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quarta-feira, 31 de março de 2010

A árvore

Afastei-me da luz do ecrã, nunca da luz da folha branca. O caderno - o velho caderno que não chega a velho de tão rápido se gasta - manteve-se como um cão a meu lado. Permiti-me a dislexia, o não querer dizer, os riscos furiosos matando as frases incorrectas, as buchas desenhadas na diagonal e pelas beiradas das páginas, os desenhos do que vi e do que não vi e do que só eu podía ver, as frases que copiei de diálogos matutinos entre homens e mulheres que não queríam acordar, e de novo aquela sensação macia na mão, o deslizar da tinta azul-china na virgindade tingida a letras que me vieram de entranhas que eu julgava não ter, tudo no papel.

Porque voltei então?

Não sei. Mas assim como há coisas que não se devem explicar para que não percam a beleza, também eu não tenho de me justificar perante este amante.

Estou aqui.

Como sempre.

São só palavras, sou eu.

terça-feira, 30 de março de 2010

A leitora

Muito para além do ouvir dizer sentía satisfação quando lía os recados curtos que lhe deixava. Nada de elaborado, muitas abreviaturas, pontos de exclamação imparáveis mas rico, pleno, grandioso quando as lambía nos olhos e para dentro emprestava a sonoridade que lhe quería escutar. Demorava-se em cada palavra, antes atafulhara-se nelas sem sentido, na correría de descobrir segredos revelados. Que nunca chegaram. Mas isso nunca descobriu. Não tinha importância, o que era bom eram aquelas notas escondidas à espera dela, só dela, porque se convencera que todos os bilhetes a si deixados eram a si pela primeira vez, e depois dela, nunca mais haveríam recados, exclamações a fazê-la adivinhar o que ele quería dizer. Sem dizer. Sem lhe dizer à boca e aos olhos e ao coração, que na presença trocava monossílabos, gargalhadinhas, piadas entoadas de outros tempos. No papel era sempre diferente, mágico. Ela sabía. Ela lía e sabía. Como uma boa interprete.

segunda-feira, 29 de março de 2010

E se eu (me) lembrasse

E se mesmo depois de se morrer não se partisse de todo? Se houvesse um tempo em que o tempo se perdesse nas memórias de uma vida para depois se sussurrar a outros o que os outros só poderão entender quando passarem por essa porta para a derradeira viagem?


Ficaría explicado os déjà vu, o saber fazer sem nunca ter aprendido, a pretensa reencarnação em figuras que já passaram, a sensação de conhecer desde sempre alguém...


Ficaría explicado por que tantos homens e mulheres vivem em mim e falo de coisas que até a mim me surpreendem... E se assim fosse, quem podería eu ter sido?
Ou será que não sou? Amálgama de suspiros, sussurros, segredos, tudo empilhado sem ordem e a minha tarefa - arrumar-me para me conquistar, conhecer-me para saber de outros.

domingo, 28 de março de 2010

Os porquês

Parei de escrever porque me doía.
Mas dor a valer foi a que senti durante o tempo em que não sentía nada.

sábado, 27 de março de 2010

O livro negro dos homens (nove)

Pediram-me que escrevesse sobre o quotidiano e eu, sempre esvaída em palavras, entupi pelo preço da encomenda.

Pensei no que já tenho de feito, lavrado nas horas do aconchego fumado passadas entre braçadas de memória ou veios inesperados que se exibem num filão tresmalhado.

Agora... assim, a pedido. Não sei nada.

E penso que se não sei nada também não saberei escrever. Ou pelo menos, sê-lo-ei (presunção) mentirosamente, escritora de mata-sete, que quando os outros de mim se escapam escapa-se o saber das letras.

Estou encostada numa parede de alfabeto que não sei ordenar, confusa, o pedido dificil de atender.

Quero lembrar-me de cenas do quotidiano e só me saltam como rolhas de um vinho demasiado gasoso, imagens de mim mesma, dobrada, por vezes aflita pela imensidão que as palavras se transformem em seres que me acompanham por uma vida, que não minha, também minha.

Pedem-me e eu egoísta só me vejo a mim.


(Lx, 09-03-2010)

sexta-feira, 26 de março de 2010

O livro negro dos homens (cinco)

Tenho dias em que as palavras se organizam em largas avenidas, sem traços a delimitarem beiras, sem riscos contínuos ou entrecortados pelos solavancos do cuidado.

Abrem-se em estradas, tudo muito claro e belo e nítido, dias em que a vida se simplifica pelo carácter da palavra.

Há uma palavra para cada cois, cada sentir, cada piscar de olhos e nada se mistura ou há confusão no que se quer dizer.

Sabe-se dizer, sabe-se explicar.

Tudo claro, as palavras, claras, a vida clara das avenidas com que traço os meus caminhos e atinjo lares quentes e harmoniosos onde sou sempre benvinda.



(a meio do Tejo, 02-02-2010)

quinta-feira, 25 de março de 2010

Papel branco com homem ao fundo

Havía vento. Desgrenhava-o mas nada que o incomodasse, mesmo que os olhos se fechassem na defesa dos grãos que leves, um dia teríam sido penedo.

Nesse alto havía vento e havía um homem que olhava o nada a que se chama infinito. Ali. Tão perto o nada, tão tangível pelos olhos cerrados à força do que não se vê. O vento.

Havía frio mas não tremía, não se vê o frio, não se vê o vento, não se veem os pensamentos do homem despenteado que olha o longe tão próximo, tão leve, tão grande.

Dobrou o papel pela metade, escondeu-o no bolso, misturou-o entre chaves, um palito, um lenço de assoar, o lápis na mão por afiar.

Não desenhou nada. Recolhera todos os nadas na folha branca e sentía-se obreiro.

Afastou-se do vento, do frio, compôs o cabelo, bateu os pés, entrou em casa.


- E o desenho?

- Nada, estava muito vento, levou-me a folha.






(in Telas, C.G. Nov/2005)

quarta-feira, 24 de março de 2010

Texto sem memória

Não por decisão mas porque aconteceu devagarinho, minando os circuitos do pensar, entregou as palavras, os olhares profundos, as adivinhas e a surpresa maior era acordar no dia seguinte. Seguinte a nada, da véspera puxava um manto leve sem recordação que lhe pregueasse a testa e a calmaria do peito ao cerrar o rosto ao sol tornou-se o hábito das manhãs. Ía e vinha. Cumpría. Cumprimentava. Deitava-se e morría até ao dia crescer da noite. Certo. Correcto, escorreito, dias musculados na rotina e perdidos em faces tão ocultas quanto a dele. Se era infeliz? Não. Se já fora feliz? Não se lembrava.

terça-feira, 23 de março de 2010

O livro negro dos homens (dois)

A imperfeição dos olhos começa quando vemos os outros pelas palavras alheias. A insubordinação do sentir cola-se maldosa ao que o outro nos diz. Não quer estar sózinho neste desgostar, precisa de aliados, pinta folhas de serviço enjoado pelas nódoas que lhe vai colocando, uma a uma, medalhas de um sentimento próximo do ódio.

O olhar vê o que lhe mostram, influência soberana nos humanos.

Há gente que me detesta apenas porque lhes disseram para me detestar, querem ver-me assim. Compulsivamente, como uma moeda de um só dono.

Eu tresmalho-me sempre. Alguém disse que não me incomoda o vosso desquerer?

Eu sou sózinha. Por mim. Amo e odeio por mim. Não porque me exibem palavras que me façam ver os outros sob as cores do [seu] pequeno mundo.


(Lx, 19-01-2010)

segunda-feira, 22 de março de 2010

É hoje

Não sou de ameaças, perdería a tez da intenção e a voz fugir-me-ía para a gargalhada. Escárnio, claro, até mesmo verrugosa e essa coisa dos avisos deixo para os sensatos do mundo que eu tantas vezes caminho a quatro como as bestas. Sou eu, eu disse que a árvore não estava seca e com a Primavera a estalar livrei-me de galhos indecorosos, guardei o cheiro do verde e eis-me.
Vigor de palavras, muitas, tantas quantas as raízes que capilarmente sugam mundos interiores e renovam a cada folha o que os homens acham por bem denominar estações, trago folhas, lembro estações, em breve flores, mesmo as carnívoras da alma na condição pequena de me atafulhar de sentires quando os devería (sentimentalmente) dizer palavras, só palavras bonitas.
Mas como não sou de ameaças deu-me para trepar à árvore sem anúncio de data festiva, hoje, como ontem, fascinada pela queda e pelo subir de novo.