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quarta-feira, 31 de dezembro de 2008

Da razão. Ou talvez não

Ano cheio. De tudo o que convém a quem sente e vive, nem mesmo das mágoas abro mão. Surpresas, muitas. Embora nunca me sejam suficientes que o meu imaginário alimenta-se do esgravatar da descoberta e os eus não são excepção nesta gula de abrir portas a mim mesma, inovação, renovação.
Passou rápido este ano, mais rápido que os outros, terá tido menos horas de despojamento e no entanto, espólios e roupa caída vestiram-me a nudez das emoções a cada verbo permitido usar-se sem o vínculo sanguíneo do parecer bem e se dedilhados foram estes cantos, houve tempo de sinfonia e outros de um silêncio avassalador. Ficou pelo trajecto uma e outra pedra, pequenas, rolam abaixo, larguei-as eu, uma bagagem sem préstimo que agora servirá de adereço, pouco, mas lá estão a cumprir número numa vista rasgada para uma montanha que é sempre a subir. E o ar é tão raro à medida da escalada... Chego leve, mãos que me puxam, uma leveza fantástica e colorida de surpresas, o coração acelerado pela causa maior da razão dos sentires, ainda sinto tudo, ainda me dói e ainda rio. Muito.
Até daqui a nada, até para o Ano.

segunda-feira, 29 de dezembro de 2008

Crónicas do Tejo (XVIII)

Faço-te Rio de memória. De olhos abertos, de olhos cerrados, tanto faz desde que te pense e siga as linhas em SS alongados.

Escrevo-te de lembrar, hoje não te passei, fiquei a mastigar a chuva que me trouxe mais perto de ti o cheiro, os barcos, o ruido chocalhado da neblina que aparta duas margens, o sono em pé pelas noites da manhã e as horas (tantas, são tantas) de lobos vadios que me arrastam nas presas e me largam mulher.

Por vezes faço-te ilha, eu à tua volta, prendo-te entre braços para te sentir molhar-me de emoções que não se falam. Eu não conto, faço de conta que sei do que falo, mas tu sabes bem que entre nós ajuramentámos coisas que mais ninguém entende. Só batem cá dentro, no peito, fluido do coração.

Enquanto tocar este som vivo-te. Existo.




(in Crónicas do Tejo, C.G. 29/12/2008, última)

domingo, 28 de dezembro de 2008

Uma casa na árvore

Obrigado a todos os que vieram.
Regresso, sem saca de presentes, mas com um convite para quem aqui passa, para quem gosta, para quem escreve, desenha ou tão somente para quem aprecia ler pelo prazer que as (muitas) horas de virtual podem proporcionar.
Sem podium, todos vitória.
Convido-vos para esta casa.

Um beijo,
C.G.

domingo, 21 de dezembro de 2008

Feliz Natal

A todos os Amigos da Árvore das Palavras, desejo-vos um Natal que vos fique para recordar.



Um beijo,
C.G.

quinta-feira, 11 de dezembro de 2008

Avec le temps (1)



Pausa




(1) - Léo Ferré

quarta-feira, 10 de dezembro de 2008

(Voltar a) Nascer

- Até quinta!


Responderam-lhe bom feriado embora não exista nenhum feriado mas como estão mecanizados para responder assim, fazem-no, e nesta fracção de segundos ela pensa o que lhes podería responder a propósito desse dia, que no final das contas, é mesmo feriado, mas só para ela, que determinou que o sería como dia dela, tantos dias de tudo porque não o dela?


Quando regressar vão perguntar porque não foi, se alguma pendureza lhe interpôs o caminho e ela há-de responder que foi a uma festa, ela e mais uns quantos de si que eles não conhecem, verdadeiros estranhos a quem se reserva íntima, e também o rio e uma pouca de chuva sería fantástico, para completar mais algumas letras que lhe saíssem primor e o presente sería perfeito.


Não irão entender mas ela vai sorrir, só por dentro, não será mais um, será um outro, diferente de todos os outros que já festejou, acompanhada da multidão que carrega às costas, no peito, no olhar, tantos a soprarem as mesmas velas de um bolo só.






À Marisa do Reno, Poeta AL AIN, Just Me, AC, Maria Mecânica, Impulsos, Carlito Matador, Menino Alex, São, Helder, Angelina, Tia Batata, um beijo, muito obrigado.

terça-feira, 9 de dezembro de 2008

Fados

O mais ingrato naquele amor é que ele só foi bom e entregue na despedida.

segunda-feira, 8 de dezembro de 2008

Autópsia de uma dor (só minha)

Só algum tempo depois é que começa a doer, no momento é o estalo, a surpresa da pancada, fica-se atordoado sem se entender o que aconteceu, uma luz que cega e desorienta, depois é que é a sério, já sentado a ver as mazelas, abre-se o peito e falta um pedaço cá dentro, perdeu-se roubado e maltratado, foi arrancado pelas costas aproveitando a distracção de palavras fingidas na confissão dada pela ingénua entrega.
Abre-se mal o peito, sobraram poucos dedos nas mãos aquecidas, derreteram-se nos ácidos dos apertos e a mutilação tem destes delirios, anda dói mesmo que ausente...
Dói. Silenciosamente.
Não há mais boca para dar som ao ruído da dor. Gastou-se nos beijos, no amor, nas lágrimas mastigadas à mistura com palavras dificeis de dizer, dificeis de engolir, dificeis de despedir.
Só algum tempo depois é que se levanta da cadeira, juízos derradeiros sobre a dor última.
Mas ainda lhe hão-de levar mais uns quantos pedaços, os que restaram e os que se lhe voltaram a costurar enxertados.
A cadeira à espera.

sexta-feira, 5 de dezembro de 2008

Distinção Dezembro 2008



Há blogs que pela sua qualidade me merecem destaque.


Seja pelas palavras ou pela imagem, pela constância do nível e empenho do seu autor, pela inovação dos temas, pela simplicidade com que me fazem viajar. Pelo tanto que me dão.
Assim, resolvi publicamente nomeá-los, sendo certo que a regra única é o meu gosto pessoal pelo blog.


Não é um prémio nem um meme.


Não é uma corrente e logo não é transmissível a mais ninguém pelo que só a Árvore das Palavras tem o direito sobre o registo de os indicar e o indicado não o pode oferecer.
Todos os meses, aos primeiros dias, revelarei a minha escolha. Publicarei aqui o selo Distinção Árvore das Palavras com a identificação do meu seleccionado de cada mês e gostaría que o blog distinguido também o exibisse. Mas isso já fica por decisão do visado.



A uma Jardineira ímpar: ASPÁSIA



No JARDIM de ASPÁSIA podem colher-se flores e pisar-se os canteiros.



Podemos encantar-nos com poesia. Com ciência. Com velhas coisas que se tornam novas à luz do dia. Com viagens por vários Países. Com humor e boa disposição e muito principalmente com o factor surpresa.



Em Dezembro o Jardim de Aspásia. Primavera garantida.

quinta-feira, 4 de dezembro de 2008

A importância da maquilhagem

Ele encostado à ombreira da porta da casa de banho, toalha turca enrolada à cintura, braços traçados sobre o peito observava-a pela imagem que o espelho largo de parede a parede lhe devolvia.
Ela em movimentos precisos e rápidos tirou da bolsa um frasquinho de perfume e borrifou junto aos ombros e no meio do peito, depois nos pulsos e por fim por cima da cabeleira farta e encaracolada em tom de cobre.
Olhava para si mesma, arqueando o sobrolho, esticando a pele dos lábios, afunilando a boca, como se estivesse sozinha e ignorando a presença dele.
- E agora?
- Agora, o quê?- despachou ela.
- Agora, o que vai acontecer…
- Vai acontecer que me vou vestir e vou embora, que estou atrasadíssima - rematou, dobrando-se pela cintura para vestir o minúsculo fio de dental.
E virou-se de novo para o espelho, ajeitando a peça junto às ancas. Depois sentou-se e com um esmero apurado enfiou o pé esticado na meia de vidro com costura atrás, cuidando para que aquela linha fosse erecta e sem desvios até à coxa, onde a meia terminava numa renda trabalhada. Vestiu a outra perna de negro e com desvelos alisou ambas as pernas desde os tornozelos até ao terminus. Calçou os sapatos pretos de salto alto e voltou a verificar os traços das meias agora como carris de comboio.
Ele encheu o peito de ar e tossicou levemente lembrando-lhe a sua presença:
- Temos de falar, conversar sobre isto! Quando nos voltamos a encontrar?
- Não há nada para falar e tu sabes disso! Aliás eu avisei-te desde o principio, não é assim? E agora não há tempo para conversa, tenho de acabar de me arranjar.
-Eu não acredito no que estou a ouvir! Então o que se passou ainda nem há meia hora não quer dizer nada?! Mas o que é isso??? Eu não sou papel de embrulho, que pensas?!
- AIIIIIIIIII!!!-guinchou ela.
Bateu com o tacão alto no chão denotando contrariedade, uma impaciência agastada pela insistência dele. Mirou-se no espelho com aquele ar receoso de ter a figura ou o semblante alterado pelo transtorno que ele lhe estava a causar mas como verificou que apenas tinha ficado corada, voltou à tarefa de colocar o soutien rendado. Apertou-o atrás ágil nas mãos sem a vista a conduzir. Ajeitou o formato dos seios à copa de renda e depois afagou aquela fenda entre eles com o dedo indicador, voltando a ampará-los com as mãos como se pegasse numa taça.
- Tu és linda…- murmurou ele, com os olhos brilhantes.
Ela agradeceu sem som, sem verbo; um sorriso aberto dela demonstrou-lhe o agrado, mas rápido, que logo voltou à toilette: vestiu a saia travada negra e voltou a verificar o alinhamento da costura das meias.
-Pára com isso, estás a deixar-me maluco…
-Paro com o quê?- respondeu num tom nahif e no olhar um picante poderoso que o incendiou.
-Isso, que estás a fazer…dá-me vontade de pegar em ti e voltar a atirar-te para aquela cama
-Dormir, agora? Ora, ora…bom, nem penses nisso que estás aí a magicar! Os homens só pensam nisso, caramba?!
-Não sei se só pensam nisso: eu penso que te quero agora! Há algum mal nisso?
Ela não lhe respondeu, limitou-se a encolher os ombros e a vasculhar na mala. Do seu interior retirou um rimmel, uma pequena caixinha de pó, um pincel farfalhudo e um batom.
Abriu os olhos para o espelho e passou a escova do rimmel várias vezes pelas pestanas, soprando de quando em vez para a melena cobreada que teimava cobrir-lhe a testa; passou o pincel pela face em suaves pinceladas e por ultimo espanou-o pelo colo e pelos dois montes que os seios faziam.
Foi neste gesto que ele impulsivo a tomou pela cintura marcada pelo cós da saia negra e rodeando-a, viu através do espelho uma mulher renovada na fantasia de se observarem os dois. Ela sacudiu-o mas não decidida na intenção de o afastar, pois sentiu no ventre um halo quente por aquela mão espalmada como agarrando aquilo que é seu.
-Por favor, não me despenteies…cuidado, ou vais amachucar-me a saia…- e flectiu ligeiramente as pernas como se súbito sentisse uma aflição na barriga.
Ele nem a ouviu. Sempre a olhar para o espelho, recolhia dela e de si uma imagem fantástica, percorrendo o pescoço e o ombro com a boca entreaberta numa acção de sucção que deixava marcas arredondadas por onde passava.
-Vais deixar-me marcada, patife…-mas não fez nada para o interromper e pôs o pescoço alto a jeito para que ele continuasse, inclinando-se levemente.
Pegou no batom e retirou a tampinha, rodando para fazer sair aquele tubo brilhante cor de cereja. Colocou-o sobre o lábio superior e delineou o formato; a ponta da língua apareceu naquela espécie de bocejo; depois desenhou a polpa do lábio inferior por várias vezes. Apertou os lábios um contra o outro e quando se preparava para passar uma segunda camada ele retirou-lhe o batom da mão. Fez subir um pouco mais aquela cor cereja e quase no seu limite passou-o com cuidado e esmero pela boca dela. A forma que as curvas dos lábios reflectiam no espelho adivinhavam uma elipse, que ela gostou. Pestanejou e suspirou. Ele voltou a repetir o gesto e depois com a mão livre fez saltar o peito dela para fora do soutien, que agora amparado por baixo por aquela faixa amachucada de renda, se empinou. Empunhando o batom levou-o até à ponta dos seios e com uma precisão de relojoeiro desenhou dois círculos perfeitos a cor de cereja. Ela agarrou-se com ambas mãos à bancada de mármore e deitou a cabeça para trás para o ombro dele.
-Será que sabes a cereja?-segredou-lhe ao ouvido.
-Experimenta-me e terás a resposta-disse-lhe ela muito baixo.
Mas a primeira coisa que ele fez foi abrir o fecho da saia preta, baixá-la, meter as mãos à bruta na cabeleira farta acobreada para logo depois lhe dar um puxão violento no fio dental que estalou e se perdeu na casa de banho.
- Ai, meu deus…- sussurrou ela - Vou chegar atrasada…- mas não prosseguiu pois ficou estarrecida a ver-se ao espelho, a boca dele colada aos picos daqueles dois montes enfeitados a cereja, e quanto mais a molhava com os lábios mais o peito se endurecia e subia.
Ela arrancou a toalha que o embrulhava de uma só vez e seráfica ameaçou-o: -Já vais ver o que te faço… Não houve tempo: ele agarrou-lhe uma perna elevando-a como um desenho de um esquadro; pernas maquilhadas de meia negra com uma costura erecta por onde ele se guiou como uma bússola até descobri-la por dentro.
E as imagens que de si se ofereciam, devolvidas pelo espelho mágico transportavam-nos numa libido voluptuosa que cama alguma lhes tinha dado até então.
Ficaram depois, a ver-se no espelho, corados e brilhantes pelo esforço e pelo prazer.
Ela olhou para o relógio pousado em cima da bancada e rindo-se exclamou:-Que se lixe! Agora já nem atrasada estou!





(in Contos da Fogueira, C.G.-06/10/2005)

terça-feira, 2 de dezembro de 2008

Fabular(es) - 6º Ensaio

Dava-me jeito agarrar na preguiça e pô-la a escrever. Eu, preguiça agora, a vê-la desemerdar-se no texto, dar a volta à coisa, montar o esqueleto, corrigir a falha calejada de sílabas e até de palavras, esconder-me nas falas. Heteronímia? Não, preguiça mesmo, generalizada, sem nada de outros por aqui, a preguiça a ter o trabalho na ponta dos dedos, a ditar-se e a desembaraçar-se com a pontuação. Ah! Um ditado. Não, a preguiça o autor mesmo, engenho suficiente para mandar nas letras, escolhê-las. Hum... Pois. Algum neologismo a prender o texto? Não, usar as existentes e formular sentidos para o que sempre se soube e não se sabía dizer como. Reiventar, reinventar! Nada disso! Os sentidos não se reinventam. Não? Não. Atacam-se pela raíz do verbo e cuidam-se, fidelíssima a intenção de os dizer na forma mais bruta. Simplificar? Não, descomplicar. Não é a mesma coisa? De todo, é deixar a preguiça de lado e falar com as letras.

segunda-feira, 1 de dezembro de 2008

Dezembro

Mês doze.

No topo. Ou no fim, na queda, na correría desenfreada após a íngreme ascensão de me achar curvada, mãos nos joelhos e olhar perdido em tropeços.

O tempo de sentar, ajeitar o ar último ao peito não dá tréguas, servem-se as memórias do corrente em fatias mais ou menos generosas no próximo que se há-de escalar. Lembrar-me-ei de outros degraus e descuidada de outras vezes, achar-me-ei num salto de gazela que acaba na armadilha enredada dos sentimentos, debato-me sabendo de antemão que a corda asfixia o nó mas solta cores novas, brilhantes e a progressão da luta é receber o golpe dignamente.

Achei que o mês doze sería a glória, é tão só uma folha a mais.

A última que resistiu.

Subo a árvore, arranco-a e guardo-a no meu caderno.


(in Calendários, Dez/2008-C.G.)

sábado, 29 de novembro de 2008

Lembrar Novembros

Agora tenho frio. Muito. Sopro na concha das mãos, amornando um nevoeiro branco, denso, que envolve a cidade e disfarça as árvores galhudas em edificios fantasmas, os faróis dos carros em enfeites de pré-natal.

Agora farejo um fumo cinza, mascarrado de castanha assada, o pregão do amolador mais o do vendedor piam escondidos nas abertas de água gelada que impiedosamente tomba sobre quem corre à procura de refúgio.

Agora, em peúgas de grossa lã consolo nas vidraças riscadas a chuva do lado de lá, as papas de aveia misturadas na casca do limão, que este amarelo lembra o sol, a canela traz-me o sonho de outras latitudes e o dedo que guia estas estradas escorregadias desenhadas no negrume do céu, imita vagas e adamastores.

Agora embrulho tudo na minha memória e sou pequenina outra vez.

Para onde foram o frio, a chuva, o aconchego de casa, o colo da mãe?Basta apenas fechar os olhos e tão perto como nunca sinto a aspereza da fazenda molhada, o morno do banho quente, os vapores de eucalipto, as mezinhas de bem-fazer...e quanto mais o tempo avança e eu me distancio de farrapos de lembrar, mais perto fica a saudade e mais sonho com a minha infância.


(C.G., Novembro 2005)

sexta-feira, 28 de novembro de 2008

Ir&Voltar

A última vez que o vira estava o tempo atirado em soprar forte e molhar sem escape todo e qualquer um. Depois desses dias de temporal, cinzentos e mal humorados que mais parecíam ter acontecido há um ano nada mais soubera dele. Assim como lhe surgira ao caminho impetuoso e folião, também da mesma forma surpreendente havía aos poucos, desmanchado aquele fio entrançado que cativa as pessoas. Apercebeu-se que ele quería a liberdade de não ter que aparecer, de não dizer Olá ao telefone, Sou eu diz lá então, de não ter que sorrir, estar perto, estar a apoiar. E um dia foi o ultimo dia que apareceu e a chuva e o vento surgiram fortes para o substituír, como uma presença gelada.

Aos poucos o coração acalmou, o pensamento desviou-se para as coisas praticas da vida, a memoria diluiu a saudade.

Foi quando já não se lembrava dele que a vida se lembrou dela e encaminhou os rumos de volta um ao outro.

Desordenadamente o coração disparou imagens de um passado recente, a dor adormecida rugiu na culpa apontada sem palavras. Ele quis recuperar o que não disse. Ela disse que este era outro tempo, ela própria outra pessoa.

E ambos naufragos do dizer, deixaram levar-se ao saber da maré, sem forçar as ondas para não perder a força toda da vida e conseguirem nadar até uma paz interior que fizesse sarar as feridas do ir e voltar, sem nada temer.



(C.G. Novembro 2006)

quinta-feira, 27 de novembro de 2008

Amar, Amares

Perdi a fé da certeza. O dominio tornou-se absorto quando tudo se quer em dois, quando se acha que amor maior foi o que não se teve para sempre e o presente sendo encantado tem a falha da realidade.
Agora que me é dado voltar aos braços da paixão um som agudo baralha-me os sentires e tanto quero correr como parar para ouvir de olhos fechados pautas que me alucinam. Afinal foram elas que me mantiveram viva neste balão de oxigénio e rude, ingrato e de má memória sería se estouvada virasse costas de vez e apagasse o que escrevi.
Mas o amor, o amor, a dor do amor, aquela coisa rasgada no peito que ajudamos a esgaçar ainda mais e pedimos leva tudo, leva-me tudo...
A verdade, eu disse.
A verdade é que perdi a fé da certeza quanto ao meu amor. Quero amar dois, posso amar dois? Quero letras feitas a golpe de mãos pelos ares, a minha caligrafia no cénico, quero passos no papel branco, quero jetés e attitudes que se encadernam de folhas pisadas nas fluviais madrugas em que o sol nasce quando parto e se põe quando arribo, quero a hora do lobo em que me ponho de mulher e quero a chuva a despentear-me os gritos com que empurro o silêncio das palavras ditadas pelos outros de mim.
Quero tudo. Quero dançar mas também quero escrever.

quarta-feira, 26 de novembro de 2008

...Contar

E eram as vozes, as vezes, as vitórias o que mais afligia o seu olhar arqueado quando o encontrava mal escondido por esses cantos de esquadria duvidosa em que o tecto eram palavras ao rubro ou queixumes de mau actor, tão repetidos que perdíam a memória do belo e a raiva subía-lhe e derretía-lhe sobrancelhas e vincos na testa atirando-lhe as mãos para o chão e uma cauda pontiaguda em abano lento que do inimigo se montava belzebu, acabava-se a morder as garras, as patas, a lamber a dor pelo pêlo ralo que tasquinhava para que de novo visse sob os dedos e as unhas e todas as articulações flexíveis da sua lembrança atiravam-na de cara e boca e nariz ao papel velhaco que se esfregava. Ficava doente. Embrulhava-se no seu corpo, puxava a pele ao esqueleto e febril acreditava ainda uma outra vez que as palavras não podíam ser tão mentirosas.

Como sempre, nessa noite e nessa madrugada a respiração será o que ouve, a escrita o que lhe cai como cabelo que se perde. Outros hão-de nascer.

Até usará daqui a uns anos todas as vozes, todas as vezes e todas as vitórias em que a mentira foi bela ao estar escondida no verbo mal aproveitado pelos recantos que de tantos encostos e tantos roçares se profanaram no corriqueiro para fazer sorrir-se ao desenhar com tempo, finalmente, letras a dizer, a verdade, a verdade mesmo sobre mim vou eu agora contar...

terça-feira, 25 de novembro de 2008

Multiplicidades

Assim me encontro, dividida, porém não mutilada, do corpo partilha-se o ir, voltear, estaca em muitos assentos, um gancho invisivel que me compõe o tronco erecto, dos pés circulos, elipses, sobeja-me a vontade de linhas a direito, fios de tinta que me choram estórias de outros. Eu sou o outro de mim e o tempo é-o de passados que se fazem hoje, sons de verbo que ecoam no chamamento do passo que retorna a casa, à paixão primeira de escrever dançar.

terça-feira, 18 de novembro de 2008

Dardos




Com o Prémio Dardos reconhecem-se os valores que cada blogger emprega ao transmitir valores culturais, éticos, literários, pessoais, que em suma, demonstram a sua criatividade através do pensamento vivo que está e permanece intacto entre as suas letras, entre as suas palavras.


Esses selos foram criados com a intenção de promover a confraternização entre os bloggers, uma forma de demonstrar carinho e reconhecimento por um trabalho que acrescente valor à Web.


Quem recebe o Prémio Dardos e o aceita deve seguir algumas regras:


1. - Exibir a distinta imagem;

2. - Linkar o blog pelo qual recebeu o prémio;

3. - Escolher quinze (15) outros blogs a quem entregar o Prémio Dardos.


O OLHO de LINCE e o VICTOR da OFICINA das IDÉIAS ofereceram estes dardos à Árvore.


É com carinho que os aceito.


Tal como já o disse, quem é dardejado sabe-o, não os apontarei aqui.


Obrigado pela generosidade da Oficina, obrigado pela vossa amizade tão bonita, Oficina.


Um beijo

(Afinal)Também consigo ver a árvore ao longe

Dias de areia. Seca, muito. A precisar de me afastar e ver a paisagem no seu todo e numa só mirada sem me prender a detalhes ou a algum pormenor que me leve o resto da luz boa para poder admirar o resto.


Dias de escorrer minutos a baterem-me nas pestanas, a faca a entrar amadora golpeando ao azar a sorte de apanhar carne em vez da dureza do osso. Vai doer, pois vai, deixa doer, por vezes tem de doer para se estar certo que se precisa e que o trajecto que o sol faz até aos olhos é para beliscar a dormência do hábito, arder para acordar, pôr-se para despertar no outro lado da lua.


Dias de leitos sem água. Muita sede, a que sabe a água? A água não sabe a nada, sabe sim, senão eu não a desejava.


Dias de saudade, dias de caderno, dias de falar e não escrever, dias de contar e não esperar, dias pelo dia sem acrescento de horas nem invenções violentas para imaginar que a noite também é dia quando quero.


Não é. E ainda bem.

quinta-feira, 13 de novembro de 2008

Não (Quero escrever mais)

A grande questão é: Merece?

Aquele que se deita sobre o branco e perde a noite na fenda aberta dos pulsos escapando-se-lhe tudo, o que de si é, o que de outros se torna mata-borrão, os desejos, os projectos, o amanhã faço, o ainda um dia hei-de ser, o que escarafuncha e se mói, dilacera em fanicos de vidro espetados nos pés de lá para cá à procura, sempre à procura e a experimentar o que dói e o que ri e que espera infinito a próxima vez, há sempre a próxima no adiar do que nunca chega, este tumorzinho que infecta por dentro e cresce em tantas cabeças quantas o esquizo enfrenta todos os dias nos punhos batidos do próprio rosto a imagem de um seu único e intransponível, teluricamente entre o amor manjado de boca aberta e o remoinho perfurante de ódios que aninha para saber dos dois lados do muro que ele é o muro, o de si mesmo, o golpe certo do fio luzidio que o racha e se escombra em esboroados atirados à água.


Canso-me.


A grande questão.


Qual a imagem mais bonita? A que se deita narcísica ou a que em circulos ecoa na superficie das águas que escondem o fundo?


Canso-me por vezes...


Pereço ao verbo, não mereço esta mágoa.

segunda-feira, 10 de novembro de 2008

Ausente

Sentou-se.
Depois abraçou-se a si mesma, entortou os joelhos, os pés, dobrou-se e verteu-se, tombada a cabeça sentiu os pensamentos ensanguentarem-se, o dedilhar nas costas como asas de pássaro que se atiram aos traços verticais de aço, os olhos a dizer que para lá da prisão do corpo há uma pele mais elástica semelhante a um balão perdido num dia de vento.
Apertou-se mais e mais, já era outra que se abraçava.
E deixou escorregar lenta e derretidamente do regaço fechado a tristeza que não chorou.

domingo, 9 de novembro de 2008

Jardinar




Da Jardineira ASPÁSIA para esta Árvore.




Muito obrigado, um beijo de quatro Estações para ti.

sábado, 8 de novembro de 2008

Fundo

Agora e aqui é verdade. Daqui a nada pode já não ser. Por isso, mais uma vez não diz.
É que há momentos em que uma simples palavra tem tanto peso que pode sentir-se a pedra atada aos pés do afogado e mergulhar-se, fundo, fundo nos olhos do outro.
Por isso hoje e mais uma vez sentiu-o mas não lho diz. Aguenta-se. Como quando ele a cavalga e se sente suar perto do fim. Aguenta-se. Depois que se atirem os dois, mas só depois.
Hoje esteve perto de se atirar e de lhe dizer. E ía dizer. Mas ele disse-lhe que ela devía escrever sobre eles e ela sentiu que aí tinha mesmo de dizer a verdade.
Por isso não escreverá nada nem lhe dirá. Se calhar nunca.
Por isso quando ele lhe disser amo ela dirá gosto. Mesmo que a pedra leve escrito amo-te.

sexta-feira, 7 de novembro de 2008

Ao passar ouço...

Eu não disse? Eu não disse???

Deixou-a sózinha, diz que se apaixonou...

Não é por ser meu filho, mas é sobredotado!

Percebe? Tá a perceber?

Eu perdía-me por aquela mulher!

Aquela gaja?! Jura!

Vinha tudo escritinho na revista...

Não tenho trocos!

Disse-lhe tudo, tudo! Não ficou nada por dizer!

Vai mas é trabalhar oh!

Para mim chega! Nunca mais!

Mas tu... ainda agora saíste duma...

Que posso fazer?! Tenho de aguentar... não é por mim!

Não sei o que lhe oferecer, dá-me aí uma idéia!

Ficam doidas! É o que te digo!

Pensa que está a lidar com aquelas putas...

Destak? Destak? Destak?

Prá bicha! Respeite a bicha! A fila! Há gente na fila!

Não sei se o decote... é a primeira vez que saio com ele...

Amo-te...

Nem o posso ver!


Afasto-me. O Tejo fala comigo. Nitido. Eu também, Rio, eu também...

quinta-feira, 6 de novembro de 2008

Distinção Novembro 2008




Há blogs que pela sua qualidade me merecem destaque.Seja pelas palavras ou pela imagem, pela constância do nível e empenho do seu autor, pela inovação dos temas, pela simplicidade com que me fazem viajar. Pelo tanto que me dão.


Assim, resolvi publicamente nomeá-los, sendo certo que a regra única é o meu gosto pessoal pelo blog.Não é um prémio nem um meme.Não é uma corrente e logo não é transmissível a mais ninguém pelo que só a Árvore das Palavras tem o direito sobre o registo de os indicar e o indicado não o pode oferecer.


Todos os meses, aos primeiros dias, revelarei a minha escolha. Publicarei aqui o selo Distinção Árvore das Palavras com a identificação do meu seleccionado de cada mês e gostaría que o blog distinguido também o exibisse. Mas isso já fica por decisão do visado.


Novembro é azul. É aArtmus, é Mateso Azul.


Se se quiser viajar a qualquer ponto deste globo e conhecer gentes de outras culturas, sentar a uma mesa e servir do caldo, chorar a solidão de um emigrante nas grandes urbes, partilhar de coqueterie ou nostalgicamente colher os frutos do Outono procure-se aqui. Um território de qualidade, som de qualidade, imagens de qualidade.


Porque este azul é diferente.

segunda-feira, 3 de novembro de 2008

Um bocadinho, p.f.

Chegou o fósforo ao pavio. Um halo amareleceu ao redor, carantonha grotesca dum rosto mal alumiado e nariz torcido no odor acre da cabeça incendiada.
Suspirou profundamente. A chama deitou-se, mas resistente voltou a endireitar-se e ainda se afiou mais.
Traçou os braços sobre a mesa, o queixo apoiado forçando os lábios dilatados. Ficou a olhar a vela consumir-se, lenta, gotejante, grumos escorrendo até ao pé fortalecendo a base. Coçou a barba, um ruído de serrilha sobre papel lembrou-lhe das queixas dela, a abrasão sobre as bochechas, o arranhar no ventre, a vermelhidão esfolada entre coxas.
Fechou os olhos.
Mas mesmo assim sentía a luz que embora tão frágil lhe acendía a boca dela, amas-me, e ele não dizía nada, dava-lhe a mão, beijava-lhe a palma da mão e fechava-a guardada na sua. E guardava-lhe os sabores, todos, os do pescoço, os do cabelo molhado, os das covas dos braços pela Primavera, amas-me, e ele não dizía nada, encaixava o queixo dela nos seus olhos e fazía força. Ficou-lhe também o gosto, o da pele, o das palavras jorradas como leite fresco, o das mãos nas suas costas a arrepanharem tudo para dentro dela e a selar, amas-me, e ele não dizia nada, pegava-lhe ao colo e soprava de mansinho no nariz dela.
Abriu os olhos.
A vela, torta, carcomida pelo fogo de um lado alargara-se na base. Calcou com o dedo, notou-lhe a marca das suas impressões digitais.
Amas-me, um bocadinho só, assim, pequenino que caiba no meu coração? um bocadinho? Sim? Por favor?
Molhou os dedos na saliva e apertou o pavio.

domingo, 2 de novembro de 2008

Novembro

Mês onze.


Já gastei de tantas palavras que me forraram por dentro e mal tenho para tapar o que me vai na pele, um tropeção até aqui, ainda há pouco paramentavam os dias grandes decisões, beijos, abraço a ti, ainda há tempo, amanhã então, amanhã amores, mas cansou-se a queda montanha abaixo e quase no sopé procuro letras que me escavem degraus para outra subida.


Novembro-me.
No frio de fora e nas mãos por dentro.
Nas castanhas que assam lembranças e nos olhos que cortam outras metas.
Nos jogos de cores dourada e vermelha e nas pardas tardes de nostálgicos suspiros.


Cheguei a este contador de tempo, mais uma folha, a décima primeira é tão só menos uma, sempre menos de mim quanto o tanto que já usei.


(in Calendário 2008, C.G. -Novembro/2008)

sábado, 1 de novembro de 2008

quarta-feira, 29 de outubro de 2008

Fabular(es) - 5º Ensaio

Não o farei. Não.

Não me dobro, não esfrio os pés nus no sobrado nem aqueço a mão na tinta que desliza rios, não desaguo, não me vazo, extravazo, desembrulho noites em dias, a pele arrepiada das palavras que escorregam pelo pescoço, pelo peito, alagam-se regaços como pratos de sopa que rompem o jejum desta fé sem nome.

Deixo para os outros. Que o façam.

Limito a minha essência ao assistir sentada na platéia. Aplaudo e bocejo.

A vós de me justificar o bilhete de vinda. O esforço de vos ver curvados na secretária gasta nos bordos pelo apoio de braços que se deitam na cama de papéis, o coçar da cabeça, o café fumado no tóxico que envenena sons de gatos vadios em lamentos de amor.

Então?

Custa aguentar-me?

Saber-me pendurada sobre o vosso ombro, o dedo correndo a vermelho, dislexias e erros de ortografia, que afinal eu não vos disse? as letras são tão poucas, tão escassas para vos fazer entender que sem mim não são, que sem vós serei apenas eu.

segunda-feira, 27 de outubro de 2008

Gosto

Gosto de vir aqui. Gosto destas paredes, do espelho, do relógio, do chantilly com sabor a chantilly. Gosto de ver este vai-vém sem ninguém me prestar atenção e ao caderno encarquilhado pelas notas e rabiscos de caras que tento marcar nas folhas porque já me marcaram de alguma forma. Gosto desta dimensão sem regra e sem idade, das conversas que escuto à entrada e as da mesa vizinha, das de engate, as das tias e ainda as das verdadeiras tias de alguém que nunca foram mulheres despidas ou comidas com amor e se vingam no éclair disposto a ser mordido, dos rapazes que gostam de rapazes e me sorriem por olhar para as palavras como convidados à minha mesa. Gosto dos perfumes de igreja branqueados no pó de arroz que arrastam memórias de outros tempos indicados a dedo na curvatura do que já muito se viu. Gosto do gesto galanteador do empregado quando chego sózinha ou do cavalheiro distinto que me observa quando traço a perna. Gosto. Gosto de partir à hora do lobo, fechar o caderno e achar que tive poder bastante para encerrar o dia.


(in Eu na Versailles, escritos improváveis, C.G.- Dezembro/2005)

domingo, 26 de outubro de 2008

Os meus segredos (dezanove)

Enquanto me quiseres eu estou, enquanto nos quisermos eu estou, farei dos meus tempos a espera, que importa se sempre sei que chegas, amanhã, daqui a uma semana, espero-te.

Enquanto não vens, dissolvo nas manhas das lembranças gostos parecidos com o que espero aconteça ou com aquilo que me dás, tão pouco, tão pouco para o que eu quero, tenho de fazer do pouco o bastante, que me encha os dias à tua espera e o pouco que me chegas apenas dilata mais e mais a minha sede de saber-te...

Entranço o cabelo num sem fim de mãos que em três partes se unem, tu, eu e o espaço que nos aparta, bebo saudades de não faz mal e deixo que as feridas sarem por cada intenção de te chamar, pedir, dizer-te, declarar-me presa como o cabelo que deixo crescer à medida da tua ausência.

Mas não digo nada. Faço-me forte.



(in Os meus segredos, C.G.-Julho/2008)

quarta-feira, 22 de outubro de 2008

Bombas

Quando nos depositam uma bomba na mão o primeiro impulso é atirá-la para trás das costas e desatar a correr. Mas na verdade, se o fizermos, a sua detonação pode atingir outros e magoá-los. Retê-la junto a nós não evitará que nos exploda na cara e o final é previsivel...
Então, que fazer?
Não dá para guardar, esconder, enterrá-la. No fundo, se a mantivermos o único sacrificado seremos nós mesmos mas mais nenhuma vida se desperdiçará e o acto suicida, será talvez o mal menor.
Assim é a verdade e a mentira. O que é nosso e o que se rouba. O que se traz agarrado às mãos e se tenta modificar no intuito de se disfarçar o original.
O que se esperaría é que aquele que mente e rouba fosse o mesmo que arranca a espoleta e se exorcizasse no instante da fragmentação, espiando desta forma os crimes tentados... mas isto só nas histórias que se escrevem.

segunda-feira, 20 de outubro de 2008

Solitude

Entrou na calmaria e cerrou as portas ao dia. Tirou o telemóvel da carteira de mão, verificou as mensagens e desligou-o. Pendurou o casaco cinzento-chumbo do tailleur no cabide e ajeitou-lhe as bandas, retirando meticulosamente um fio de cabelo perdido. Depois dirigiu-se ao frigorifico e tirou a alface francesa, o pepino, o tomate-maçã, a cenoura, o ovo ainda por cozer. Ligou o esquentador. Regou as violetas roxas e as fucshia. Dirigiu-se à sala e ligou o som, procurou o CD de Nina Simone. Ficou a olhar os digitos a contarem-se até os olhos arderem. Serviu-se de um bourbon, molhou os lábios, sentiu a lingua dormente, bateu o ritmo com a biqueira do sapato de griffe. My babe just cares for me, e abanou a cabeça, a anca, as ancas alternadamente, um gole a encher-lhe a boca, experimentou a sensação de girar pela sala larga, deslizar à medida da saia travada, a melena solta por detrás da orelha ornamentada de uma pequena pérola, Cos my baby loves nobody but me, tirou os sapatos, dançou aproveitando os espaços todos, veloz, ágil, balançeada entre o copo de bourbon na mão e os estalos dos dedos polegar e médio, fecha leve os olhos, mais um gole, desenha passinhos até à cozinha, hum, nada de saladas nem dietas, nem banhos nem cremes, mais um bourbon e Nina, elas duas sabem, agita a cabeça, imita o playback no ovo cru, roda sobre si, como é bom rodar, observa-se nas boquinhas no espelho do corredor, desmancha o penteado, My babe just cares, my babe just cares for me!

Olha-se. O rosto orvalhado e tingido, a respiração alterada, a blusa fora da saia.

Não, não vai chorar. Não vai chorar.

Vai tomar banho, comer a salada e dormir.

sábado, 18 de outubro de 2008

Um dia o Pai e a Mãe acharam-se



Ele tenor, guarda-redes de futebol, de andebol, boxeur, ornitólogo, pescador, charadista, gastrónomo.

Ela (médica: Nem pensar!), (enfermeira?: De maneira nenhuma!)professora, doméstica.



Ele riso.

Ela pessimista.

Ele a Lua.

Ela a Terra.

Ele a emoção.

Ela a cabeça.

Encontraram-se a meio do Tejo.


Ela fora a única que o houvera rejeitado.

Por isso casaram.

A mais um!



(Foto Estúdios Paixão, Casamento de Maria de Lourdes com António, pais da Gasolina. Para aumentar, click na imagem)

quarta-feira, 15 de outubro de 2008

Dardos



Com o Prémio Dardos reconhecem-se os valores que cada blogger emprega ao transmitir valores culturais, éticos, literários, pessoais, que em suma, demonstram a sua criatividade através do pensamento vivo que está e permanece intacto entre as suas letras, entre as suas palavras. Esses selos foram criados com a intenção de promover a confraternização entre os bloggers, uma forma de demonstrar carinho e reconhecimento por um trabalho que acrescente valor à Web.


Quem recebe o Prémio Dardos e o aceita deve seguir algumas regras:


1. - Exibir a distinta imagem;


2. - Linkar o blog pelo qual recebeu o prémio;


3. - Escolher quinze (15) outros blogs a quem entregar o Prémio Dardos.





A Árvore foi dardejada pela MATESO do Blog ARTMUS. Tudo azul, tudo sereno. Todo palavras.



E depois de pensar um bom bocado a quem atirar estes dardos, achei que aqueles que continuadamente chegam aqui e têm a generosa e amável vontade de gastar do seu tempo, ler-me, dizerem-me o que pensam, são o alvo da essência deste prémio.


Por isso Mateso, não te aborreças comigo. Tu estás neste grupo. São 15? 5? UM? (Who cares?)Fico feliz quando vejo que os que passam fazem-no de bem e nos podemos sentar à sombra da árvore em amena cavaqueira.


Vocês sabem quem são os meus dardejados, não preciso nomeá-los.



Um beijo e um abraço apertado, OBRIGADO.

terça-feira, 14 de outubro de 2008

Crónicas do Tejo (XVII)

Desapareço pelas entranhas do barco ferrugento. Não me tritura, engole-me de uma vezada e recolhe a lingua, ruminando pacificamente no amansar das águas feitas mãos-concha a ilusão que vem da minha cabeça vadia e desassossegada incapaz de se sentar entre os meus ombros.


Deixo-a, permaneço imóvel no corpo abastecendo-me o despensário de linhas tomadas à pressa no caderno apoiado sobre o joelho, já ali o outro lado, já ali o nascer do dia, meia bola de fogo que me alumia mais que estas luzes sombreadas pelo vizinho que teima em entender o que corro no bico da caneta e se desespera torto e contrafeito pelo azul mancha que grita pela minha cabeça.


Recupero-me ao bater do casco, o cacilheiro vomita gerações, sons e cheiros sem pudor do seu arroto rangente de corda e aço. A ferrugem descascada ainda me chama, deixei estórias para trás...



(in Crónicas do Tejo, C.G.- 08/10/2008)

segunda-feira, 13 de outubro de 2008

Libertango

Te gusta?


E dos olhos há mais palavras e interrogações no desafio das mãos cerradas no desejo de te tomar nas ancas pouso vontades indiscretas que espero sejas o pioneiro e matreiro para me enganares no desprezo desta liberdade de romper tecidos e carnes ainda que não as tomaste do sal da lingua que te ata e só me desinquieta quieta na ira de te chamar prendo cabos de ilusão no desvario dos cabelos por ti amarrados em lenços vermelhos que do bolso do desejo enches goelas mas atrasas, brasas, único compasso, passo, atraso, elipse, arrasto, tango, sapato, mato por agora sedes de séculos que me tiras de orgasmos, espasmos, almas, palmas, mãos tuas que dos olhos lêem mais que a música de um cego.

(Ofegante)

(Suado)

(Ousado)


(Faço de conta que me dobras... eu sei, tu sabes)


(Cala-te!)





Te gusto?

domingo, 12 de outubro de 2008

Ecos, fiapos e outros mais presentes

Um dia saltei a ponte. Foi assim que me tornei o que sou. Atravessei-me e fiquei a conhecer outros em mim.

sábado, 11 de outubro de 2008

Contos Curtos Quase Escuros - A janela

- Está frio... Fecha a janela.
Ouvia-a. Distintamente. Mas não fechou a janela, precisava daquele ar frio e com cheiro de molhado a arrepiá-lo no tronco nu e a esvoaçar um pouco as cortinas leves. Cada vez era mais intenso. O frio por dentro. Como se o fabricasse para se manter imobilizado no disparo do que evitava fazer, cada vez mais forte, mais presente e mais ruidoso. Cada vez sentía mais frio por dentro quando se deitava ao lado dela ou quando já não era capaz de abrir os olhos e vê-la por baixo de si e as palavras murmuradas na ponta dos lábios eram só uma lembrança do que já não conseguía dizer.
- Não ouves? Está frio, fecha a janela por favor.
Se fechasse a janela abriría a porta, o frio estalaría. Deixaría um rasto de bocados do que pretendera ser e um caminho de chamas faría que se pusesse a correr desenfreado no receio de o chamarem e ele, mais uma vez hesitante, voltaría atrás, voltaría nas desculpas de algum engano que lhe parecera real e de novo o frio, apagado o incêndio sem rescaldo. Por isso congelava-se, hirto no que tinha de ser, acoçado no silêncio.
- Se não fechas a janela vou eu aí fechá-la! Não sentes como está frio?
Não. Sente o frio mas não quer que ela venha. Ainda não. Ainda não é capaz. Talvez quando chegar a Primavera. Lá não dói tanto, agora no Outuno sería terrível. Não para ele que já se acostumou, precisa deste gelo a dominar-lhe a acção, a cabeça. Enquanto tem cabeça ainda pode abrir e fechar a janela. Depois não há-de querer saber de mais nada, chega-lhe agora ter de saber de tudo, do frio, do calor, de janelas abertas e portas fechadas e dela.
- Não fechaste a janela... e eu pedi-te. Vou-me embora.
Fechou a janela. Cerrou nas vidraças o reflexo do seu tronco nu e gelado. E também o dela no dia em que ela fez da janela a porta de saída.

quarta-feira, 8 de outubro de 2008

O cliente

Entrou. Fez um compasso de espera nas portas empurradas à força do antebraço e esperou que o viessem cumprimentar, indicar-lhe a mesa costumeira guardada no recanto junto ao espelho, a sua, a dele. Mas ninguém lhe dirigiu a palavra e os empregados continuaram para lá e para cá tilintando o abre-latas na pequenina bolsa preta pendurada à laia de avental.
A mesa estava ocupada. Dois rapazes. Vários piercings. Sentiu-se incomodado. Apetecía-lhe uma torrada aparada em pão de forma e um sumo natural. Depois café, cremoso, espesso, daqueles que se debatem até afundar o açúcar. A sua mesa ocupada por estranhos que não respeitavam a alvura da toalha branca, por baixo a grenat.
Quem entrou empurrou-o, vedava a entrada, abancou-se na sua mesa à companhia dos outros dos piercings.
Um empregado perguntou-lhe quantas pessoas mas não olhou para ele e ele não o reconheceu, devía ser novo, senão tería afastado da sua mesa os que a ocupavam como mosquedo na zoada de conversas intraduzíveis.
Ali. Mas ali era ao fundo, perto das casas-de-banho...
Pois que seja, que sem a torrada é que não se abala. E depois, daqui a nada, quando menos esperar, hão-de aparecer caras conhecidas da casa que o conhecem a ele como sendo da casa.
Senta-se. Adiante não vê nada, tem uma coluna. À esquerda a vitrine dos salgados, tão pouco consegue chegar a vista à das artes da seringa nos bolos finos. Atrás, a porta das casas de banho, sem mola, bate tristemente e chega-lhe uma corrente de ar aos pés que lhe lembra o Inverno.
Lança o olhar pela nesga do que lhe foi reservado, uma magra fatia de um salão que busca encantos ao seu homónimo francês. Algumas senhoras de cabelo lilás, uma dignidade gereátrica nas pérolas e nas rendas, artroses que seguram chávenas de chás e espetam dobrado o mindinho. Mas nem nestas peles que se derretem até ao centro da terra reconhece o amigável.
Apela ao empregado. Outra vez. De novo. Está invisivel. Não vai voltar a chamar, olha o relógio de pulso e acerta-o com o da parede. Mal, só vê de raspão. A partir de agora há-de medir quanto tempo passa desde que se sentou até que se apercebam que ele existe.
Nessa altura há-de pedir uma torrada aparada em pão de forma e um sumo de laranja natural.
Não perderá a compostura nem a educação.
Será o mesmo que conhecem desde a inauguração da casa em 1922.
.
(in Eu na Versailles, improváveis escritos, C.G.-Maio/2006)

terça-feira, 7 de outubro de 2008

Princípios e Fins

De inicio, a empolgação, o entusiasmo, o bater rápido do coração ao compasso dos dedos a apertarem tintas na caneta, muitas cores, disparos, sentidos, morde-se o lábio, não dói nada, é sempre em frente, linha após linha assim se desmancha o que se quer ter e atirar para fora, transborda e escorre, alaga os pés, dislexias misturadas com mãos que se atrasam a obedecer, vamos, rápido, mais depressa, que já vem uma torrente a varrer palavras que se depositaram ao papel, confiança? confia-me que eu agrado-te, põe o chapéu de feltro que és homem do regime, sangra nas vezes lunares de mulheres ímpares, não sou eu, não fui eu, fujo, anda cá que ainda não acabámos, transmuta-se o tempo verbal - TEMPO - amortis, camara lenta, camara ardente, não me mates já, não te disse que metesses a terceira? vai apertada entre beijos e saudades, sobrados, mares e vinganças, Oh Adamastor bem vindo, embala-me no pesadelo e conta-me histórias, estórias? não, são verdadeiras mas finjo que são verdadeiras, retratos de ti, vejo-os, sei-os, engulo-os, um dia a digestão obriga-se a contar verdades mas por agora a empolgação, a trote, bonito, a trote dos caminhos que fui eu (fui?) que desenhei, só depois os outros se aventuram.



Depois - um dia - acaba-se - sente-se - que é TEMPO.



Fechar. Fim.



Até à próxima aventura.





(Porque hoje terminei um escrito meu. E dói como tudo.)

segunda-feira, 6 de outubro de 2008

Distinção Outubro 2008




Há blogs que pela sua qualidade me merecem destaque.
Seja pelas palavras ou pela imagem, pela constância do nível e empenho do seu autor, pela inovação dos temas, pela simplicidade com que me fazem viajar. Pelo tanto que me dão.


Assim, resolvi publicamente nomeá-los, sendo certo que a regra única é o meu gosto pessoal pelo blog.
Não é um prémio nem um meme.Não é uma corrente e logo não é transmissível a mais ninguém pelo que só a Árvore das Palavras tem o direito sobre o registo de os indicar e o indicado não o pode oferecer.



Todos os meses, aos primeiros dias, revelarei a minha escolha. Publicarei aqui o selo Distinção Árvore das Palavras com a identificação do meu seleccionado de cada mês e gostaría que o blog distinguido também o exibisse. Mas isso já fica por decisão do visado.


E Outubro é o mês do Van. Van Dog.


Não é só O cão mais distinto destas virtualidades como aquele que não liga a minima para o politicamente correcto, tornando-o mais verdadeiro e real.

Ah! E também é muito bonito... E vaidoso. Mas tem o mérito dos que o sabem ser.


Aplauso às tiras do Van.

domingo, 5 de outubro de 2008

Irmãos

Somos tão diferentes. Tão opostos. Um louro-viking, outro castanho-terra. Um homem, eu mulher. Cantas, eu danço. Representas, eu escrevo. Tu Mãe, eu Pai. Somos sangue diferente, veias diferentes, olhos diferentes, somos costas com costas.

Mas quando nos tocavam na dignidade lá íamos nós, sem armadura, peito feito para o que viesse, golpeados e a rir, a gozarmos o sórdido enquanto cerzíamos feridas um ao outro.

Somos tão diferentes.

As tuas lágrimas sabem ao mesmo das minhas quando somos maiores no afago do cão ou na montaria de um lusitano.

Vais por aí, então...

Eu vou por aqui.

Dá-me um abraço.
Um dia destes havemos de nos encontrar e comparar diferenças, quem sabe...



(Ao António José, meu irmão, Parabéns)

quinta-feira, 2 de outubro de 2008

A outra

Não escrevo em discurso directo.

Faço de conta que a terceira pessoa é outra de quem falo.

Não me apetece dizer-vos o que pensei, o que sinto e neste jogo posso sempre proteger-me na outra.

A outra é a mulher de quem falo, a que eu conheço como as palmas das minhas mãos e ainda assim apanha-me nas esquinas da surpresa e esbofeteia-me a ingenuidade de me encontrar sabida sobre quem ela é. A outra. Digo eu. Ela diz: A mulher.

Dá-me algum espaço para a comentar, dissertar-lhe os caprichos e as preferências, visiona-me, monitoriza os meus movimentos e as imitações que lhe faço, arregala-me os olhos quando avanço no defeito da teimosia, idéia fixa de jerico, procuro retoricamente o que sei me é proibido manifestando a minha sagacidade na arte de fingir.

A outra topa-me.

Estou proibida de falar em nome dela sobre o amor. As saudades. O fascinio que as dores da saudade provocam e nem sequer atravessar-me a cogitar sobre o que as palavras (não) agarram do sentimento de não saber explicar o que se sente. Ela sente, eu tento lógicas.

A mulher expia dos castigos do fingir a mão que me tapa a boca. A mão que me prende a minha mão na incapacidade de desenhar letras.

Isso não se diz, diz ela.

Sou a terceira pessoa do singular.

quarta-feira, 1 de outubro de 2008

Outubro

Mês dez.

A dezena aumenta a vontade, quanto mais tempo passa mais se recorda. Sinto. Sinto que sempre te senti cá por dentro, um hibernar de mim mesma na escalada do frio e do vento na pequenez da luz que agora empalidece ao molhar as tardes.


Ainda escuto o aviso de mala às costas, os deveres, o dever de obedecer aos gritos que pulam cá por dentro, a correría desenfreada até à escola, 1, 2 , 3, recreios de mim, um dia ainda te acho, ainda sei que aquela que chama sou eu, prendo-te a mim e faço tudo outra vez, escorrego, esfarrapo-me e derrapo em linhas de palavras para conseguir dizer tempo, paralizar o tempo, trazer até mim Outubros como me dispo para entrar neles, e serei a de outros meses e de outros anos mas sem acrescento nem remendo, sangue novo, indomável e fervente para me animar na escalada até ao fim.
.
(in Calendário 2008 C.G.-Out/2008)

segunda-feira, 29 de setembro de 2008

Hoje choveu

Do alto do seu tamanho vía-se, um pouco ondulada pela frescura da madrugada que molhara pela noite fora. Ouvira-a. Fizera força para não adormecer e deixar-se embalar na cantoria feiticeira. Assim as adivinhas sobre o formato das poças podíam ter o tamanho que quisesse. Ela podía ter o tamanho que quisesse. Mesmo ondulada. Mesmo arrepiada pelo assobio do vento fino. Mesmo cansada da noite em branco na luta contra a ladaínha da chuva a chamá-la ao sossego, prefería-se acordada na recordação de um outro amanhecer também a chuvisnar, o cabelo muito comprido molhado, o casaco de lã impermeável cravejado de gotículas. Agora acha que não eram da chuva, eram dos olhos dele ou dos olhos dela, agora acha que não é importante... O que foi grande foi a chuva devagarinho, as poças largas onde se viram reflectidos e encaixados a fazerem de centopeia de quatro pernas, por dentro do laguinho raso, por dentro de si a amarinharem e apertarem e sufocarem e até fingir que não íam sentir tristeza da despedida nem naquele dia nem nunca quando voltasse a caír chuva e se lembrassem um do outro em qualquer lugar do mundo onde estivessem. Um sem o outro.
Do alto do seu tamanho viu-se. Agachou-se. Soprou na poça de chuva morta. O espelho de água ondulou-se. Assim parecía que ainda tinha o cabelo muito comprido molhado. De joelhos, passou as duas mãos na cabeça rapada e disse Olá, tive saudades tuas, hoje choveu.

domingo, 28 de setembro de 2008

Cenas banais

Escondeu a boca na mão fechada, bocejou, tentou disfarçar o tédio que lhe causava aquela zoada da voz alheia e no entanto, conseguía distintamente aperceber-se de todas as conversas que se desenvolvíam ao redor, perguntas e respostas, afirmações, até acusações, estas as que melhor lhe chegavam e respondía muda como se fosse pertença dela o diálogo, esquecía-se de seguir o livro que mantinha aberto entre mãos, colava os olhos nas frases impressas e não vía nada, tentava adivinhar o rosto e a expressão dos julgados, o que diríam em defesa, o que alegaría ela caso fosse ela que estivesse sentada em frente do seu juíz, quería despachar aquilo, talvez o acusasse retoricamente, sem debilidades de dependência amorosa ou invocação de tempos melhores, avançar sem medo de uma solidão futura e bocejou, já não era fastio, era saber de antemão o que se seguiría, as lágrimas chegaríam mais tarde, não muito, mas o tarde suficiente para não haver tempo de lhe dizer tudo ou dizer-lhe tudo quando devería ter permanecido calada, apanhou ao acaso uma frase do livro e ficou-se por ali a lê-la muitas vezes sem entender o sentido das palavras, insistiu, uma das vozes calou-se, voltou a perder o interesse na leitura, seguiu o passo que saíu acelerado a fugir do local do crime, pensou que o crime não compensa e disse adeus também, conforme a mulher que saíra dissera segundos antes ao homem que lhe pedira para ficar.

quinta-feira, 25 de setembro de 2008

É Quinta-Feira

É quinta-feira. Dobrou a metade da semana, ainda resta mais um. É quinta-feira, é número ímpar e se fosse Verão touros vermelhos víam o dia último entre aplausos de noites tombadas, é dia cabrão. É quinta-feira nos repiques do sino, vai a quarta a enterrar as cinzas dos sonhos, dá-lhe azar as pérolas brancas no rosário oferecido pelas mãos mortas de heranças. É quinta-feira no sono corrido, veste o cinza cabeça abaixo, esqueceu-se da prata das cores na pressa das janelas fechadas, talvez chova ou talvez arda, tanto faz se vai de costas ou se leva o coração. É quinta-feira, já se perdeu o olhar, melhor de peito fechado às bocas abertas ao vento que das palavras na memória secam acenos e saudades e até dos beijos sente a farpa pendurada levar-lhe o sangue arrojado.

quarta-feira, 24 de setembro de 2008

O jantar (Peixe)

(continuação)

- Caramba! Você de facto tem uma sede!? Não é qualquer um que vira um Borgonha de assentada!
- Que tem? Até eu sou capaz de fazer o mesmo!
Lucia não deu tempo para que a conversa desviasse o rumo e olhando José Maria desafiadoramente serviu o copo de cristal até à beirada e de olhos brilhantes e muito abertos bebeu no gole farto o tinto encorpado. Franz bateu palmas sincopadamente.
- Fantástico! Uma proeza digna de uma dama, sem dúvida... sem dúvida - e abanava ligeiramente a cabeça.
- Falou o cavalheiro exemplar! Cá vamos nós! Preparem-se que vem sermão! Que ferro! - acrescentou José Maria alisando a ponta do bigode.
- Ah! Deixemo-lo falar! Agora fui eu que fiquei curioso! Diga, caro Franz, como são as damas que conhece? Contidas? Rosadas na sua carnação? Coram, imagino! E até tocam piano! E falam francês! Conhece este dito popular? Não acredito que um homem tão letrado como você nunca tenha ouvido este ditoche!
- Mas que ares são esses David? Não lhe conhecía a veia acintosa!
- É para que veja! Que até no fundo dos copos se descobrem borras do que somos! Mas não o nego!
- Boa, boa! - agitou José Maria de sorriso largo.
- Mar...
- O quê?- perguntaram todos
- Mar... o mar que nós somos, o sal da nossa alma...
A criada fardada entrou com a travessa de um gigantesco pargo assado, muito brilhante, de escolta batatinhas caramelizadas pelo ar quente do forno, interrompendo o balbuciar de Fernando sempre empunhando o copo de Borgonha. Serviram-se à vez, pela direita, os copos encheram-se de novo de branco seco muito fresco e fazendo transpirar o cristal como pequenos diamantes. Recomeçaram a refeição, o degustar do peixe firme e odorífero silenciou a discordância, a dona da casa a mirá-los na expectativa do reacender.
- Parabéns! Está uma delicia! Sabe a ...
- Mar, sabe a mar...
- E você a dar-lhe! Como é insistente! E patético!
- O mar é o principio das coisas, o porto dos adeuses e das saudades, dos amores de véspera comidos a tragos largos, não se sabe quando se volta, quer-se deixar de dentro no dentro da mulher, muito para além da recordação, deixa-se esperma que é um bocado do homem que vai tragar outros sitios como mulheres que se despedem, ao mar se volta, a criança que pode ter gerado é num mar que aumenta na barriga da mulher. O mar é vida.
Ficaram todos a olhar Lucia. Depois atacou o seu prato de novo, com muito apetite.
- Mar salgado, tantas lágrimas de mar...
José Maria pigarreou a disfarçar a emoção das palavras de Lucia e do remate de Fernando.
A anfitriã segurou a mão próxima e apertou-a ligeiramente.

(continua)

terça-feira, 23 de setembro de 2008

O gosma ou O desabafo de um desajustado

Há vezes em que o organismo se rebela, transborda o excesso do que nos forrou por dentro e numa golfada vomita todo o mal que de alguma forma tenta entrar nas veias.


Sua-se, cólicas e náuseas dobram o homem pela metade, quase se sente o cheiro do asco.Chegam e lambem as mãos esticadas no oferecimento do (im)préstimo cervical, riem por imitação, aplaudem a linha na laracha adivinhada e batida, esperam a atenção da chefia, hoje chegaram mais cedo, partirão mais tarde no exemplo do funcionário que se aguarda.


Há vezes em que o meu organismo não aguenta e das tripas faço alma.


Há dias em que me perco de mim e por mais que grite não me encontro.


(Ou desfaço-me e da alma faço tripas).

segunda-feira, 22 de setembro de 2008

Estavas à minha espera...

Estava. Tenho esperado por ti, nos últimos dias deixei que uma pontinha de ansiedade me agarrasse e aquela sensação de adrenalina dormente fez-me chegar à porta muitas vezes, tantas confesso, que ao menor ruído ouvía-te os passos ou até esperava surpreender-te preparado de punho em riste para bateres na madeira da minha porta... e eu ali, sorridente por te adivinhar antes do toque.


Tenho estado à tua espera porque tive muitas saudades. Agora já não me lembro como eram, que estás aqui comigo e não vou desperdiçar tempo nem emoções a falar do que passou. Mas esperei tanto tempo, tanto... Passou um ano, um ano dificil sem ti, sem a tua voz morna, o teu estar sossegado, a nossa bucólica presença um para o outro, apenas abraçados no silêncio do crepitar da lareira sem nos ralarmos que ainda faça calor pelo dia fora. E a chuva? A chuva que nos molha os olhos de tanto olharmos um para o outro...


Esperei por ti e fiz tantos projectos quanto os sonhos que tive contigo e das coisas que haveremos de fazer juntos. Vais ficar comigo? Não respondas, não quero saber. Só quero que saibas que tenho estado à tua espera e estou feliz que tenhas chegado Outono.

domingo, 21 de setembro de 2008

Os estranhos

Fez-lhe um gesto com o braço dando-lhe a primazia de passagem. Carregaram à vez nos botões marcando o piso onde sairíam. Ela ficou próximo da porta, ele encostado ao aço que revestía as paredes do elevador. Ela subía com o olhar os andares a passarem devagar. Ele subía com o olhar os saltos finos e a linha preta das meias que desaparecía sob a saia travada.



Um solavanco. O elevador estacou. Depois desceu um pouco com um salto. Rangeu. Imóvel.



Ela carregou várias vezes no botão do andar onde quería saír. Ele aproximou-se. Repetiu o gesto dela para o número que marcava a saída dele. Ela carregou na saída. Depois rápido e quase furiosa calcou todos os números. Ele carregou no botão vermelho e o alarme gritou. Ela olhou para o homem, ele olhou-a confiante da sua acção. Silêncio. Ela encostou o dedo no alarme e carregou com força prolongando o som fino de campaínha.



O elevador deu mais um soluço. Eles recuaram e encostaram-se aos cantos. Depois parou. Eles olharam-se. Aproximaram-se da porta e em uníssono gritaram socorro, bateram com as palmas com força no aço ressoando um som metálico frio. Silêncio.



Ele acocorou-se num canto, é esperar, disse. Ela olhou-o e sussurrou, ninguém sabe que estamos aqui fechados. Alguém há-de vir, acalmou-a, mas quando, perguntou ela, não deve demorar, não se enerve, não gosto de espaços fechados, claustrofobia, não, não, mas não gosto.



Alarme. Silêncio. Alarme, alarme, alarme, a campainha perdeu a força e pareceu soar como um besouro cansado.



E agora? Esperemos, melhor sentar-se, não quero. Silêncio.



Ela escorregou pela parede lisa de aço, deitou as pernas de lado, os saltos a afiarem-se no tapete que cobría o fundo do elevador. Pousou uma mão sobre as pernas vestidas de negro. Costuma vir aqui, não, é a 1ª vez, eu também, vinha por causa de uma entrevista, ah, pois. Está abafado, sim, é normal, espero que apareça alguém antes de ficarmos sem ar, ora isso não há-de acontecer, acha, acho, já não sei, estamos aqui há muito tempo, nem tanto, apenas 10m, só? Parece uma eternidade, pois, acontece quando nos tiram a liberdade, quando nos prendem contra vontade, como sabe, já esteve preso, não, é uma forma de dizer, que comparação, mas é a realidade, você está presa, se não estivesse tinha ido à sua vida, mas não é o mesmo, acaba por ser, você é sempre assim, assim como, teimoso, só com mulheres claustrofóbicas, não seja estupido, está a perder a pose, você conhece-me de algum lado para me dizer isso, tirei-lhe a pinta assim que entrámos no elevador, o quê, topei-a logo com essas meias com esse risco atrás muito direito, deve ter a mania que é boa, você é um tarado, se calhar sou e até sou capaz de a comer, aos pedacinhos, bocadinho a bocadinho...



Ela levantou-se e gritou desesperadamente, deu murros na porta, carregou todos os botões.



Não seja patética, se a quisesse atacar já o tería feito, foi você que parou o elevador não foi, fez de propósito, sim, sim, o que quiser. Sente-se, poupe-se, poupe-nos o ar.



Ela enrolou-se ao canto, tapou o rosto com ambas mãos e chorou aos soluços. Vá lá, não fique assim, daqui a nada tiram-nos daqui, deixe-me. Escondeu a face entre os joelhos e fungou. Ele aproximou-se dela e pôs-lhe a mão sobre o ombro, depois sobre os cabelos, ela sossegou, levantou a cara, a maquilhagem deslizava em fios negros até pingar pelo queixo. Ele puxou do seu lenço e enxugou-lhe as lágrimas, depois molhou uma ponta na sua saliva e limpou-lhe os borrões à volta dos olhos. Ela saltou-lhe para o pescoço e abraçou-o irrompendo de novo no choro. Ele apertou-a. Depois embalou-a ao de leve, ciciou-lhe palavras de conforto, estou aqui, estou aqui.



A luz desapareceu por completo, depois alumiou-se muito viva, o elevador disparou na sua corrida piso acima, eles apartaram-se, ela mais chegada à saída, ele encostado nas paredes de aço.



As portas descerraram-se lentamente e ele ficou a ver afastarem-se um par de pernas com uma linha negra que desaparecía sob uma saia travada.




2ª participação no Elevador

sábado, 20 de setembro de 2008

Antes do dia nascer

Levantou-se.
Devagar.
Na ponta dos pés para não acordar o dia, meio estremunhado e preguiçoso, ainda ausente das suas obrigações. Afastou as cortinas e encarou a madrugada: fresco, cheiro de terra quente por dentro, húmida à face, fofa, permeável à chuva que nos primeiros ensaios não sabe como há-de caír, se de pingas grossas e constantes se disfarçada de borrifos mais iguais a pó. Há azul indigo no ar, um toldo que capeia o mundo.
O mundo é o que a mulher vê da sua janela e o que os olhos lhe permitem atingir. O que os olhos fechados inspiram ao absorver esta cor funda e triste para dentro de si e tão bem condizem com partidas e despedidas e promessas que se firmam com o propósito de se mentir por bem, pois sabe-se que nunca passarão de marcos a lembrar a hora de dizer adeus e apenas isso. É como uma condecoração que se espeta na carne do peito, no lado do coração, legendando a emoção partilhada, um sinal do tempo.
A mulher passa a mão sobre as suas medalhas, ao toque recorda cada palavra dada. Tem saudades. Não sabe que são saudades, sabe-lhe a tristeza, sabe-lhe a azul da madrugada, sabe-lhe a um tempo vagaroso pelos corredores da noite.
Os candeeiros de rua descansam da sua vigília.
O dia acordou.
A mulher tapa o rosto envolto nas cortinas brancas de gaze.
Devagar.

quarta-feira, 17 de setembro de 2008

Fabular(es) - 4º Ensaio

(De cócoras, os pés já a incharem e a tornarem-se vermelhos de estrangulados pelo peso do todo)
- E tu?
- Eu?...
(De olhos fechados, não a pensar nas palavras mas a definir sabores)
- Sim, tu, que disseste?
[Eu disse-lhe que não precisava pedir-me, assim, pedir-me como um pedido, entendes, bastava que me desse a entender que o quería. Eu ía. Ía de olhos fechados e de braço esticado na guia da mão atada à minha, aos tropeções e cambaleando como um bêbado mas ía mesmo.]
- Não lhe disse nada...
- Tss! Bela oportunidade! Agora que havías de falar, calas-te! havía de ser comigo!
- Que queres? Não me lembrei de nada... nada que estivesse à altura, só me vinham à cabeça coisas banais e que já toda a gente disse!
- Dizías à mesma, bolas! Mais valia do que ficares como o espantalho!
[Disse-lhe tudo com os olhos, percebeu tudo, não foi preciso estragar o momento com confissões ou gostos peculiares ou dizer que era diferente, bastou olhar e encontrar o olhar, uma seriedade que quase magoava de tanto querer, entendes, e era medo, medo sim daquele minuto]
- Para dizer coisas que já se sabem mais vale o silêncio. Até o do espantalho. E olha que serve.
(Sentam-se. As pernas traçadas moem os artelhos na gravilha. Um pega num graveto e risca a terra grossa. Faz um coração. O outro arranca-lhe o lápis improvisado e atravessa o coração na diagonal, faz uma seta)
- E agora?
- Não sei...
- Nunca mais se encontram? Nunca mais? Nunca na vida?
[E aquele minuto doeu uma vida, beijámo-nos e ao mesmo tempo crescíamos, crescíamos e depois já quase do mesmo tamanho ainda nos olhávamos e queríamos, sem palavras, tudo sem dizermos nada, bastava a mão esquerda na direita e amávamo-nos deitados no horizonte, ou na terra ou onde nos quiséssemos e nada fazía falta, nada.]
- Não sei, talvez um dia.
- Pois... Quando forem grandes os dois! Pode ser que se encontrem!
- Pois é, é verdade, tens razão...
(Aplicam o dedo no carolo e empurram o berlinde. Um deles desenhou umas gotinhas de sangue a pingar do coração atravessado pela seta. O abafão aguarda)

segunda-feira, 15 de setembro de 2008

As palavras por vezes...

Às vezes deslizo palavras pela folha. Outras tiro da ponta da lingua, por baixo, junto às bochechas, algumas renitentes que se agarram às campainhas e me fazem comichão e tossicar como se tivesse penas na garganta. Muitas arranco do coração, cravejam-me, preferível a dor rápida de as tirar do que o macerar-me contínuo e lento a beber-me o sangue. Umas tantas não sei de onde vêm... se das saudades, se das saudades do que não me lembro ou se das saudades do que devo ter vivido como outrém e agora me atormentam. Vilmente. Cobardemente. Eu devería recordar-me para saber o que enfrentar mas não! aparecem, tomam conta de mim, das minhas mãos, da minha folha, da minha tranquilidade. Enxoto-as para junto das outras palavras mas estas não se domesticam entre linhas, querem espaço só seu, atenção especial, exigem luzes de prima donna... Às vezes escrevo coisas de mim que não sabía até as escrever, escrevo coisas de mim que nunca pensei sentir e doer e fazem-me rir e dançar e voar. Voar! Voar!!!
Às vezes deslizo palavras pelos pingos das lágrimas. Molham-me a folha, mancham-me as palavras e no entanto, está lá tudo, as palavras, o sentir, a saudade, o amor, os abraços, o regresso! Ai, como é bom sentir a dor do regresso!
Às vezes peço às palavras para me enganarem.

sexta-feira, 12 de setembro de 2008

Contos Curtos Quase Escuros - A subir

Subiram os degraus a par. Entre patamares e a respiração a tirar perguntas e respostas ele agarrou-lhe o pescoço e aproximou o rosto do dela, um sopro do hálito a denotar surpresa, olhou-a no fundo dos olhos, ela cerrou a luz e esticou os beiços preparada para ser beijada. Apertada, encostada a ele e costas na parede para não poder fugir, sabía a cena, já havía visto em filmes e ouvira contar destes sobressaltos que fazem perder a força nas pernas e sobem calores desde os tornozelos até à boca da barriga. Era suposto ela demonstrar decoro e tentar escapar-se ao ataque, a respiração um pouco agitada entre o deixa-me e o tem-me aqui, a vez dele calá-la com a boca em sucção pelos lábios, pescoço e abrir-lhe a blusa na violência sedutora das mãos que trepam por espaços aconchegados e conduzidos entre botões e fechos. Finalmente, ele dir-lhe ía qualquer coisa ao ouvido que se perdería no meio do penteado que habilmente desmanchara e sem mais resistência ela deixaría que o corpo se fizesse uma porta franqueada soçobrando gemidos e pequenos urros a incitar à chegada. Era sempre a subir, sempre, mais, quase, mais, agora, não há que perder o ânimo, agora, agora, evocam-se os deuses e os santos, suspende-se a respiração, o movimento, o mundo...
- Mas o que é que tu tens no olho?!

quinta-feira, 11 de setembro de 2008

Um pouco de paixão

Tenho saudades tuas. Daquelas que me obrigam a ir mais cedo para a cama, quem sabe esta noite tenho sorte e sonho contigo. Nós os dois. Se não adormecer logo, pelo menos obrigo-me a ficar no escuro, olhos fechados mas sorriso iluminado por te imaginar chegar, agarrares as minhas mãos, olhares para elas com muita atenção, passares os teus dedos ao longo do comprimento dos meus, depois um beijo na palma. Abraço. Abraço-te à volta do pescoço, gosto sempre de sentir essa linha onde o cabelo termina e deixa sentir a macieza da pele, a cova. Aconchegas-me a ti devagar.
Abro os olhos.
De olhos abertos vejo-te, sinto. Como se realmente estivesses agora a abraçar-me.
Deixo-me ir um pouco mais além. Experimento que me beijas.
Fecho os olhos.
Não consigo beijar-te sem ser de olhos cerrados, parece que tudo se dimensiona na boca, na pele dos lábios, na humidade que faz deslizar a boca na boca, a lingua nos lábios, nos cantinhos, no puxar sorvente e lento e mesmo de olhos fechados vejo os teus olhos fechados.
Tenho saudades de ti.
Daquelas que me impelem a imaginar beijar-te e até adivinhar a que cheiras.
Cheiras a mim, aos meus sonhos.

quarta-feira, 10 de setembro de 2008

O jantar (Sopas)

... continuação



Porque se tratava de um jantar a sopa foi o primeiro prato a ser servido.

José Maria apurou a vista ao filete dourado da beirada do serviço branco que aguardava o creme de espargos.

Algum silêncio quase solene perante os aromas até Lucia dar um esticão no guardanapo e rodear o decote com o mesmo. Fernando sobressaltou-se pelo som de chicote e bateu com a mão no copo de água derramando-o. A anfitriã pousou-lhe a mão sobre a sua, trémula, sossegando-o mas ele, ansioso pelos demais presentes, levantou-se de um salto e desapareceu pelo corredor, de pasta preta entalada no sovaco.

- Lamentável... mas caricato!

- Meu caro Franz, estranharía que você não dissesse qualquer coisa...

- E essa sua observação?! É suposto querer dizer o quê?

- Opinar, opinar! Toda a gente sabe como você gosta de opinar!

- Todos gostamos, aliás -acrescentou David- cabeças livres têm esse fruto sempre pronto a ser espremido!

- Que fruto? De que falam? Esta sopa está óptima! Mas que fruta? Não percebo nada desta conversa! E o Fernando? Que se passa? Mal da barriga? Diarréia? Amarelo como está...

- Não, não é nada disso! Apenas, sabem... ele é timido, e tu Lucia assustaste-o...

- Eu???

- Carissima Lucia não fez nada. O homenzinho é mesmo esquisto, como todos sabem...

- Cuidai quem fala... A tentar impressionar? ora, ora!

- José Maria, é a segunda vez que você me aferroa!

- Meus senhores! Por favor! As senhoras! Não é hora para avaliarmos sensibilidades.

A dona da casa sorriu a David agradecida por atalhar o que podería ser o início de uma violenta discussão.

O prato de sopa de Fernando arrefeceu até formar uma capa, o som de metal dos talheres repousou as vozes e o estomago agora preparado para se irrigar acalmou os diferendos.

Bebeu-se uns goles de clarete, Franz elevou o copo e elogiou o verde que escolhera para si enquanto Lucia não lhe deu tempo para terminar a adjectivação e de uma assentada virou o conteúdo do seu. José Maria arqueou o sobrolho, a boca num sorriso branco e por baixo da mesa roçou o tecido das suas calças no joelho dela. Ela olhou-o descarada e lambeu os lábios.

David tossicou, limpou gentil a boca e voltou a pousar o guardanapo sobre o colo.

Foi quando Fernando entrou, muito pálido, a fungar. Sentou-se. Puxou da garrafa de vinho tinto e serviu-se até este transbordar e manchar a toalha branca. Levantou o copo, o Borgonha a pingar-lhe a mão, o punho da camisa. Bebeu consolado. Empurrou o creme de espargos intocado para longe de si.





continua

terça-feira, 9 de setembro de 2008

Imolação

Não é preciso mais luz. Agarro nas mãos e preparo dedos e pulsos, faço um risco ao meio e separo cada metade de mim, deixo verter. Por vezes ferve, queima, ateia palavras e elas velozes saem nas chispas do pensamento; Doutras, não faço nada, é só sentir deslizarem-me como uma noite em que escorregamos por sexos e amores. Sabe-se ao que sabe. Quer-se mais, prende-se mais, dá-se mais e mais. Não há tempo, não há contadores, não há tamanhos. O que for enche, revolta, alimenta e renova-me. Recria-me. No derramado acabo por me beber, não me sacia, vicia, preciso mais, quero melhor. Há mais luz. Desperdiço mãos e dedos, empatam-me. Soltas, progridem frases perante os meus olhos. Fecho-os. Abro-os. Nada desapareceu nesta insana felicidade de procura e busca, perseguição e caça. Abato-me. Disparo flechas a mim mesma e vejo-me sangrar no verbo ingrato. Sol. Ardo.

Riscos

Tenho dias de lápis e borracha e outros de caneta.
Mas hoje é daqueles que só a sumo de limão em que apenas o calor das mãos faz sobressaír o impresso das letras.

segunda-feira, 8 de setembro de 2008

A rapariga do livro

Gostava tanto , tanto da capa que por temer acontecer-lhe alguma coisa forrou o livro. Era um livro grosso, muitas páginas, sem um único desenho, só letras e mais letras. Na verdade comprara o livro mais pela beleza da ilustração da capa do que pelo seu conteúdo, não era muito dada a leituras, acabavam por a enfastiar. O que gostava mesmo era dos desenhos, mas este só o da capa, flores cor-de-rosa que tombavam de uma árvore curva e caíam sobre o cabelo longo de uma rapariga vestida de branco que recostada no tronco se debruçava sobre um livro aberto. Tinha para si que aquela figura era ela, gostava de se imaginar assim, a ler à sombra de uma cerejeira em flor.


Forrou o livro esmeradamente. Nas voltas e voltas que lhe deu lá se abríam as folhas e chamavam a sua atenção para uma e outra linha. Lía. Mais um vinco. Frases. Lía. Mais uma dobra. Sentou-se. Página um. A rapariga do livro.


(A rapariga do livro tinha sobre si um encanto que ninguém conseguía desatar: estava condenada à eternidade de ler um livro sem fim).


Que disparate! Era por coisas destas que se aborrecía. Recostou-se na cadeira. Tirou um pé do sapato, mexeu os dedos, sentiu fresco.


(Para todo o sempre a rapariga folheava à medida da leitura em voz baixa, as páginas intermináveis de uma história que nunca acabaría. A cerejeira floresceu, deixou caír as flores rosadas, deu frutos vermelhos e brilhantes, perdeu toda a folhagem, fez-se morta e mirrada e de novo despontou pequenos troços muito verdes que antecederam flores perfumadas).


Descalçou o outro pé. Afagou-o no peito do outro. Gostou da sensação de encaixe perfeito que a curvatura de um permitia ao alto do outro. Tentou entrelaçar os dedos, sentiu os nós dos tornozelos a deslizarem sob a planta morna e macia do pé.


(Um dia a rapariga já cansada de ler em voz baixa, emudeceu. E embora continuasse na sua condenação nenhum som embalava a cerejeira, que se dobrou, dobrou e dobrou cada vez mais).


Enfiou os dois pés num só sapato, mal cabíam os dedos, sobravam os calcanhares, apertavam-se os dez num espaço sem ar, sem forma, esbeiçava o calçado a transbordar de um número que não esperava.


(E como se não tivesse sinal da história avançar pela voz baixa da rapariga, a cerejeira esgotou-se na avalanche de flores cor-de-rosa até a cobrir toda e apenas restar um livro aberto, caído sem dono e perdido para todo o sempre).


Agarrou num lápis e escreveu FIM. Depois rasgou a folha que forrava a capa dura do livro grosso e passou a mão pela ilustração que a encantava. Uma cerejeira levemente curva pingava flores cor-de-rosa sobre um livro intitulado "A rapariga que não gostava de ler".


Calçou-se. Abriu o livro e ficou a admirar as ilustrações pastel que cobríam todas as páginas.


(in Telas, C.G.-Outubro/2006)

quinta-feira, 4 de setembro de 2008

Distinção Setembro 2008



Há blogs que pela sua qualidade me merecem destaque.


Seja pelas palavras ou pela imagem, pela constância do nível e empenho do seu autor, pela inovação dos temas, pela simplicidade com que me fazem viajar. Pelo tanto que me dão.
Assim, resolvi publicamente nomeá-los, sendo certo que a regra única é o meu gosto pessoal pelo blog.


Não é um prémio nem um meme.Não é uma corrente e logo não é transmissível a mais ninguém pelo que só a Árvore das Palavras tem o direito sobre o registo de os indicar e o indicado não o pode oferecer.


Todos os meses, aos primeiros dias, revelarei a minha escolha. Publicarei aqui o selo Distinção Árvore das Palavras com a identificação do meu seleccionado de cada mês e gostaría que o blog distinguido também o exibisse. Mas isso já fica por decisão do visado.


Setembro tem Ares da Minha Graça. Da dela, entenda-se. Da Patti, a autora.


Cada texto é um quadro vivo, vibrante, satírico, caricatural, espirituoso. Verdadeiro. E a vertente opinião está assinada por quem tem coragem e chic para o fazer na 1ª pessoa.
A acompanhar, as belas imagens na ponta do dedo sempre de prontidão.


Eu aconselho.

terça-feira, 2 de setembro de 2008

(Texto)Tão banal como o riso

Às vezes tinha dias de riso. Daqueles que disparam por tudo e por nada, em que o nada era o mote e o tudo era a gargalhada colectiva. Meias frases eram o saca-rolhas que fazía saltar uma mente endiabrada e muito bem lubrificada pela progressão explosiva com que desenvolvía o motor de uma qualquer história arranjada à pressão, os outros uma achega, um fertilizante que impedía que o ponto final arrasasse o trabalho do aparelho vocal e da extensão e compressão das paredes abdominais. Nesses dias havía sempre sol. Era amarelo. E vía-se, redondo, como se costumava desenhar quando ainda se vestía bibe. Por todo o dia ría e mesmo inquirido sobre a graça achava graça à questão, encontrava-se mais sagaz nestes dias, apurado com soluções para problemas que se assemelhavam apenas e tão só a complicações. Depois os dias de riso começaram a rarear, ou não podía ou não devía ou não se lembrava ou não tinha vontade. Às vezes tinha dias que tentava rir como nos dias de riso mas não lhes achava piada nenhuma ou até se considerava um tolo. O sol ainda aparecía mas agora escaldava-o e até o amarelo o encandeava. Um dia parou de todo com o riso. Nem sol, nem soluções, nem facilidades nem amarelos. Só um grupo de homens velhos que o rodeava, cotovelada aqui, piscar de olho no outro, uma tosse incontrolável pelos cochichos trocados de como ele os fazía rir e sentirem-se felizes.

segunda-feira, 1 de setembro de 2008

Setembro

Mês nove.

De repente. Assim, num estalar de dedos. Tão intempestivo.

Abriu os braços e atirou o que lhe antecedeu contra a parede, sem piedade e surdo aos rumores que ainda se sentem do mar.

Chegou e instalou-se. Fez-se imponente: O ano que inicia ao nono, que manda nas uvas, nos figos, nos frios matutinos e também nas tardes cansadas, na obrigação, no tempo, Ah! tempo! É tempo de mostrar, provar, prova-me Setembro que te temo nos dias que mirram e eu saudosa (de quê, de quê?) ensaio poemas no agasalho que puxo aos ombros, já é Setembro?!

...

Ficou sério num repente. Ou fiquei eu. Baixo-me pelos castanhos que me sobem à boca, folhas tesas e encarquilhadas de um Verão. Houve Verão este ano? Já não me lembro, parece que tenho de deitar as pernas à vida e correr, correr, correr...



(in Calendário 2008, C.G.)

domingo, 31 de agosto de 2008

O jantar (Aperitivos)

Embora os conhecesse bem havía preparado com bastante antecipação o cardápio a servir. Cada um no seu coração, cada qual mais oposto que o outro. Era isso que a fascinava e que a mantinha acordada naquele estalo de os desvendar continuadamente por muitos anos que tivessem passado e ainda nos vindouros. Sentía-se uma esponja e eles pingavam-se entre manias de pessoa comum e o uso do verbo na genialidade dos poucos.

O primeiro a chegar, pontualissimo, foi José Maria. Exalava suave a bergamota no lenço de seda e irreprensível no lustro dos botins. Falou do tempo, dos calores e da condição humana enquanto lhe segurava levemente flectido a ponta dos dedos.

Logo de seguida pareceu Franz que mal se apercebeu da presença de José Maria e das suas opiniões politicas entregou um beijo à anfitriã denotando uma intimidade que de facto não existía. Ela sorriu, indicou a sala, o sofá confortável, os aperitivos. Franz serviu-se de um Madeira e encheu um cálice de xerez para José Maria, que acusando o picante acintoso apenas lhe dirigiu um toque de cabeça mantendo-se na sua posição de perna traçada acomodado no canto do sofá.

Lúcia entrou como era: espalhafatosa, a falar muito alto, beijando os dois homens enquanto relatava as aventuras que tivera no caminho. Eles sorriram ante a visão do decote ousado e dos seios ofegantes que a qualquer momento parecíam escapar-se ao pouco tecido que os cobría. Dirigiu-se à garrafa de whiskey e tragou um cálice puro, depois encheu um copo short drink e às mãos cheias completou-o de gelo enquanto se oferecía uma pedra única a derreter na boca.

A desculpar-se pelo atraso de muitos afazeres, um pouco dobrado e de óculos sujos surgiu Fernando, pasta encaixada no sovaco, a tez amarelada, um pouco suado e com cheiro de tabaco entranhado na roupa. Ela sossegou-o dizendo que ele não era o último, que chegava a tempo, ainda faltava David. Ele pareceu um pouco assustado, murmurou tanta gente, adiantou alguns passos na direcção da saída mas ela agarrou-o por um braço e sussurrou-lhe não me faças essa desfeita ao que ele acedeu por tanto gostar dela.

Não quis nada mais para além de um copo de água que vazou de um trago; ela voltou a servi-lo do jarro de serviço e mais uma vez ele dessedentou-se avidamente.
José Maria riu baixinho, olhando-o fixamente, isso é que é sede homem! Fernando procurou refúgio imediato junto a um móvel olhando as fotografias de familia como se elas lhe pudessem proporcionar o disfarce necessário para a sua invisibilidade.

David entrou, cumprimentou na generalidade, ofereceu um ramo de rosas amarelas à dona da casa, tirou o botão que trazía na lapela e enfeitou o cabelo negro e liso de Lúcia por detrás da orelha, adiantando-se em cavalheirescas desculpas de não saber que havería outra senhora presente.

Dispensou os aperitivos, guardava-se para as iguarías que sabía haveríam de o surpreender.

Mesa? E ela destinou os lugares, o sexo feminino em cada topo, Fernando - que precisava da sua presença perto - ao seu lado direito e os outros que se ajeitassem a bel-prazer, afinal eram todos de casa.




(continua)