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terça-feira, 8 de julho de 2014

Ainda existes?



 
Ainda.
Ainda arregalo os olhos quando vejo as tuas palavras, a tua assinatura encrespada como arame farpado e penso na tua voz a formular a interrogação, o tempo, o tempo que não dá nada, nem minutos, só se escapa nas desculpas da apresentação para aparecer agora, invasor de um esquecimento tranquilo, posso entrar? Ainda podes, ainda te penso, ainda sou quem rio com a lembrança do teu destempero, variações de quem te entende no génio do preto e branco, ainda te espero seja a que hora for e sem tempo de tempo passado e sem perdão por perdoar, o tempo faz-se ontem e hoje faz-se ainda.
Ainda existo e sim, quando apareces é quando espero por ti.

segunda-feira, 7 de julho de 2014

Um pouco de luz



Fechada a noite, encostadas as cortinas, à espera do sossego e do peso dos olhos para o embarque nalgumas horas sem importância de mundos, gostava de sentir a luz difusa e amarelada da rua em contraste com a escuridão no quarto. Por isso, deixava sempre um pequeno espaço entre os cortinados, para que o feixe luminoso embebesse como um ladrão em silêncio para não ser apanhado e lhe molhasse a cama, a almofada, o queixo. Atravessava-lhe o cómodo pela diagonal, uma espécie de seta sem ponta, o final a cravar-se no canto da parede, sem entrada de ferida ou sangue a traír a paixão, já lhe tinha tocado ao de leve, frio, seguira o rasto até à janela e ficara de braço esticado, uma Lua imensa e gorda. Só nesse dia. Nunca mais se fez perguntas, acomodou-se ao leito, puxou os joelhos ao peito e procurou que a luz lhe acertasse no queixo. Ofereceu-se. Um pouco de luz na noite é quanto basta para guiar quando se embarca não se sabe para onde, é uma candeia que aparta o nevoeiro quando se quer regressar.
 
 

domingo, 6 de julho de 2014

Portas & Janelas - Esboço nº 7



 
Branca. Tão branca que fazía doer só de olhar e no entanto era isso que mais gostava nela porque era isso que me orientava como um farol. Nunca fui boa em direcções, rapidamente me perdia atenta com outras coisas, fosse uma joaninha ou uma nuvem em forma de cavalo a correr, por isso tomar conta de pontos para fixar lugares nunca foi do meu interesse, só a casa branca, muito branca, sempre imaculadamente branca e sem ninguém à vista. Tantas vezes me acerquei dela, espalmei as mãos às paredes na tentativa de lhes sentir uma vida por dentro, um som, passos que se arrastassem para me porem  dali para fora, o meu coração disparado... Branca.
 
Um Verão encontrei-a branca e raiada de azul, um garrido lambrim a lembrar uma bainha da cor do céu em pleno tempo de calores. Não gostei. Mas depois alegrei-me com o despertar da idéia de gentes e num impulso corri à porta, bati na madeira até me doerem os nós dos dedos, a boca seca de tantas perguntas por tantos anos.
 
Regresso sempre como uma peregrinação. A casa branca não me deixa hesitar o caminho, solitária gosto de a pensar quando eu corría sem destino e a avistava como um farol. Pouso as mãos na tinta descascada e sinto os sons de passos no meu coração tranquilo, contaram-me num desses anos comidos que houve um homem que viveu aqui e se perdeu no mar, quem lhe pintou o azul ninguém foi capaz de mo dizer.
 
 

 (Portas & Janelas, Outubro-2013)

Todas as fotografias da Colecção Portas & Janelas são da autoria de Eduardo Jorge Silva 

sábado, 5 de julho de 2014

Casulo



 
Essa liberdade das palavras, mentira que sinto no sangue a envenenar latejante e que não passa enquanto o verbo não deslizar suave ou agressivo entre a língua e os dedos acompanhado, os eus no ombro a carregar, prisão que me trava e que anseio, que me faz respirar e alimenta e mata, ainda carrega o vicio dos tiques da noite disfarçada de dia parido, esfregado nos olhos de café mal fingido preso no cordão de cabelo pendurado que se enrola, desenrola no sonho que repelo. Já não sonho, já não tenho pesadelos, tomo pastilhas que dominam dores e cores em universos simultâneos e que cortam a corrente deste mundo, interrompo-me, ficam os eus, sossego eu. Foi-se a prisão das palavras e também a dos sentires e mais a das lágrimas, mesmo que queira não há desejo que o consiga, só liberdade de assistir e ler os eus a catar verbo no chão, esburacar feridas à procura de dor para me fazer chorar. Não magoam, não sinto nada, não há dedada que deixe marca nem arranque pele.
Estou presa dentro de mim e não sei saír.
 
 

sexta-feira, 4 de julho de 2014

Do regozijo de ver



 
Olhar, apontar, enquadrar, caçar a imagem no momento da luz perfeita, achar os brilhos em quantidade suficiente para que não ofusquem ou hajam sombras que lembrem tragédias, cativar o sorriso e aprisionar a memória no perímetro dimensionado.
Recuar.
Decadências suspiradas que escutam longínquo o riso quase grito na correria das brincadeiras quando a bola perdida escapava do pé desajeitado, mãos dadas, beijo à porta, meninos que crescem, mulheres que chegam, arcos de vida que se completam, a noite que vem a seguir ao dia e este nasce a seguir a muitas noites de silêncio.
Silêncio.
Baixinho, muito baixinho, tão baixinho, o gemido, a dor de boca apertada, os punhos traçados ao peito no coração sem força e sem peito e sem lágrimas e sem coração e sem nada e por fim o grito. O silêncio.
Ninguém.
Olhar, achar vidas nos escombros, sentir calor nas pedras, sangue nas silvas que trepam.

quinta-feira, 3 de julho de 2014

Campo de Palavras (14)



É da minha sobrevivência, da árvore, alimentar-me, escrever, são actos indispensáveis para que siga, nem sempre bem sucedidos, nem sempre racionalmente executados. O rigor nunca fez grande parte da minha vida e essa rotina cumpriu a sua função ao extremo quando bailarina, vontades mais destinadas ao amor que tinha à arte do que propriamente ao corpo, factura que pago todos os dias nas pequeninas misérias que vão surgindo e se acumulando na falência da idade.
Por isso e aparentemente, este campo entregou-se a um mato desordenado, fruto apenas das vontades das estações, da queda de uma ou outra baga rachada que libertasse as sementes e desse cama a novos rebentos, outros arbustos, tenras folhagens.
Eu venho sempre, gosto de ver a árvore grande, passar a mão no tronco e sentir-lhe os nós da idade, prometer-lhe na próxima, visita mais longa que desta é só passagem, ficar com os cheiros e com a saudade de quando o lugar era sitio cheio de promessa e corropio de campo de palavras.
Agora somos sós nós.
Silêncio. Conto-lhe as nossas palavras e sinto-lhe as folhas a roçarem-me o cabelo.
Sem perdão pois não houve julgares, floresce pesada em branca e rosa e eu escrevo saciada.
 
 

quarta-feira, 2 de julho de 2014

Estados de alma


 
 
Sentia uma tranquilidade que estranhava em oposição ao burburinho das gentes ao redor, um entra e sai sem fim do começo dos dias na agitação das manhãs de quem se dirige para a cidade grande e ela impermeável nos óculos de sol de lentes escurecidas, o olhar quase leitoso entregue ao verbo corrido nas palavras que melhor se escrevem sem papel, aquelas dispensáveis de correcção alguma porque são perfeitas no sentir, deixava-se entregue a esse exercício de prazer, uma bolha transparente que a deixava ver e ser notada, porém sem a mácula do diálogo de outrem a introduzir-se no seu texto.
[Sinto uma tranquilidade quase estranha no meio desta gente que entra e sai e crê piamente que me vê. Eu olho-os, a alguns observo-os, lastimo as suas vidas pela pressa com que se inclinam ao ventre escondendo o rosto da luz do dia, dos olhos dos outros, dos meus, talvez lhes sorrisse, talvez tivessem medo de mim ou me achassem louca ou talvez existam outros como eu, tranquilos e estranhos, a acharem que eu tenho medo deles, a acreditarem que eu os vejo e afinal não sei onde estão. Estamos todos sozinhos. Imensamente juntos e completamente sós.]
Viu a sua imagem reflectida num vidro, veio-lhe à memória um banho a limpar-lhe o dia, a tristeza, a solidão dos que passam, os que não se encontram e as palavras caídas para dentro de si, as palavras vertidas em água, as palavras fechadas em punhos.
-Bom dia
[Sinto uma euforia idêntica à dos bêbedos, disse bom dia, alto e bom som, mas não consegui mais que um olhar incrédulo. Quando passar, tudo passou]

terça-feira, 1 de julho de 2014

Olhar com Vista sobre o Rio (12)




O lado de lá é o meu lado e mesmo este sendo o meu berço há muito que lhe dei costas, talvez por ti que me fazes estrada ou que te fazes separação de amantes tanta é a tua água de lágrimas deitada a correr baixinho na ilusão de quem te chama mar.
 
É por isso que os cais têm essa triste e doce memória das figuras brancas que se emagrecem ao longe, perdem-se no que queremos ficar delas, afinal és só tu a salpicar os olhos de infinita saudade, sei-o por cada vez que aguardo para retornar, dói-me de todas as vezes que parto, e ainda assim o perdão na garganta a dizer-te murmurado que me embalas que por ti valeu tudo, vale tudo.
 
Quantas foram as vezes que te sussurrei o meu amor em fins de tarde de Verão? E quantas te gritei o meu ódio em noites de tempestade? Muitas, tantas, e tu riste e eu também.
 
Mas nunca te disse adeus, nunca te acenei para te guardar como uma recordação que se aprisiona na memória da vontade...
 
Tu sabes bem o que é isto, é mais do que um olhar.
É um fado.
 

(in Olhar com Vista sobre o Rio, 2012)