenroscou a tampa da caneta de tinta permanente e acendeu um cigarro escrevendo
Instantâneo: De cabelo penteado ao alto, uma pequena mecha emoldurava-lhe o rosto. Os olhos fixos no papel pareciam cegar-se na brancura que aos poucos se tingía das letras desenhadas num compasso muito certo pelo aparo da caneta de tinta permanente em desmaios de azul que combinavam na perfeição com uma chávena fumegante e odorífera de café, provincianamente pintalgada de bolinhas. Um cigarro solitário esquecia-se no cinzeiro e dois gatos compunham-se por ali como guardas de um qualquer acto
Instantâneo: A quem quer que chegue agora, direi que é café. Que escrevo. Não são verdades. Mas também não são mentiras.

domingo, 9 de agosto de 2015

Nichos




Não saio, guardo o Domingo para o destino dos fiéis, um recato escolhido por mim que não sou religiosa mas que professo o sossego das horas precisas no interregno das ausências de casa, demasiado tempo o que estou fora sem sentir o chão que me é. Ouço entradas e saídas constantes, portas a bater, passos rápidos de quem parece ter muita pressa em ver pelas costas o sitio onde se anicha, vozes de meninas a perguntar onde vão e respostas sem vir, não há destino, infiéis, apenas saiem ao mundo, vagueiam-se ao ar, sentidos contrários ao meu que procuro o chão a pés e mãos para garantir a propriedade e segurar os muros das paredes que me conhecem os silêncios e as palavras ditas.
A campainha, atendo, alguém à procura de quem não está, devem ter ido, não sei, observo-lhes o sorriso a murchar na decepção da porta que ficou por abrir, só a minha com gente e não a quem querem, o regresso vagaroso, também eles vagueados na busca de um nicho.


sábado, 8 de agosto de 2015

Portas & Janelas - Esboço nº 21



É por esta razão que as escrevo.
A simplória e ridícula bonomia de as olhar e no debrum amarelo sem outros atavios à vista sentirmo-nos contentes, quase limpos da sua espalmada frieza devolver a imitação do sol, dias felizes, pessoas felizes que adivinho lá por dentro laboriosamente cativando-se para manter tão simples e pleno quanto transpira a sua janela.
Resguardadamente felizes, escrevo no entrançado dos fios de crochet em serões em que a chuva pica a vidraça, cânticos, talvez não julguem a poesia porque não a sabem, há muito mais no silêncio das palavras dos olhares trocados ou das esperas das cortinas já terminadas em que afastam no pedacinho para reconhecer se vem a chegar. Ainda não, poesia do olhar, ainda não, barra amarela a condizer com saias que se usam no Verão.
É por razão nenhuma que as escrevo, é porque as gosto de olhar e adivinhar gente feliz e comum, gente que chora e pinta contornos em amarelo à espera de dias de riso.
 
 
 
(in Portas & Janelas, Outubro-2014)

Todas as fotografias da Colecção Portas & Janelas são da autoria de Eduardo Jorge Silva

sexta-feira, 7 de agosto de 2015

O bater do coração (vinte e oito)

Um dia, não daqui a muito muito tempo, alguém novo, recém-chegado e de licenciatura com cheiro a tinta verde há-de perguntar quem é, quem era. Os que ficaram e que ouviram a pergunta, lembrados ou importados no esclarecimento, hão-de rodar a cabeça, apertar os beiços, hesitar em dizer bem ou mal. Depois, simplesmente dizem o nome, de seguida acrescentam-lhe o apelido e parando o que fazem hão-de tamborilar na mesa, abanar o pé da perna que se acabou de traçar ao puxar a recordação de tal figura. Contraditória. Por vezes, irritante, odiosa, de outras desconcertante, surpreendente.
Não hão-de comentar muito.
Mas nesse dia e provavelmente apenas nesse único dia, essa figura não há-de saír-lhes da cabeça. Hão-de perguntar-se que é feito de tal criatura, que terá acontecido, que com a idade o feitio se terá refinado e estará agora impossível de aturar. Ou talvez não. Que os anos trazem uma doçura aos olhos que só os mais velhos sabem ver para entender...
Nesse dia irão lembrar pequenos episódios, coisas rocambolescas, até desavenças que não conseguem lembrar porque começaram ou a importância tão grande que deram naquele tempo a ínfimas questões que agora, a esta distância, mais dão vontade de rir do que zangar. E como se conheceram? Que esforço! Era Verão, não, talvez fosse Primavera mas já havia muito calor, curioso como as coisas se complicam quando se habitua a presença de uma pessoa durante anos.
Anos... Há quantos anos se foi embora?
E o coração dispara pela promessa feita. Depois havemos de nos encontrar. Depois.
Quando formos sombras de uma pergunta feita por um desconhecido.


quinta-feira, 6 de agosto de 2015

Vidas perfeitas




Apetece-me não ouvir, não estar presente, devolver as palavras como bolas a baterem numa parede, arremessos que me afundam solitária entre tantos a escutar o mesmo. Tantos solitários, procuro os meus e nada, onde se ouvem quando os precisamos e bate-me na cara a bola devolvida.
Suborno-me: Descubro-me numa vida perfeita em tonalidades harmoniosas, não há ruído, um chilrear de pássaros adorna uma casa de um só piso próxima a outras em que tudo me é familiar e próximo, sou benvinda, sinto-o na palpitação por dentro de cada lar, em cada frasco de compota servido no pequeno-almoço disposto com tempo e na conversa sorridente que lembram quando entrelaçam os dedos ao reforçar uma palavra. A calma do tempo lambe cada porta mantendo a tranquilidade à espera de quem volta, felicidade de mim que aqui sou eu, canteiros de rosas, jarros, orquídeas, tudo o que gosto, a minha secretária, os meus cadernos, tantos bichos entre os meus, vagarosamente passeio-me entre a minha vida perfeita e agarro a bola no ar antes de estilhaçar os vidros.
Os solitários nas suas vidas perfeitas. Também.
 
 

quarta-feira, 5 de agosto de 2015

Mas...



Um mau gosto na boca associou-se ao novo dia, que vontade de culpar o outro sentido das coisas em que não há sentidos e que tudo está explicado, mas afinal é cousa da experiência, do experimentado, melhor, do escaldado e da lição aprendida mesmo que de quando em vez se diga que nunca se há-de aprender, algum restinho cá fica para lembrar na vez seguinte como as coisas se vão passar.
Por isso, este gosto desagradável, recordado porém nada apetecido, teve o dom do amanhecer casmurrento nas palavras do já sabía que isto ía acontecer mas - e neste travessão da preposição - faz toda a diferença do cenário e dos bastidores.
Porque no fundo aquilo que se quer sempre é o belo e o dourado, mesmo sabendo que o carpinteiro tem a mão entrapada do falhanço do prego metido dentro na madeira ao construír a moldura do que vemos radioso a um plano só sentados na fofa poltrona, cenários fantásticos sem o respingo do sangue do operário, céu azul e vozes de anjo para nos encantar, a fealdade da vida não vem no preço do bilhete, já temos a nossa dose qb. mais que chegue, mais que amargue a boca que agora cala e se queda no mas... sempre pensei que não íría acontecer.

terça-feira, 4 de agosto de 2015

Enxugar saudades do Rio



 
Tenho saudades do Rio, das correntes de tinta sem pressa na mão levada pelo jeito que o sentimento do momento quisesse, nada coado, era tudo da vista e do peito e ali estava, o caderno a aparar o que de pequeno e maior enxugava.
Aqui e ali escrevo Tejo mas não falo dele, das nossas vidas e do que sei e muito mais do que vou descobrindo pela ignorância que tanto mais é essa a descoberta do segredo da vida, não voltei a dedicar-me em páginas só para nós, e nem sequer foi promessa que não sou dessas. Aconteceu. Como se fechasse o caderno sabendo, silenciosamente, que o olhar com toda a vista nunca sería suficiente para contar, uma miséria quase vergonhosa o ter começado... Tenho saudades. Como se tivéssemos terminado uma relação em que não houve nada de mal, mas acabou porque precisava. Se calhar por isso, porque precisava de qualquer coisa defeituosa para apreciarmos o bem tão grande de nos termos.
Não sei, só sei que tenho saudades de escrever o Rio e de dizê-lo como o sinto e como vejo nas gentes que o atravessam como sangue, porque vida, se calhar um dia qualquer mato a minha sede e na tinta das letras reinvento-o, despejo nas páginas verbo pequeno até à enchente do caderno aberto.

segunda-feira, 3 de agosto de 2015

Lá vem a bruxa



Fui enxotada da cama ao som de um tango mal tocado, sinais de quem se acha superior e surdo, vociferei pela pouca das horas passadas e do direito ao descanso, coisa que nada adiantou que em dois minutos corridos lá voltou o toque fanhoso da gravação repetida, a pé e de olhos bem abertos dei-lhe a liberdade de lhe esgotar o cansaço até se findar na tarefa. Silêncio de seguida. Nada como o nada para ocupar quem partiu a fazer barulho. Encarei-me no espelho e não lhe gostei de ver, melhor não dar conversa, falar do que vai acontecer hoje, é impensável neste momento, há alturas que a sobrancelha esquerda lhe sobe num pico como um sinal de mar bravo. Afasto-me. Pego na vassoura e conduzo a toda a brida desmanchando o penteado acabado de fazer. Experimentem chamar-me bruxa que eu provo que sou mesmo. É que há dias que cansam quando ainda nem começaram. Especialmente, quando chegam aos ouvidos o sussurro de uma lenda para a qual não contribuímos.
E hoje sinto-me capaz de dar, toda eu vassouradas.

 

domingo, 2 de agosto de 2015

Que farei?



 
De tanto magicar o que farei quando houver o tempo de fazer detenho-me momentaneamente em paragens de nada, do esperar, de me deixar levar sem nada a fazer e até contrariar na vontade inata da precisão diária de escrever para o sangue fluido não se atrapalhar em trambolhos.
É que já me disseram que quando chegar esse dia, de tantos planos e felicidade enfim, acaba-se a adiar, e na desculpa de qualquer coisa, mesmo a justificada do haver tempo no tempo, nada se faz.
Que pena se assim for, que pena se sentir que a vontade que me impele hoje ao caderno se tornará tão forte quanto arredia, mas forçadamente nada será de verdade e o que farei quando esse tempo chegar decerto será tão compreendido por mim como pelos que me acompanham desde sempre. Seja lá de braço dado comigo seja a esfumarem-se num tempo de alma antiga.
 
 

sábado, 1 de agosto de 2015

Latitudes



Boio, não sei sinceramente se conseguirei passar incólume sem a beliscadura das perguntas, (até das minhas, que me estranho nesta posição de para aqui estar) deixo que a realidade se desenvolva ao meu redor até parecer um caos (os gatos miam), o relógio não pára o pêndulo só porque eu permaneço estática e [aparentemente] absorta (não boio, ai a ilusão, afundo-me se dou conta do que acontece nesta realidade paralela) nas conversas de tantas palavras que vão puxando outras como um lenço de um mágico tirado da goela deste (sem fim, as vezes que o cão já me olhou e se sentou, ergueu nas quatro patas, voltou a sentar, arfa, arfa), engasgo pontuações quando a porta se abre e o som me perde o fio do verbo [instintivamente], regresso à vertical (dou aos pés), caminho até ao universo [reconhecido] evitando salvações sem precisão, não me perdi, flutuava.