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sexta-feira, 31 de outubro de 2014

Malas [des]feitas



 
Fim. De tão somente mais um mês, de apenas mais um dia ou mais uma folha arrancada a actualizar calendários e não perder o ritmo das alucinações e caminhar de pernas afastadas entre universos onde tento perigosamente manter-me sã e nem por isso o faço ou nem por isso o acham que o sou ou nem por isso o permitem que o seja aos puxões por um braço para lá e para cá, seja para que lado for, desequilíbrios que vou emalando e quando olho para as minhas costas, tanta bagagem acumulada.
Aprendo, vou aprendendo, largo o desperdício, hesito entre o que me recorda o riso e o que me saudosamente  magoa [para quê masoquismos], chuto na impotência de mãos cheias já não aguentarem mais pesos e a alma é a mais forte, abro mãos e liberto-me.
Ainda assim tanto, tanto, vêm pendurar coisa alheia a tiracolo, ao ombro, ao pescoço, na dobra do braço, não quero mas vou segurando pela fragilidade de quebrar o que me passam, cristais de outros cuido-os tanto como se fossem meus e devolvo-os inteiros à espera que os mantenham intactos [Ingenuidade minha, recebem-nos agradecidos mas a uma só mão e sem jeito de pegar], então que seja, fiquem com os vossos cacos que eu tenho muitos meus.
É o fim do principio ou o começo do acabado, é um carrocel porque não saímos do mesmo sitio, fazemos as malas só para nos iludir.

quinta-feira, 30 de outubro de 2014

Lugar marcado




Nunca se sentava naquele lado, não porque fosse o lado contrário ao lugar dela mas porque tinha receio, talvez mais respeito, sim era isso, um sentimento de respeito pelo que era dele e lhe pertencia, até imaginava que caso descuidada acabava sentada nas pernas dele, atabalhoadamente, quiçá a magoá-lo, não que isso - claro! - pudesse acontecer, homem fortíssimo era ele. Tinha sido. Já não era mais. Já não estava mais para ser mais forte ou frágil ou magoar-se ou sentir-se incomodado ou agarrá-la e abraçá-la fortemente sem ser com força mas como uma protecção, uma concha que a isolava de todas as coisas menos boas. Agora nada. Um lugar vazio. Um lugar vazio para onde ela olhava e vía sempre as pernas dele traçadas com a mão esquerda entalada entre o vinco das pernas, o sapato a balançar e o atacador com o laço muito perfeito sem desmanchar, como conseguia... E a voz, a voz que ressoava no encosto do sofá e vinha, vinha e ela sentía até ao seu lugar no lado oposto. Nunca se sentava naquele lado, há coisas que ficam marcadas para sempre, ali era o lugar dele e mais nada, as palavras dele a ressoar até virem a ela como abraços e a entrarem-lhe pelas costas, ainda lá estão, basta ela ver.
 
 

quarta-feira, 29 de outubro de 2014

Mayo a Madrid - 3



Andar, andar sempre, Madrid é um caminhar constante, um carreiro de formigas incessante e até em grandes espaços abertos é difícil colher imagens sem trazer para casa prisioneiros desconhecidos, outros tantos que como eu procuram a cor e a memória de um pedaço.
 
Peleja-se em francês, os meus dois companheiros agigantam-se em poses de riso imitando estátuas hercúleas que de nada lhes valeu e eu sufoco-me pela vastidão do sitio atravessado por linhas brancas, tenho frio, o meu Portugal mandou-me em meias-mangas e nada me faría suspeitar que viría conquistar [de novo] terras embrulhadas em névoas, são as brumas da memória, canto o hino baixinho e prendo as mãos ao portão do Palácio do Rei.
 
O que tu precisas é de um agasalho, dizem-me.
Verdade.
Vem, Vamos a Plaza del Sol.
(De novo?!)


Maio/2014

terça-feira, 28 de outubro de 2014

Lisboando, Cartas a um Amigo



Meu Caro, como vais?
 
Espero que esta te encontre sadio e calmo, tempero costumado pelo cenário a plano medido dos Alentejos terrenos donde não queres largar pé nem mão, pois melhor do que eu, este teu velho amigo arrasta-se pela Capital como os pombos nativos.
Já reparaste nestas aves? Não voam, caminham. E fazem-no na imitação do homem, garanto, atiram-se ao asfalto no destemor de veículos e turbe em hora de cheia, uma perdição que me tem posto a pensar.
 
Será a mutação das espécies? O ajustar ao século que nos condiciona os hábitos e faz esquecer para o que cada um nasce?
 
Ando a pensar em arranjar montaria, mas o preço do fardo da palha é um estouro e o desperdício levar-me-ía a consequências evidentes junto dos serviços camarários.
Assim sendo, ergo o nariz e cobiço D. João à Figueira, D. José ali ao Comércio, bravos equídeos.
Temo, porém que um pouco imóveis.
E um pouco dados à convivência com as ditas aves caminhantes, que afinal até esvoaçam à altura da garupa.
 
Que seja, meu amigo, Lisboando.
 
Recebe um abraço do teu sempre,
 
 
 
Fotografia de Eduardo Jorge Silva

segunda-feira, 27 de outubro de 2014

O corte



Nada se ouviu, não caiu nenhuma montanha nem o trovão assustou ninguém, provavelmente nem ela no momento deu conta do pequeníssimo rasgo que sofrera, um quase fiapo, uma coisa de nada, a bem dizer uma fragilidade de igual a tantas que já padecera por essa vida e nem ligara, segue e a vida vai, endurece, cicatriza, fortalece e naquele sitio nunca mais fraqueja, noutros até pode acontecer agora ali não.
Mas sim.
Foi no meio do peito, junto ao externo. Terá sido? Pareceu-lhe uma pontada, ou uma comichão irritante, ou uma bicada, ou então uma qualquer coisa que nunca sentira e nem pensou mais em comparações porque estava demasiado ocupada com a surpresa do momento e com o que acabara de ouvir. Ou mais precisamente de não ouvir. Pedira a verdade e foi sufocada pela inundação de explicações atabalhoadas de contradição e sem nexo, e quanto mais se calava mais elas lhe entravam pela garganta e pelos ouvidos e pelos olhos e foi quando sentiu aquela coisa. No meio do peito, quase o bico de uma faca. Mas ao de leve. E que se tira logo, nem se nota, nem fez corte, nada, nada.
Afinal deixara o coração frágil, pronto a abrir-se, a rasgar-se como um tecido onde se mete os dentes e depois se separa em dois na maior facilidade. E nem se dera conta. Apenas palavras e tudo se tinha fracturado.
Agora que pensava naquele momento, tudo lhe parecia silencioso.
Como um véu que lhe passasse por cima da cabeça e lhe tivesse levado a alma, a deslizar.
 
 

domingo, 26 de outubro de 2014

Fruta cristalizada



Eu que tanto lastimo a falta e a correria a que sempre me entrego, eis um pequeno bónus, uma quase fruta cristalizada que é como quem diz, não está fresca mas não deixa de ser fruta e é açucarada, macia e até dá a sensação de se ter ganho uma guloseima por algo que não se contribuiu.
Veio o tempo e o tempo dos homens acrescentou-lhe mais uma hora, que não sendo muito não deixa de ser um penso rápido para quem corre manco com uma bolha no calcanhar, lá vou eu, agarrando todos os segundos avidamente e esperançosa que ainda sobre mais uns para dar conta de mais uns metros de corrida - leia-se afazeres - que nestas coisas, quando é bom, embora os pés batam no chão para impulsionar o passo, subo demasiado e o ar puro, rarefeito engana-me dizendo que consigo mais e mais e ainda mais.
Tanto açúcar é o que dá. Euforia.



sábado, 25 de outubro de 2014

Eu caminho, logo existo



Complicados caminhos os do pensar e os da palavra, ingénua e ignorante, a ambos devo tantos golpes de lâmina quanto o avanço rompido feito nos labirintos criados dentro de mim, outro tanto de labirinto à medida que as ideias se glorificavam na luz do verbo e a expressão se tornava corpo em entendimento.
Quanto mais do conhecido mais perguntas cresciam e quanto mais cresço de tempo, mais a verdade da minha pequenez se revela nas interrogações a responder, caminho ainda e sempre, uma e outra vez admoestada por tanta curiosidade que ele há coisas que embora fermentem devem ser minguadas, outras vigiadas são, mas da seiva do pensar não há quem lhe ponha cabresto, é deixá-lo correr à solta e fazer os caminhos que quiser, ninguém saberá nunca para que lado se orienta, qual o rumo a seguir e a pequena dor que dá, é que a impressão deste verbo nunca será a tinta de ver.

sexta-feira, 24 de outubro de 2014

Liberdade [liberdade?]



Quando as palavras se tornam um estorvo para os outros e o conselho é que se calem ou se moderem, a liberdade de expressão treme, fractura-se e corre o risco sério de desmoronar.
Senti o peso desse recado quando me neguei a retirar texto e imagem publicados e uma e outra vez, a hierarquia me veio afagar a cabeça apelando à consciência [minha] e virtudes [do público], argumentando não estar em causa a qualidade excelente [muito obrigado] mas a sensibilidade [somos todos tão frágeis] que poderia ficar melindrada.
Perante a minha resistência, invocaram-se os códigos de conduta profissional [do lado deles] e a leitura integral do texto a acompanhar a imagem [do meu lado], factos de somenos já que só uns poucos parecem dotados da capacidade de ler para além de 5 linhas e o que salta à vista é mesmo o que está à frente dos olhos. [Ora bolas! E que posso eu fazer?! Não percebo nada de genética e os meus tempos de lectivo já se foram! Se não querem ler ou não estão interessados...]
O discurso manteve-se calmo e eu nervosa, presa, amarrada nos pulsos, um pano na boca e uma venda nos olhos. Que tinha eu para dizer? Pouca coisa se consegue dizer nestes preparos.
Texto e imagem foram agradavelmente retirados.
A minha liberdade foi ceifada pelos tornozelos e eu caí ali mesmo, toda a gente ficou contente sem mais ofensas e gastos de tempo em leituras de linhas a mais.
E o que se segue?

quinta-feira, 23 de outubro de 2014

O Meu Diário




Abriu a gaveta e fechou-a.
Assim. Rápido, como se o medo fosse mais veloz que o pensamento, que por vezes até consegue ser e as pernas fogem até bater com os calcanhares no rabo que o medo vem lá atrás a perseguir e quando finalmente se está longe olha-se, olha-se e o medo já se evaporou, só se ouve o tambor do coração. Desta vez, o coração parou-se-lhe, deve ter ficado entalado na gaveta, uma dor ignóbil, a esmigalhar-se entre o fecho de metal e a madeira, o sangue a pingar e no entanto não ouve nada, nada de gritos ou o ribombar do bater como a pedir a salvação do peito ou então caiu para dentro do silêncio da gaveta, uma espécie de caixa selada em que nada se escuta e aí pode muito bem o danado agitar-se, bombear-se até secar sem um pingo de sangue que ninguém o acode.
Devagarinho, um fiozinho de luz a entreabrir a gaveta, um pouco mais... Fecha tudo.
As mãos tremem.
Sabe o que está lá dentro, para quê insistir numa verdade que lhe dói e que condena, voltar atrás, ver o medo outra vez, é como correr de costas e nem velocidade se tem para escapar, que estupidez!
Abre.
Agora está aberta. Toda.
As três palavras a dourado perfeitamente legíveis sobre o caderno forrado a pano florido, já desbotado pelo tempo. Quanto tempo? Não interessa, muito tempo, pensa na correria e no medo e na correria de costas e no medo a engolir-lhe as pernas pelos calcanhares.
Lê as três palavras: O Meu Diário.
Abre à sorte.
Alimenta-se das letras, esquece o medo, sorri, lágrimas molham as páginas, ri, enrola o cabelo no indicador, soletra, volta atrás, suspira, lê alto, fecha o caderno, arruma-o na secretária, fecha a gaveta.
Sente frio, sente medo, sente saudade da rapariga do diário.

quarta-feira, 22 de outubro de 2014

Vielas do desencanto




Não é de agora mas muito mais lhe sinto o afastamento, esclareça-se o meu dos outros e clarifique-se que dos outros também não há acção que se intente na proximidade ou procura a mim, por isso estamos quites no gosto, ou então serei eu que tudo faço para enxotar os de minha raça e estes sem paciência para as minhas caturrices voltam-se a coisa mais fácil de entender.
Sei que não sou meiga, muito menos meiguinha e de queridinha nada-nada.
De estomago que encaixe conversa a metro nem monossílabo me aguenta e os olhos traiem-me ao segundo no frete que confessadamente, bufo, e me afasto. Passei, no entanto, a engolir queda, a elegia do próprio, nada digo e aguento firme, guardo para mim e aperto a barriga entre braços traçados para o vómito não saltar, bato o calcanhar devagar (contaram-me o tique...). Mas da mentira ou distorção abro a boca como um salto, não me calo, passo os limites e já me apanhei a observar o rosto dos presentes horrorizados perante a minha atitude.
São ruas estreitas e com curvas que atrapalham a vista para o que se segue após, vielas que desencantam em vez de desencantarem descobrires, são facadas que esperam quem dobra a esquina escura e fechada ou assaltos ao peito para lhe levar o coração de bem.
Afasto-me dos homens, das suas vielas, sinto-me de dia para dia cada vez mais longe dos que me falam as mesmas palavras que eu trago na boca e penso com tanto medo, se as que eu digo não assustarão nalguma rua mal alumiada alguém de paz que por aí caminhe.


terça-feira, 21 de outubro de 2014

Egoísmos



Há vezes que apetece mas não há tempo, doutras há a oportunidade mas não há veia. Dias chegam que tem silêncio e empenho mas o verbo não sai a contento e tudo que se vê é chato e medíocre, mais valera recolher a mão e arar outros campos a fazer calo de verdade. E também surgem as alturas em que tudo se reúne no ouro e nada se faz, o prazer é deixar o texto cá dentro, apurá-lo por dentro e de olhos abertos como se fechados estivessem o ouvir ressoar no peito e senti-lo quase decadentemente a encantar até à emoção, despegar-se de nós, vê-lo partir, um dia qualquer escrevê-lo.
Esses são dias de emoção profunda porque são dias de pele e de alma, as palavras electrificadas do sentir fluem límpidas e tudo faz sentido, página e autor são uno e nada é mais verdadeiro que a leitura desse material tão rico.
Porém, tão egoísta.

segunda-feira, 20 de outubro de 2014

Parágrafos



Tarde do não querer saber, cedo do hei-de chegar, asfixia da premonição do que se deixou e que mudança alguma sofreu, são certezas, são idas, são obrigações em que a beleza se escapa entre dedos.
Há intermitências no difícil, outras artes parecem despertar olhos (mais) vivos, oxigénio que refresca limbos. Novidades. Entrecortadas. São diálogos que se perdem pela censura do traço que come a palavra proibida.
 
Ele chegou e olhou os olhos, cabeça de lado, sorriso aberto, um só beijo no rosto. Abraço. Abraço. Enlaçou os braços no tronco e sentiu o nó singelo dos dela no aperto ao seu torso. Abraço. Gosto. Depois lembrou-se que era um homem e ela uma mulher e desenlaçou-se rápido, cumprimentos, sorrisos, falou do tempo, calor e frio.
 
Falaram de palavras. As dela. As que são dela e as que sendo das mãos dela não são dela. Disse ela. E ele disse que ela podiam ser muitos se ela quisesse. Ela disse que não, que não estava na vontade dela. Ele disse que isso era um ponto de vista. Ela olhou para ele e não disse mais nada.
 
Chegada a hora do lobo esperei que este viesse desinquietar-me para me tirar da mulher que sou. Mas fui eu que acabei a chamá-lo. Talvez do tempo que caminhamos juntos ele se tenha domado a mim. Se assim for, acabarei só.
 
Hei-de procurar uma fotografia minha, com a minha face. E quando a encontrar desenho umas lágrimas junto aos olhos para me lembrar. Intermitências. Novidades.

domingo, 19 de outubro de 2014

Instantâneo - Episódio dois



Nada me falta, os objectos de culto à mão favorecem-me a vontade, abro o caderno na 1ª página, é hábito, folheio sem pressa até chegar à folha branca, vão-me ficando agarrados na ponta dos dedos alguns pedaços de azul-china de palavras que teimosamente querem hoje ver a luz repetida, não as quero pensar mas penso nele que não tenho noticias e penso no mar, saudades do mar quando já não há multidão nem gritos nem obrigação de se ir porque é Verão. Esmago a ponta do cigarro na palavra atafulhada pela correria presa dos tornozelos na areia solta e é tudo meu, o ar tão salgado que a língua a dizer AH na boca muito aberta e a passar na pele dos lábios esticados sente o ardor da felicidade de tudo ter deixado de pensar, só mar e imensidão e pulos e rodas com as mãos a enterrarem-se perto da água onde esta morre devagarinho na areia escura e cabelos que tapam olhos e tonturas por não se saber onde é o chão e o céu e caír, caír e sentir deitada girar de braços abertos enquanto o mar gela a pele arrepiada de já não ser tempo de Estios. Bebo um gole de café instantâneo mas só acho um círculo castanho e seco no fundo da chávena.
 
 

sábado, 18 de outubro de 2014

Campo de Palavras (16)




Ela disse:
- Porque será que é sempre assim? Porque será que cada vez que lá vamos nunca há ninguém, somos só nós, só nós e aquele lugar, como se tudo tivesse desaparecido?
Ouvi o silvo do vento e o estalar das ondas contra as rochas, uma e outra gaivota em círculos a planarem e um pio triste quase gemido. Faltava-me o ar por tanto haver, uma tomada à força por dentro dos pulmões a obrigarem-me a calar quando tinha vontade de gritar de braços abertos a dizer eu estou aqui.
E no entanto, mudo que os sons abafavam-me na pequenez do céu aberto, só as passadas a trilharem gravilhas e até estas pisei no cuidado de não me trairem a presença, intruso, quase nada que me possa esconder e nem de mim, talvez os que aqui vieram se tivessem perdido na derradeira lucidez do que são. Palavras finalmente achadas para se tranquilizarem ou não.
Disse-as para mim, para que se tornassem mais cruas na verdade do que sou mas também para que me enchessem o peito ao invés de um vento que me pudesse levar a intenção, não gritei porque afinal não precisei de ruído, não me perdi porque achei palavras para me fazer.
Sitio de solidão, sitio de verdades, olho a fotografia que ela me passou para as mãos e não respondo, ouço o assobio do vento e o mar a estalar contra as rochas.
 
 

sexta-feira, 17 de outubro de 2014

C782 - O confessionário


 
Há quem tenha lugar reservado, há quem guarde o lugar para o que esbaforido tenha perdido a noção do tempo e deliciado a Morpheu se tenha arrastado por fronhas e cobertas, há quem venha com monólogos de rezas e pragas contra outros sem esmero de profissão e rigor do cumprimento se atrasem na condução de outros veículos de chegar que não o C782. Há quem já chegue esgotado: Do físico e do ânimo. E a consolação da correria e da discussão deixada em casa às primeiras horas do dia, é atirar-se ao banco reservado e despejar à companhia caridosa o tormento que passou.
Arrancamos.
As primeiras palavras saiem na fúria, atropeladas pela injustiça e pelos semáforos vermelhos, pára-arranca, travagens da comoção, curva à esquerda e até o encosto do corpo no corpo do ouvinte lhe verte as lágrimas do infortúnio, aceno de cabeça, curva à direita e recta curta, diálogo, perguntas, um estrondo, terá sido o pneu que rebentou?
Confessionários improvisados em que mais de trinta escutam o desacato e infortúnio, acenam a cabeça, condóiem-se no colectivo, todos ficamos a saber a falta do dinheiro e as malandrices.
Trajecto quase feito e a janela aberta, o ar não refresca o escaldado da revelação, confessor e ouvinte saíram lá para trás a rirem e aliviados.
Tão cedo ainda e a apetecer-me álcool para empurrar esta viagem.



 (in As fantásticas aventuras do C782, Setembro 2014)

quinta-feira, 16 de outubro de 2014

Sinais



Cá por dentro tenho medo de saber e por isso nem digo as palavras, aperto coxas e espalmo corpo contra dorso, só sinais de poeira levantada como tornados erguidos a espantarem quem se meta a tentar parar o corcel. Não há caminho feito, a montada é livre e brava, é deixá-lo ir até as narinas se acalmarem do que me persegue no peito, foge ele do que eu escapo também, seguimos até ti que nada dizes, silêncio de ausente e pior que isso pois sabemos-te de sempre e agora ido, mais lembrado ainda ficas. Galopa o coração, cascos do tempo em papel branco, não vou dizer as palavras, faz um desenho para mim e desperta-me deste sonho mau.

quarta-feira, 15 de outubro de 2014

À vida (porque eu mereço)



Uma dessas telas que se hospedam nas paredes choramingava coisa baixinha, noite dentro e o gato  de vigia, cauda de cobra encantada de lá para cá a ver quando o salto lhe traría curioso satisfação no sossego ao sono enroscado.
Mas nem o bicho se ía e nem o quadro se calava e por mais que os pares deste comandassem o xiu à boca, a aguarela chorona insistia num borrão que se alastrava moldura abaixo e parede até ao solo.
E quando se assim se desmaiou, o gato bebeu-a tornando-se amarelo como o Sol.
 
Deve ter sido por isso que quando hoje saí e a chuva me bateu no rosto, quase a jeito de pancada levada pelo vento, vi as cores do mundo, acordada à vida. Lavadas. Sem a tristeza do ontem e reencontrada comigo, de mão apertada nos outros, a caír e a levantar, a enganar-me e a perdoar-me.
 
Sobretudo a perdoar-me porque mereço, porque este lugar da perfeição e da força que nunca quebra também fere, dói e sangra e arde como tudo. Embora eu negue.
 
 

terça-feira, 14 de outubro de 2014

Triste



Há vezes em que a tristeza vem e não arreda pé, transforma tudo e alma em só e até do deserto se sopram os grãos de areia para se afastarem as ideias de nele se erguerem montes para distrair. Resta o buraco, ocupamo-nos a enfiar nele e dele dentro de nós.
Não há homem nem mulher, é-se cousa, uma perdição engolida em que a língua só encontra sal a queimar e das palavras para se falar a si mesmo no auxilio da pena, o ódio da pequenez pela solidão cuspida.
E tomou-me.
Triste, mas tão triste que nem dos que me apoquentam incómodo lhes acho, não lembro apetite em pés de pato ou coup de pied a maltratar caimbras doloridas, dos mortos meus não ouço voz que alente o espicaço e como já não sei chorar deixei de saber o que fazer aos olhos, às mãos, ao silêncio que hoje veio e não trouxe os outros de mim, que sempre disserem ser de mim e até hoje fogem.
Não escrevo, não tenho vontade.
Só que estou que estou tão longe de mim, nem me procuro no receio de me sentir inundada desta peganhenta tristeza que me faça cousa de besta.
 
 

segunda-feira, 13 de outubro de 2014

O céu da boca (Palavras Reencontradas) 4



[...]

Reaver palavras, perder horas nas linhas e achar prazer até querer o fim sabido, procurar como uma vida de alguém que se descobre no parentesco romanesco e aventureiro de uma árvore genealógica e que fascinante, nos leva a brancas noites imaginando traços e voz, trejeitos e odor.
Ver o desenho da sua letra e passar-lhe o dedo e alguém dizer "quando tu escreveste isso.."
E tu sou eu.
E eu desmorona-me ali à minha frente em negra areia, descabimento de palavras ditas, pois se nem eu conheço tal autor, não me lembro, escreve melhor que eu e a imagem que havia feito que faço agora dela - em mim?
Esse outro de mim que tão melhor o faz e me encanta, envergonha-me.
Que devo fazer?
Reaver palavras para não voltar a escrever?
Perder o prazer de ler o outro?
Que raio de umbigo é este que me sai pelas costas e não me atarracha?
[...]
 
 
 
 
(in O céu da boca (Palavras Reencontradas), Fevereiro 2014) 

domingo, 12 de outubro de 2014

À procura



O músico de rua toca as moedas que lhe atirarem e a acústica das paredes devolve-me a branco e negro o tecto do mundo, talvez chova, tem de chover para me acompanhar, as mãos nos bolsos já não te acham mais e mesmo que finja encontrar-te em cada casaco escuro na multidão vou parando nas vitrines das montras à procura do meu próprio reflexo.
Anagramo, arranjo forçados sentidos a palavras, mora, roma, amor, desfazem-se montras, a mulher de joelhos em oração mas são minhas as preces, não pedi ao músico de rua que tocasse Cure e o dedilhar do refrão fere-me a transparência das memórias no estilhaçar de árvores estilizadas que se decalcam em mim como se eu fora elas e tu uma invenção.
A austeridade do edifício no ângulo do vidro ferem-me a realidade do final dos acordes, tiro do bolso a fotografia que me ofereceste e deixo-a na caixa do músico.
 
 
 
Foto de João Domingues

sábado, 11 de outubro de 2014

Tempo(de viver e de escrever)



Um tempo de viver e um tempo de escrever, que não sei bem se do segundo é tempo meu se de outros que faço uso ou ao contrário, bonificam-me em múltiplas e desconhecidas vidas, tantas maravilhosas e de aventura, outras a decadência da alma e a falência procurada do corpo, e a mim mesma na carne as sinto em dor como se minha fosse a mágoa, a perda, o luto.
De todos fico-lhes no meu viver com os detalhes, minúcia minha. É vício desde o aprender a contar, reter nas pupilas o pormenor, lembrar cheiros e sons, associar verbo a cada um para traduções do que são, do que foram, do lembrar quando me sobem à boca calada e o coração disparado fala comigo, escondo-os do mundo com medo que os manchem, se por aí andam soltos é responsabilidade própria, de mim não levarão traço que os denuncie.
Vivo-os, faleço-os, que outro risco poderá haver?
 
 

sexta-feira, 10 de outubro de 2014

Olhar com Vista sobre o Rio (17)



Ao alcance da mão e ao toque da vista ajuda-me a brisa morna a empurrar vontades até ti, como se tal fosse preciso, acelera-me no peito o sorriso do regresso e de azul como o olhar do marinheiro que de mão estendida me aguarda para partirmos, balouças ufano e mal disfarçado a alegria do reencontro.
 
Segues manso, viagem de correntezas, que hoje o prazer do tempo alonga-se em curvas de nos termos e o Mestre que te conhece, manobra o desejo dos sonhos de alto-mar, amar, longínquo estar aqui de pé sobre as tuas águas, deixo-te abraçar-nos e adormecer, acordar salvos no encosto de margem segura e duvidar no encantamento da travessia.
 
Meu Rio, quem te disse que eu quería ser salva...



(in Olhar com Vista sobre o Rio, 2012)

quinta-feira, 9 de outubro de 2014

Portas & Janelas - Esboço nº 11




Anda, diz-me agora se és capaz, o que me encostavas de palmas raivosas ao peito enquanto o gatilho das palavras nos acabava por cada vez que juntos enfrentávamos a mesma sala, não há coragem. Nem eu. Só te peço para me dizeres, porque não estás aqui e agora para as poderes repetir. Nem eu sei o que me deu de aqui regressar e erguer os olhos e enfrentar a transparência do que fomos. Afinal, não sobrou nada. Nem paredes, tão pouco um bocado da decência dos vidros a reflectirem a miragem das mãos dadas com que vínhamos cá para fora, lá dentro só a culpa do dedo apontado. Caíu tudo, se tu visses. Tanto me disseste que nada aguentou. Ou terei sido eu que consumi o ar e deitei um fósforo ao coração e ardi com a casa, que sei eu, dá pena. É ver o daninho das ervas a tomarem conta, serão o resto de nós, o que deixámos para trás, nem sobrou um bocado da cortina da janela que tu afastavas ao de leve quando eu te falava perto da orelha a dizer que íamos ficar aqui para sempre, felizes.
 
 

 (in Portas & Janelas, Janeiro-2014)

Todas as fotografias da Colecção Portas & Janelas são da autoria de Eduardo Jorge Silva
 

quarta-feira, 8 de outubro de 2014

Repetir



As repetições matam-me devagar, murcham-me e levam-me a dar como resposta um encolher de ombros, deixo de me importar, nem sequer faz sentido não gostar.
Nos últimos tempos dei comigo aprisionada numa armadilha rotineira, sem prazer nem desgosto, um aceno de cabeça e o levantar rápido dos ombros, qualquer coisa, nada de conversa.
Hoje ao ver o Rio e a força que o Sol fazia para romper de qualquer forma a cortina densa e baça do inicio do dia cinza, apercebi-me da voz de Madame e do seu inseparável ponteiro a marcar compasso na obrigação das repetições até à exaustão do mais que perfeito. Ensaiava-se a queda, elegante como uma flor derrubada pelo vento, os braços juntos alongados e prolongando o comprimento do sofrimento ou o encantamento de um sono que sería desperto por um príncipe.
Quanta nódoa negra, joelhos sem pele, cotovelos queimados.
Quem diría que tantas lágrimas, ranho e vergonha me haveriam de servir muito, muito tempo depois, para ensinar outros, outras quedas, em artes contemporâneas e tão menos encantadas em que as flores são arrancadas ou pisadas ao invés de se dobrarem em vénias perante sopros de vento... E ainda assim - as repetições.
Caír tanta vez até parecer que é fácil, natural, que nada custa nem dói que bastou uma só naquele instante. 
Quando o Sol furou um buraquinho e um raio de luz incendiou a cidade percebi que não estava presa, apenas preciso de dançar.
 
 

terça-feira, 7 de outubro de 2014

[Curta] Passagem




Evoluem-me as memórias à passagem de cada estação, os safanões das travagens acordam o metal das imagens emolduradas e tanto eu como os outros temos à-vontade para a repetição de diálogos magoados [não sei porque realço sempre os que mais me ferem] não esquecendo o espaço para os silêncios intencionais, as pausas para os passantes que é suposto não escutarem o que dizemos ou a respiração cortada pelo que custa dizer[será?].[Então porquê a insistência do outra vez?!]. Embora saiba o que vou dizer não evito nada e mais uma vez a perdição, o eco do já escutado na minha própria voz [Suicídio]. Sinto a minha língua contra os dentes a soletrarem as palavras dos outros porque as sei de cor e sei também as minhas respostas, até podía achar outro fim, bastava andar e dizer nada e outro final já sería mas a escolha é a escolhida das anteriores [Folheio álbuns de lembranças e nada é mais acertado do que o instinto da verdade]. Final de linha e nem um único sobressalto na curta viagem. Sinto que alguém me espera.

segunda-feira, 6 de outubro de 2014

Instantâneo - Episódio um



Rituais.
Faço o golpe devagar, é preciso que o sangue seja o suficiente para alimentar o sacrifício, nunca sei quanto nem nunca me importa se mo levam todo, o momento do instante é o presente e o futuro, são páginas folheadas rápido que logo que a caneta extinga o liquido do corte serão passado.
Sinto o cansaço de suportar linhas e o cansaço na transposição dos mundos, levezas de me dar, ajeito o cabelo ou o corpo ou o caderno, um pé lá, um pé aqui, detalhes de um fruto que mastigo imaginado ou grandes paisagens que me abrigam como uma coberta que se dobra doce para me esconder o frio que chega manso à medida que o flash perde a força da cegueira.
Tenho frio, não tenho mais sangue, mais tinta, haverão folhas brancas a mais mas não agora, não neste pedaço de tempo dissolvido entre mim e a caneta de tinta permanente a contarem coisas que não sei de onde vieram, só as fiquei a conhecer depois de as ver escritas.
 
 

domingo, 5 de outubro de 2014

05/10/1965-09/01/2013 (Até ao reencontro)



 
Vejo-te assim: De umas vezes solitário, vagueando sem fim e sem destino, sempre incansável a caminhar como uma fera na busca de presa, focinho rente ao chão e orelhas a rodar ao menor ruído, quem te observar de longe até pode achar-te perdido e triste, chamar-te por um carinho mas tu olhas, agitas ao de leve a cauda grossa e segues sempre. De outras, vais na frente, ao comando da alcateia, peito feito ao perigo e a farejar outros que se queiram meter na tua trilha, sempre pronto a defender os teus.
Ultimamente só me apareces menino, um garoto endiabrado e magro, muito ágil de corpo e respostas na voz de timbre poderoso, discutimos, contrariamo-nos, ris destemperadamente da minha fúria, lutamos, rolamos os dois pelo chão, eu mulher feita e tu cada vez mais miúdo.
Quero abraçar-te.
Dizer coisas e ouvir de ti as coisas que sei que tens dentro de ti e não dissemos.
Fazes-me falta, desde que te foste que deixei de chorar, deixa-me abraçar-te mas tu saltas do meu regaço a quatro patas e segues o rasto de uma pista que me é invisível.
 
 

sábado, 4 de outubro de 2014

Afectos (de tantos Outonos)



Ouço as horas esmagadas pelo pêndulo do relógio centenário, que rápido aqui cheguei e ainda noitinha, há um minuto era Janeiro e as cores que esvoaçam restolhadas pela rua feita dourada e vermelha não existiam, era tudo nu e lavado e sem som, os pássaros apressam-se e distraiem-me ao tentar segui-los para não correr atrás do tic-tac do tempo mas a cabeça volta ao peito e os afectos abraçam-me pelo dia a vir.
Amanhã será dia de ontem, dia de tantos passados, a árvore sozinha enxertada de outras antigas que lhe deram seiva, e ainda assim o gosto à boca desses sabores de cada uma, únicos.
Quase medo, quase não saber talvez, terei eu gosto único?
Mais uma hora de meia que se amassa e os pássaros silenciados pelo meu pensar, a claridade do dia a romper aquieta as folhas pelo chão manchado e os contornos da árvore trazem-me da nitidez do rosto da saudade o entender do paladar desta dor no peito.

sexta-feira, 3 de outubro de 2014

O livro negro dos homens (treze)


 
 
O mal da solidão que aconchega por vezes ombros rodados à frente, é que até nesta se é sózinho na revolta, não havendo outros a quem degladiar palavras ou bater pé, defender posição ou arrear argumentos, cresce na ira a figura de nós mesmos e no basta, acaba o tumulto a quebrar espelhos matando o que somos para acabar com os outros.
Mal dos males, que logo que os estilhaços se aquietam no som do vidro partido assim o feitiço se quebra e a lucidez do silêncio devolve não a imagem una mas muitas e deformadas, olhos que nos olham de cantos e diagonais, esquinas mal dobradas a espreitar um descuido, nunca fomos um só, apenas libertámos os que contidamente chamávamos solitários e ignorávamos para nos manter civilizadamente distantes, quase tristes, epopeia sem direito a registo nem lamento conhecido, e no entanto, os cacos de tantos.
 

(Lx.,30-04-2010) 

quinta-feira, 2 de outubro de 2014

O bater do coração (vinte e um)

Como olhar e ver tudo e logo cegar no instante pelas palavras que sobem à boca, comem o ar, levam  tudo de dentro e até o coração, amassam-no como uma bola de papel em que serviu a letras mal pensadas e devolvem-no às fuças, humilhado, para que aprenda a lição e envergonhada nos olhos baixos, engulo-o ainda latejante dos apertos, retomo o oxigénio, o pulsar das veias, a nota alta de cabeça que me suspende a visão lembrada.
Atiro-me no abismo da beleza.
Deixo-me perder no circulo dos olhos tentando encontrar a justiça no verbo ou engano em mim, não há verdade na poesia, há fragmentos e escaras, coisas que imitamos para nos sentir bem e recordar do que vimos quando pestanejamos no silêncio entre truques de canetas encostadas a papel ou relógios a trabalhar.
Não tenho palavras, só por isso caio, só por isso de pé, porque os olhos abertos dão-me o verbo de ver do bater do coração. 
 
 

quarta-feira, 1 de outubro de 2014

Sem rédea



 
Madrugada a magoar a sede nos olhos abertos da tua figura, tanta comunhão nas noites de palavra e nem um suspiro a riscar a parede para te anunciar, eram quartos, eram luzes, eram cores, eram risos e eu dizia árvore e tu trepavas para os frutos mais altos na madureza dos doces ao pé do Sol e dizias cavalo e eu suava no galope desenfreado de calcanhares apertados no bojo sem me importar nos golpes finos de ramos que tudo era emaranhado em desenho animado.
Detalhes, só nos nossos olhos, da boca engolíamos a cru o sentido da vida e apoquentávamos o verbo quando distraídos o silêncio nos traía.