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domingo, 31 de agosto de 2014

O céu da boca (Palavras Reencontradas) 1



Dei comigo a pensar em palavras que escrevi há muito tempo e por uma qualquer razão, arrumei-as, não que me tivesse zangado com elas ou que me envergonhassem, tão pouco foi coisa sazonal de achar que as pondo a dormir me haveriam de servir num dia de chuva, não, simplesmente guardei as escrevinhações junto com outras, algumas do tempo da Versailles, e não voltei ao assunto.
Acho que as esqueci.
E hoje deu-me para isto, um formigueiro na memória a recordar cada um dos tempos cuspidos, vírgulas e pontos, e agora  tão claro como a água, entendo, entendo-me lá naquela época e debruçada sobre o caderno, cabelo preso na orelha, a fúria ao fechar a gaveta da secretária e a caneta a secar-se no parágrafo final.
Quando as páginas brancas se alagam e reflectem como um espelho, não há outra mão senão a nossa e ali, era eu.


in O céu da boca (Palavras Reencontradas), Janeiro 2014

sábado, 30 de agosto de 2014

O riso



O que importa é o riso mesmo que em silêncio se faça, mesmo que o ruído não chegue para despertar aos  outros o apelo dos olhares distraídos na emoção gigantesca do desenrolar do tapete da felicidade, coisa sem tempo nem medida, um voo directo ao espaço onde os espaços se constróiem de paraísos privados no que de mais saboroso e suculento se quer e guarda.
Mas também o riso franco, sonoro, o eco da gargalhada a ocupar o universo e a propagar ondas em alegria que se atraem em outros elos de risos germinando correntes que se atam em redes invisíveis tão finas, porém tão fortes que sustêm o desgosto quando a memória escapa.
O riso das lágrimas. Um escudo quase impenetrável, louco e tóxico, doloroso e viciante que faz esquecer o próprio e acaba por esquecer, odiar, secar.
Únicos na capacidade de o possuír, é do riso que também somos exclusivos a silenciá-lo.
 
 

sexta-feira, 29 de agosto de 2014

Olhar com Vista sobre o Rio (14)




Lápis de cor, folhas brancas, risos e brincadeiras, posso desenhar-te em cada palavra que fui aprendendo ao longo dos tempos.
Sabes que me lembro tão bem  de me trazeres ao colo, meigo e eu menina de vestido curto, o marulhar das tuas águas a maravilharem os meus olhos e gaivotas que planavam sobre o cacilheiro como um séquito que vela o manto do seu rei. Eu a tentar ver-te o fundo.
 
Como me agrada sentir o teu cheiro...
 
Traz-me palavras que não sabía, vejo-me pequena e curiosa de dedo apontado.
Não é bem saudade o que sinto, são travessias que me fizeste e verbo que me alimentou, ainda assim tão pouco é o que sei, o teu fundo continua só teu apesar de eu ter crescido e a escolha das cores ser minha.
 
 
 
(in Olhar com Vista sobre o Rio, 2012)

quinta-feira, 28 de agosto de 2014

De um trago só



 
Fazía-lhe um relógio na barriga, um calor redondo que a dilatava por dentro em dourado e a subía devagar até ao rosto coroando-a. Fechou os olhos devagar, as mãos no abandono do pouco traje e os pés enterrados na areia fresca ao fundo, quente junto aos tornozelos.
[Que posso eu no mundo se o mundo nem sabe de mim, achará o mar que o incomodo se o pisar e pedir desculpa como costumam fazer-me, não me veêm, atropelam-me na passagem dos dias e seguem o caminho sem me olhar arrastando uma palavra automática, desculpe]
Abriu os olhos e avançou lenta, os salpicos frios da água a mordiscarem a areia no final da rebentação arrepiaram-na, outras ondas encaracolavam-se brancas ao alto e mais atrás como latidos aflitos que afugentam intrusos, ela agachou-se.
[Não posso esconder-me do que não alcançam, chutarem-me para longe como vosso estorvo se nem sabem onde estou. Houve um tempo que pedi que me vissem. Parei, gritei e exigi que me olhassem mas não havia ninguém ao redor para esbarrar em mim. Então achei que era eu que não vos vía]
A onda forte estalou como um trovão e cheia de força esticou uma língua salgada que a chicoteou nos artelhos, galgou joelhos, costas, molhou-lhe o rosto. Levou os dedos à boca.
[Lágrimas]
Ergueu-se. Olhou o mar gigante na sua frente, verde, azul, ao longe debruado a cinzento, avançou a passos largos, sorriu, mergulhou e de um só golo bebeu o choro que nunca havia vertido.
 
 
 
 

quarta-feira, 27 de agosto de 2014

Mayo a Madrid - 2



Digerindo passos, desgastando os comeres fora de horas sem tempos marcados e a aceleração do meu andar travado na trela invisível de um francês que caminha com um menir às costas desenhado pelos meus olhos, porquê as mãos em concha amparando o nada, cicia-me des mots, apuro o ouvido.
Como falam alto [todos], música, passos largos de tanta gente e até o português que nos faz trio conversa num francês perfeito mas em gritos que se conjugam fantasticamente com as manchas de pessoas que tingem o espaço quadrado.
 
Sinto-me presa.
 
O meu companheiro luso sacode o braço como se agradecesse a honra de duas orelhas, um rabo, gira suave nos seus olhos azuis que habitualmente o traem por germânico e em acentuação risonha resvala num espanhol terrível, ici c'est Place Mayor.
 
Liberto-me.
 
Rio sem contenção, tu rigoles, claro que rigolo, olho para esta praça enorme e sufoco de riso, vejo um monumento que alugam aos pedacinhos, basta erguer o nariz e vê-los assomar às varandas em tronco nú! E debaixo das arcadas que surja a qualquer instante Depardieu, perseguido, pois isto não é o set de 1900?! 
 
Aqui es Plaza Mayor e eu estou longe.
 
 

Maio/2014  

terça-feira, 26 de agosto de 2014

C782 - Ninguém leva a mal




Depois de ter fincado os calcanhares por mais de vinte minutos entre dois horários incumpridos, lá chegou, airoso e amarelo, o transporte guiado por um condutor necessitado como os demais mortais, de uma boa dose de cafeína que deixou plantada a clientela sorridente e muda, alongando a fila para além do passeio, quem disse aqui que Lisboa estava vazia? Que grande mentira, ainda mais às 8 da manhã, tudo de bom humor e pessoal de trabalho!
 
Calor à séria só cá fora, perto dos pombos e dos taxistas a moverem carros à força de braço, poluentes pela hora da morte, porque dentro do autocarro que desliza à velocidade de um pedestre, tirita-se de frio e espirra-se pelo foco de ar condicionado no máximo que incide no crâneo. É pena que às seis da tarde se consiga assar uma sardinha e nem de joelhos rogando clemência, o bendito interruptor mágico AC seja accionado pelo dono do veículo...
 
Mas é o mês de Agosto, ninguém leva a mal, se calhar o motorista até é novo no percurso, deixá-lo, para quê arrelias a hora tão matutina? Bem faz ele, que vai no ripanço, por este andar chega-se ao emprego à hora de almoço, mas a verdade é que com tudo fechado, onde é que se come? É uma poupança, engole-se um frito na tasca que se evita o ano inteiro e até se dá graças pelo patrão trazer o dedo na tijela da sopa que põe à frente do queixo faminto.
 
E durante o dia a azia remoe a par com o serviço, lento e pesado da ausência dos veraneantes, desculpa-se o atraso pelo mês presente, adia-se o passado para a urgência dos que estão para chegar.
Ninguém pode levar a mal, é que ainda há o regresso para fazer.
 
 

 (in As fantásticas aventuras do C782, Agosto 2014)
 

segunda-feira, 25 de agosto de 2014

C782 - O último dia




Os do costume e caras novas, se bem que a realidade melhor se encaixe a traseiros novos já que todos procuram assento, ninguém deseja a violência da sacudidela por 45m, amortecedores nem pensá-los quando o guia parece desesperado à procura do buraco para medir o pneu e afoito, limpa ângulos de passeios ou desfaz curvas em recta certeira elevando o universo que transporta aos pulos.
Conversa. Daqui e dali. Tagarela-se e guincha-se, ri-se e limpa-se o salão enquanto um outro masca um pão doente amanhecido pelo despertar de um congelador amortalhado em papel prata. Viaja-se como se se esquecesse que a rua é um caminho até uma sala fechada com luz artificial a que se chama, respondendo ao telemóvel, o trabalho. Vamos todos para o trabalho.
 
Mas não hoje.
 
Hoje fomos todos para o último dia. Diziam.
 
Seja lá do que for. Ou do que vier. Pois que esta cápsula onde se embarca e agita quem lá entra transforma, mistura o coração com os demais orgãos e essa desorganização na correria do tempo, junta à ânsia da liberta postura, o não ter amanhã parece o melhor dia que se poderia ter.
 
 
 
 
(in As fantásticas aventuras do C782, Agosto 2014)
 

domingo, 24 de agosto de 2014

Conversas

Não tem importância que me escrevas de lado, afinal as obrigações não têm o dia marcado para hoje e a hora está guardada na gaveta até amanhã por isso, caras feias, é o que menos me aborrece - a tua e a minha - se é isso que te passa pela cabeça.
Aliás, ignoras-me.
Fazes de conta que sou invisível ou que não sou, se queres saber, velhos hábitos de outros a que me acostumei a lidar e ao invés de lhes dar troco no mesmo ouro, incomodo-os, uma perturbação, quem é esta que se devía passar por morta e dá mortais para chamar a atenção?! Olhos nos olhos. É isso. És tu capaz de me encarar?
Ter a coragem de despir Domingos, esquecer fardas e mulheres assim e assado, acabar com essa confusão dos recatos e olhar-me como uma mulher única, toda, cheia de defeitos, palavrões, despenteada e unhas roídas mas com energia suficiente para empurrar todos os 365 dias com lágrimas e risos e ainda chutar desamores e invejas, saltos partidos e dores de barriga, cansaços e saudades de menina?
Não dizes nada...
Porque sabes que sim.
Eu sabía.
Estas conversas sobre o amor-próprio são sempre muito eloquentes.
 
 

sábado, 23 de agosto de 2014

O que fica depois


 
Encostou a porta de mansinho. Não a quería acordar, sabía como o sono dela era leve e que ao mínimo ruído os olhos se tornariam despertos como o meio-dia pronto e já agora deixava-a, ele ía-se com o gosto do tabaco enrolado a salivar-se nos dedos nervosos e o gesto da colher às voltas entre palavras apressadas na sacudidela do jornal disputado entre a malta chupando goles de café muito quente e ela, pobre que aproveitasse, muito quieta, tão parada como nunca a vira que até pensou - benze-se - que uma coisa má a tivesse fulminado e de viúvo a sua condição passasse a constar, mas não, a veia do pescoço aos pulinhos aliviou-o dos medos e no bico dos pés, apressadinho, sumiu-se.
 
Mal o trinco da porta a sossegou abriu os olhos. De mansinho deu uma mão à outra e apertou os dedos no enlace de quem se tem a si na solidão de com quem se pode contar. Suspirou. Não profundamente, mas na sensação de que de um aperto se tinha folgado e os pulmões livres no espaço, tragavam ar quanto queríam. A cama toda sua. Encostou o rosto ao lençol e comprimiu o nariz sentindo o cheiro. Depois levou as mãos ainda enlaçadas ao sitio do coração e tentou escutar que ele batesse mais forte. Mais lento. Sentiu sono. Só sono, apenas uma vontade enorme de se enroscar nos lençóis e dormir sem ninguém a despertar.
 
Ele entrou a chamar por ela.  Ela não respondeu. Ele abriu a porta do quarto e deparou com um montinho sob a roupa de cama. Fechou a porta devagar para não a acordar. Mas toda a tarde passou e ela sem dar sinal, coisa invulgar em mulher que dorme pouco e ele ralado, guarda os silêncios, vai de bradar o nome entrando de rompante e abanando o leito. Nada a não ser uma almofada coberta por um lençol e dela nem o cheiro.
 
 

sexta-feira, 22 de agosto de 2014

Fugas




Cidade vazia, cidade cheia, saiem os nativos entra o invasor tilintando arma de bolso nos trocados euro, pavilhão nórdico a Sta.Apolónia e o Tejo vaidoso, cavas de manga satisfeitas que sorriem até aos dentes, querem a Expo, Belém, alguns não resistem para além das ginginhas com elas e dobrados pelos arcos de uma sombra piedosa aterram de braço apontado a um monte de terra na outra margem, D.José I comanda no final.
Tão felizes que nós somos. Mas poucos, terra abençoada esta com tamanho céu azul que engole a tristeza, e decerto devorou uns quantos que não se encontram Portugueses nesta Lisboa cidade, feriado de gentes e de vontade de tocar ruas e sentir paredes a dar guarida de história e até vielas em bairros apertados onde se chinela em inglês ou castelhano e alemão à procura de achados. Um fado. Uma sardinha.
Click!
 
 

quinta-feira, 21 de agosto de 2014

Ainda a poesia


 
Ainda e sempre.
Pois é.  Eis-me confessa a agarrar verbo que vem debaixo (leia-se post último) e clarear quem possa ter-me encontrado religiosa no joelho por terra ou quiçá, de mãos postas a um céu - que os tenho - plurais para que se entenda que o imaginário é mais de minha fé, outra, outras compreendo-as mas não as reconheço. 
Mas dá-me mais para isto, hoje gloriosamente devota a um halo que envolvia o Terreiro do Paço, o Rio todo brilhante e quase espelho que até custava olhá-lo e as gentes de cá e muitas de outros mundos paradas, apenas isso, poeticamente estátuas pela beleza do admirar quando um dia de Sol chega a Lisboa e esta na simplicidade das colunas brancas rasga o espaço azul do agora como o fez às naus das especiarias.
Um dia lá, como hoje, alguém de lá como agora se terá encantado e os olhos manchado de uma água inexplicável pelo mistério do apenas contemplar sem nada se ter comprado, nada ter sido proferido, um dedo só mexido, apenas parar e ver.
Quão grandiosa é a poesia de alcançar. Pudera eu conseguir ter engenho para a dizer.
 
 

quarta-feira, 20 de agosto de 2014

Um pouco de poética, pf!




Não é meu hábito escrever sobre politica, economia, religião ou até comentar assuntos internacionais. Não quer isto dizer que não saiba deles ou me passem ao largo. Sei-os, estou informada,  conheço os valores de mercado, acompanho as noticias mas simplesmente escolhi não redigir sobre tais matérias. 
Esta introdução para dizer que o choque da notícia matutina sobre a decapitação de um homem - e nem me interessa a nacionalidade - me fez revoltar como ser humano único que sou, que todos somos.
A pequenez do momento em que se tira a essência do homem reduz a um estado de profunda solidão igual à de uma morte existida.
Aquele que mata, terá já morrido.
Não se aprendeu nada com o passado recente, com a dor remanescente dos muros e arames que rasgam lembranças e territórios ou vinganças infindáveis em nome de uma fé que acaba por se diluir em ramificações sangrentas e envenenadas.
Se acreditam, ajoelhem.
Em qualquer um deverá haver um céu. Azul.
 
 

terça-feira, 19 de agosto de 2014

Estrelas




A injustiça das palavras ou a crueza dos olhos, um tudo nada indecifrável, um quadro abstracto, um risco a que o leigo para que não o rotulem de tolo dirá abanando os queixos formidável e vai-se a ver, tem o povo razão, um boi a olhar para o palácio. Que verdade seja dita, até o corpóreo animal sente mais que a inanimada construção mas esvanecemos perante a dimensão... Reticências. Porque a crueza dos olhos cala a justiça das palavras, calca-as e até, quiçá as faz esquecer de como se dizem e como nos fazem rir até chorar e até nada conseguir dizer. Só sentir. Cá por dentro. Como essa Lua gorda e brilhante que apareceu por aí faz dias e já ninguém fala dela e se foi e escondeu uma chuva de pequenas estrelas que eram pedras se vistas de perto.
Muito feias decerto.
Assim é a vida daqueles que imaginamos fabulosa e invejável. Uma distância que o pedestal da nossa imaginação os eleva e põe a rir continuadamente. Afinal, feia e triste, como uma morte desejada e rasa quanto a mortalha de um pobre que nunca tenha sorrido ou até chorado.
 
 

segunda-feira, 18 de agosto de 2014

Sentir (acidente no escrever)



A página rasga os olhos primeiro, um clarão branco quase incandescente que o instinto obriga a cerrar na protecção do verde, mergulho, perco o pé, tonturas, rebolões, sem tino, estico a mão, as mãos, apanho uma caneta e um esguicho mancha de escuro a transparência e a noite cobre corpo, não sei se meu ou se outro, sinto braços a segurarem o torso a direito e notas em rodapé que se agitam furiosamente  impulsionando a força da subida, letras que escapam na espuma dos sentidos ou a ilusão de se dizer o todo a arder nas palavras que secam deitadas em linhas invisíveis, respirar, ressurgir, morrer de novo pelos olhos outra vez abertos e inaptos de ver.
 
 

domingo, 17 de agosto de 2014

Sem sombra de dúvida



 
Sempre depois das duas, a mala de mão pousava-a de lado e nunca junto aos pés, haviam-lhe dito que baixava a fortuna, coisa sem importância pois a riqueza já se lhe fora há muito, por vezes um lenço ao pescoço e se mais fresco na cabeça, mas o banco de jardim era sempre o mesmo. Estivesse ocupado ou livre era sempre o mesmo depois das duas, sentava-se quase à ponta, esfregava os joelhos muito juntos, ajeitava a saia, entrelaçava os dedos e fitava o longe.
Não se perdía com pombos a passar ou pequenas folhas que tombassem de árvores próximas, apenas o olhar se esgueirava para um espaço que ninguém descobria mas não estava perdido nem se esmorecia o viço.
Ficava assim por uma hora, às vezes um pouco mais.
Mandaram uma criança ir ter com ela e perguntar o que fazia.
Falava com a sombra, contava-lhe o que fizera durante toda a vida, a quem amara e não tivera tempo de dizer ou coragem de revelar, o que deixara para trás por causa de filhos e netos e injustiças de género, condição e dinheiros. Também pouca vontade e outro tanto de ilusão por achar-se eterna e duradoura. Do medo de estar sozinha mas também da conquista de estar sozinha e falar tudo o que sempre amarrotara sem duvidar da sua força tamanha. Tanta, mas tanta, que conseguia que a sombra fosse para trás das suas costas.
 
 

sábado, 16 de agosto de 2014

Portas & Janelas - Esboço nº 8



Paraste o passo e libertaste o meu braço entrançado no teu, apontaste ao alto, aqui, eu olhei, confesso que não vi nada, tu olhavas-me sério à procura de reacção e eu pensei que alguma coisa me escapava pois se eu nada via, uma janela, ou uma porta envidraçada, vá lá saber-se, isso era o que eu via quando erguia a cabeça até me arder o pescoço e tu sempre a encarar-me como quem aguarda um clarão de descoberta maravilhosa e eu nada, estás à espera de alguém naquela janela atrevi-me, olha olha, repetiste e apertaste o meu braço que um minuto antes tão delicadamente tinhas desenroscado do teu, AI, mas olhei e que mais podía eu encontrar ali sem ser os vidros e uma moldura de mármore a enquadrar a janela maldita cravada numa parede lisa como um sabonete a estrear e furiosa pela dorzinha e pela minha cegueira, que coisa tinha que haver ali!!! e eu nada achava, nada via, que peguei numa pedrinha e arrematei num quadrado vidrado.
E então vi.
Círculos como os da água em que se lança um seixo, pequenas e simétricas ondas a confluírem num núcleo e a exibirem uma imagem de águas furtadas, empinadas sobre um rústico prédio de varandins de ferro forjado.
Olhei para ti, vês agora, abanei a cabeça, rodei na direcção contrária à da janela e um relvado aparado clareou o meu olhar.
 
 
(Portas & Janelas, Novembro-2013)

Todas as fotografias da Colecção Portas & Janelas são da autoria de Eduardo Jorge Silva 

sexta-feira, 15 de agosto de 2014

Ocupado



Sorrir, ver sorrir em frente e cada vez mais distante como se a imagem fosse um som que se atordoa numa palmada escapada à traição junto à orelha até nada restar senão um zumbido e deste, pela intensidade, se achar que é assim o mundo, o som do universo, a imagem ao redor.
Foi-se o sorriso.
Apenas uma imensidão de zumbidos que se correm na procura, por entre relva incerta e mais alta que as próprias pernas, meias de risca negra e amarela a condizer com o Sol a pino e papagaios perdidos a ofenderem de cor impossível uma tela azul, sempre a correr, velocidades imparáveis que fazem voar na horizontal em bibes enfunados como nos sonhos em que se cai de alturas de montanha e não se morre, voar, planar e dominar, cerrar os dentes pela força tamanha que se tem, sentir as pestanas de cima tocarem as de baixo devagarinho como se o tempo fosse piscar os olhos à nossa vontade, ao som da voz da nossa garganta, ao zumbido que regressa.
Suave.
Um sorriso suave em frente, o talher entretido entre a comida a esfriar.
- Onde estavas agora? Tive a sensação de que não me ouvías... 
 
 

quinta-feira, 14 de agosto de 2014

Parece que é


 
Há muito tempo que não falo sobre ele, escrevo sobre ele, assim, daquela forma pura e doída que dá vontade de morder os bordos da língua que tal maneira que sentimos para nós o que queremos deles seja nosso, ou tenha sido tão mais forte a nossa mão no coração do outro a brincar e a tomar fazendo o que apetece. No fundo, só apetece arrancar o nosso e juntar dentro do peito ao outro, baterem descompassados e loucos na perdição do amor.
Não importa onde. Nem porquê. O universo faz-se nesse momento. Todo o resto fica distante.
Alguém me dizia há dias, de olhos muito brilhantes, que tinha passado muito tempo desde que sentira essa desordenada batida por dentro de si. Tinha chegado outra mulher, mas o pulo para o vazio naquele estado de amparo sem fio visível porém tão frágil, não estava lá, os pés colados ao chão e o coração no ritmo certo não o enganavam... Ainda assim, as mãos, os laços nos dedos, os sussurros, os afagos e as curvas deslizadas no escorregar da noite e ainda os beijos mais o beijo demorado, o gosto da saliva, tudo. Tudo para contar uma boa história de amor.
Ele homem, ela uma mulher bonita, ele a sorrir, ela a dizer amo-te, ele a sorrir, ela a repetir amo-te, ele a passar-lhe a mão pelos cabelos amorosamente e a beijá-la.
Há vezes em que parece mesmo mas não é uma história de amor.
 
 

quarta-feira, 13 de agosto de 2014

Quase, quase...



Pouca terra, pouca terra, o combóio dos dias ressalta no tabuado ferrado a cravos brilhantes do uso continuado, a velocidade nem muita nem menos que o fazer chegar, uma monotonia de sons que dormenta sem adormecer, anestesias dos sentidos, quase-quase uma dor, perguntas que não se fazem porque sempre foram leis, cumprimentos como destinos em envelopes cegos, miragens apetecidas em vidros foscos e riscados.
Quase uma vida, tomara descarrilasse, quisera um estilhaço na carne a ferir e a fealdade da paisagem a rasgar vista para além do pouco.
Pouca terra, pouco sonho, pouco ir, não há acidente nem a tentação do quase, tudo será como sempre houvera sido, uma viagem que não se recorda onde se tomou o inicio, cumpre-se tranquila sem a emoção da chegada.
 
 

terça-feira, 12 de agosto de 2014

Lisboando, Cartas a um Amigo



Olá, como vais?
 
Espero que esta te encontre bem e de perfeita saúde que eu graças a Deus, este Verão envergonhado sem maneira de se decidir anda capaz de nos por doentes, e mesmo assim, resisto.
Que tens feito tu?
No próximo correio, manda-me novas do que fazes, não me contas nada em que te perdes aí pelos Alentejos!
Já eu, infeliz citadino, calcorreio vielas, aproveito partidas de Agosto e desencanto colinas mais onde se esperam sete, Lisboando meu caro, inventei esta palavra para os meus passeios, que diria Sophia se agora escutasse, ou até tu a meu ombro virando um pirata! Que sede, só de lembrar!
Pois digo-te eu, Lisboando: Plantaram um jardim à beira do nosso rio, esplanadas, um tiro só que vai do Cais das Colunas até ao do Sodré, turistas a mais que tugas, Saramago à janela da Casa dos Bicos e por aí fora até à do Comércio onde é vê-los na torra. O Museu da Cerveja à esquina à cabeçada com o Martinho, comi lá ontem na esplanada, não fiques, muito fumo.
Disparei até à R.do Arsenal para desmoer, o Alecrim a dar cabo de mim mais os mapas que os turistas sabem ler melhor que eu, pedem-me direcções, pleases, clicks e até querem tirar fotos comigo, onde isto já chegou, o nativo para a posteridade!
Finalmente alcanço o Jardim de S.Pedro D'Alcântara, sento-me.
Lisboa de tectos vermelhos.
Rio turquesa.
O Castelo
Queres tu saber que despareceram os pombos deste jardim?
Abalei-me no elevador de Sta.Justa, não há pernas.
Há um fim de tarde lindo que merecia os teus dizeres, o meu silêncio de escutá-los.
 
Recebe um abraço,
 
O teu amigo sincero.


Fotografia de Eduardo Jorge Silva

segunda-feira, 11 de agosto de 2014

Pela mão dos outros



Eu. Eu que tanto tempo levei a resistir-me no uso da minha primeira pessoa e vai-se a ver gasta, que o que mais tenho sido é só ferramenta dos outros e até de tino perfeito, dito e afirmado, ainda assim convencida de que sou dona de vontades minhas.
Deixá-lo...
Mas hoje contrariada do caminho ido, mais uma vez, o Tejo a piscar-me o olho na partida da vida, mais uma vez, senti-me elevada por mãos iguais às minhas, tantas as que emprestei agarradas à caneta apertada entre dedos a desenhar palavras que vinham numa pressa perfeita, eu sem ser eu, outro de mim, um impulso que me tirou do chão e das aflições de não querer ir e me fez girar até fechar os olhos e sentir o ar adocicar-me a tontura leve de nada importar, de nada fazer diferença.
E quando me pousaram, devagar, sussurrando segredos que aqui não digo, ficaram ainda e por mais um momento comigo, a ponta dos dedos nos meus, uma linha contínua que não me deixa perder céu fora e desaparecer no silêncio.



domingo, 10 de agosto de 2014

Mayo a Madrid - 1


 
Fidelizo o meu relógio à lusitana raíz e dou voltas à aritmética para acerto das horas em débito à cama, o corpo aguenta, as olheiras maquilham-se e no fundo é só um hábito, um treino, que horas são aqui nesta festa imparável, demoro no cálculo e o francês que me acompanha ainda mais lento, resolve a questão, déjeuner.
Não há hora de almoço, é sempre tempo de comer e brindar em Madrid.
Remoo se será por ser Maio, quero lembrar Maio de Lisboa à mesa e o odor do Tejo a vibrar nas palavras e a ondular toalhas brancas entre promessas violentas dedilhadas numa guitarra arrepiada, lembro-me de azul e apetece-me dizer baixinho coisas minhas para não esquecer.
Os meus companheiros tocam-me com o menu, falam-me em francês, faço o pedido em castelhano, o empregado sorri-me perfeito. 
Há sons disco no ar, a minha guitarra estilhaça-se, segue a conversa de trabalho entre ponteiros que perdi em terras à beira-mar plantadas e os meus olhos procuram abrigo no azulejo do restaurante como âncora que conhece o fundo para se agarrar.


Maio/2014

sábado, 9 de agosto de 2014

Olhar com Vista sobre o Rio (13)



Guinchos, encostos, rangidos, dores, abanões e safanões, a gaivota avisa ao alto que o sofrer metálico do som poético do casco esfregado no cais amparado é coisa rápida, quase não nota quem se dispara na correria do cuspo soltado da cabeça virada ao Tejo largado, 8 e mais, ponteiro danado que cai estragado pelo cheiro iodado e eu para trás.
 
Sinto o marulhar por baixo dos pés e não quero olhar.
 
8 e mais.
 
Tejo e tanto.
 
Ergo os olhos à gaivota agora pousada sobre um candeeiro, quieta, muito branca, o bico sol-selado e pergunto-lhe pela dor, mas o meu peito enche-se de um ar que não me cabe e o Rio balança o cais ajudando-me a partir para a cidade.


(in Olhar com Vista sobre o Rio, 2012)

quinta-feira, 7 de agosto de 2014

Como nasce em mim



Que importa se há vento do crescente escondido e os cabelos desalinhados se emaranham na idade das vidas contadas em estórias de outros, ouros ganhos por cada palavra muda e embebida na saliva que leva a outro conto e ainda mais um que dá a beber aos demais, são fios que se unem em nozinhos bem dados sem nunca ter fim, companhias que se constroem para dentro e para fora sem pontuação pensada, respirares, cardíacos momentos de subida quando as pernas fraquejam e a narrativa se atrasa latejante do esforço.
 
Subía, não sabía se os pés lhe ensinavam caminho se o rosto lhe era chão, tudo lhe era o mesmo, ou o abismo de uma noite que não passava ou que talvez lha tivessem contado e ela, incrédula, deixava que a vergonha a tomasse porque outra coisa não permitia sentir. Agora subir ou ser pedra calcada era-lhe o mesmo peso. Parou. Afundou-se no pensamento de si mesma e ali mesmo decidiu não dar mais uso ao que não precisava. Deixou-se de si, mirrou-se e a aragem matutina levou-lhe a pessoa em pó de pedra. E a vergonha também.
 
Encaro o sol enfeitado no Rio e dedico-lhe versos melados sem rima, falo de mortos que ainda estão vivos e tomo notas sobre vivos que dormitam à procura de uma falência que chegue rápida, nada lhes toca neste instante como nunca os despertou em tempo algum, recupero-lhes a infância e encontro-os sempre tristes, sempre de olhos fechados. Na minha mão um grão de estória, porque não?
 
Há vento de crescente escondido a assobiar pela fresta de uma janela. Um pó fino intromete-se misturado pelos raios de sol e uma gaivota pia como anuncio de pescado. Ao meu lado uma mulher senta-se com a vida a estalar no rosto, ajeitando a roupa cuidadosamente.
 
Fecho o caderno.


terça-feira, 5 de agosto de 2014

silenciando




A hora do lobo ruge até à alma. Não sei o que arrasto, se os sapatos, se o braço pendente de um dia longo e demasiado quente ou se a fome de olhos que me vejam sem armas acabou por me tragar o estômago e o animal que me devora por dentro é o avesso virado de mim mesma.
Ainda assim ele conhece-me.
Encosta-me molhado o nariz nas mãos e pés um rodopio incessante, busca o meu olhar, cheira-me como se me procurasse veias onde ainda existisse vida que pudesse salvar, raspa uma pata áspera catando restos nesse braço que eu trouxe de arrasto.
Senta.
Brilho.
Ouço um uivo por dentro de um avesso a endireitar-se nas costuras e dói-me a luz que sinto falar-me tão pacificamente na risca de pelo que medeia as orelhas altivas.
Beijo. Mão. Calor e tacto. Macio.
Guarda-me.