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sábado, 31 de janeiro de 2015

Não se sabe



É estranho abrir os olhos, despertar de um pesadelo em que se sufoca sem se conseguir escapar e a luz do dia infiltrar-se como um som no quarto de dormir, paredes manchadas de cor quando se espera que o desespero deslize o resguardo da envolvência de que se saiu até brandamente se recuperar a noção do sentidos, progressivamente, até tudo voltar aos seus sítios, o corpo ao dormir, o quarto ao escuro esperado.
 
Mas acordar já dia alto, o coração perdido pelos cantos assustado pela correria da fuga, pela luz do sol, as ideias perdidas a tentarem ordenar-se pela recordação do macabro na necessidade do relato a outrem e tudo a escoar-se pelo desordenado de um tempo que parece parado numa dimensão que continua a sonhar é pior que uma dor que quase se deseja. Leva a um vazio em que não se sabe o que se sente.

sexta-feira, 30 de janeiro de 2015

Males




O entendimento para as doenças está intimamente ligado à visualização do declínio do corpo, da mingua de autonomia, do corte, da fatalidade, do jorro de sangue, da amputação da fala, do membro, do juízo ou de todos no conjunto. Por muito que se avance no século e a modernidade dos clicks alcance a mensagem no imediato, a humanidade goza ainda na barbaridade do olhar horrorizado para depois relatar como fulano ou cicrano estavam mesmo mal, uma constatação de peso que há-de propagar-se consoante o ouvir dizer, ouvir contar que for levado pelo seus interlocutores e a imaginação de cada um deles. E isto, porque há males invisíveis, dos que sem marca vão roendo por dentro, surgindo uma e outra vez, atirando para o estaleiro o hóspede onde se alojam. Mas sem olho ao peito que possa evidenciar a maleita, é difícil fazer crer ao céptico.

 

segunda-feira, 26 de janeiro de 2015

O bater do coração (vinte e três)




Nem tudo é feito de ses, pese embora o perfeito do condicional na adivinhação das estórias em que a moldura aprisiona a conveniência dos detalhes para o cabimento das personagens à medida exacta da sensibilidade de quem a saliva no apuramento da escuta, há coisas em que a matéria imortalizada pelo toque do olhar sempre terá o morno da carne e do sangue, a seda da pele, a agilidade no desenho da contraluz guiado pela silhueta mandada parar pelos tempos para ser admirada.
Chamam-lhe arte.
Eu apenas ouço o bater do coração.

domingo, 25 de janeiro de 2015

Divagar... se vai ao longe(?)



Suponho que queremos tudo, o que somos e o que reflectimos sobre o mundo e ainda o que deste ressoa para sabermos o que pensam de nós, vá lá enganar-se quem quiser, não há quem não goste que se goste ainda que muito o afirme, esta necessidade tão funda que nos plantam desde pequenos do bem e do mal, a repercussão do bem para ganhar mais bem e assim por diante, uma acção replicada que depois vai-se a ver pela vida fora não é custo simples e a vontade tem mais força para encaminhar pelo atalho simples e desviar para as vingançazinhas do toma lá que é para aprenderes que a mim também me deu, uma chatice quando a dor já é um calo e se tenta emendar e o tempo escapou com tudo, com tempo e com amigos e com paciência, aí é um ai jesus, pede-se ajuda mas a surdez dos demais nem sempre é o pior face à do peito, que isto de bater três vezes quando o mal está feito é a mesma coisa que chamar para o terceiro andar, vai-se a pé.
Onde é que eu ía?

sábado, 24 de janeiro de 2015

Antipatias



Na verdade nunca troquei uma só palavra com ele, mesmo quando nos cruzamos próximo no passeio cada um no seu sentido apressado, um meneio de cabeça é quanto basta e vamos à nossa vida e estou certa que a simpatia que lhe tenho é a mesma que me reserva, largamos o antipático nas costas um do outro e seguimos e não nos lembramos mais da existência de cada um, vizinhos do mesmo bairro.
Mas ouvi-lo hoje a falar, voz mansa em diálogo prolongado que me fez pausar os passos e curiosa rodar a cabeça, parar e admirar a conversa entre o trombudo e um gato vadio, levou-me a engolir em seco, vontade de lhe tocar as mãos que entretanto seguravam o felino delicadamente junto ao peito.
Ele olhou-me.
Naqueles segundos, todas as palavras fechadas na boca se desprenderam e um sorriso tocou-me em silêncio. Naqueles segundos, o rosto impenetrável encarou-me como sempre, mas eu senti-me iluminada.
Na verdade, nunca diremos nada um ao outro porque não é preciso.

sexta-feira, 23 de janeiro de 2015

Siga



Vou, uma corda mal dada, quem sabe até partida há muito atrás e nem eu notei ou então doeu e habituei-me, passei cuspo e segui, não foi sempre o que sempre esperaram de mim? Vou, desperdícios de pensares fazem perder tempo e a cabeça ocupada entre mim e outros, degladia-se entre a beleza das vistas e a agenda sempre impossível de cumprir, um pé no Tejo, um pé nas obrigações, um olho nos habituais, o outro na descobertas de outros pequenos nadas até agora irrevelados, tenho andado distraída, tenho andado ocupada, demasiado de tudo, mais do mesmo, o todo de ambos, vai-se a ver parece uma ladainha mas só o digo a mim que quando me perguntam como estou, respondo invariavelmente está tudo mal e de seguida rio.
Nunca sabem. Passo cuspo.
E sorrio.

quinta-feira, 22 de janeiro de 2015

Portas & Janelas - Esboço nº 14



 
A porta bateu com força e de dentro fiquei-te a ouvir os passos a fugir até nada se escutar. Acho que se fechou com tanta força que levou a cor das paredes, a transparência das janelas, os vasos de flores que teimosamente se embaraçavam nas canelas ao saír de casa, tive medo que as andorinhas de gesso que num dia de brincadeira tínhamos pintado de vermelho furioso se tivessem abalado e te procurassem... Depois sentei-me até ser escuro e fiquei atento aos ruídos, podía ser que te ouvisse chegar ou até mesmo, o regresso das andorinhas ao seu estado imóvel a pregarem-se à parede feitas cristo. Mas nada aconteceu, só os móveis a estalarem a falta do peso da tua roupa e o sobrado sem o rapilhar dos teus pés. Acendi a luz e achei que estivesses do outro lado da porta pronta para me perguntares o que estava eu à espera para te abrir a porta. Abri-a, os vasos de flores, as andorinhas, a parede com a barra da cor que tu escolheste.
Só faltas tu.
Um dia tu hás-de existir e eu nunca hei-de sentir esta cena para além da minha imaginação.
 
 
 
(in Portas & Janelas, Abril-2014)

Todas as fotografias da Colecção Portas & Janelas são da autoria de Eduardo Jorge Silva

quarta-feira, 21 de janeiro de 2015

Estática




É nisto que dá ficar pronta antes da hora [pensou] amarrota-se a roupa e o tempo cresce e ainda parece que o atraso é maior, afinal nem sequer chegou a hora marcada e os nervos à flor da pele a electrificarem a maldita saia que não pára de se entalar entre pernas [passa as mãos rápido na saia em sentido descendente], talvez tenha tempo de mudar de roupa e fui gastar eu dinheiro nisto![levanta a saia em leque que dá pequenos estalidos ao ser erguida] Melhor não, bem capaz de ele chegar exactamente nesse momento, agora já está [consulta o relógio] e aliás já passa da hora, onde é que anda? Não gosto nada de atrasos, uma falta de respeito, vai ouvir-me, quem é que ele pensa que eu sou? [olha de novo o relógio, consulta o telemóvel, espreita pelo olho mágico da porta, vai até à janela] Está muito mal habituado, mas comigo não, só me faz esta! [bate no mostrador do relógio com a unha vermelha, o telemóvel preso na mão] Será que lhe aconteceu alguma coisa?  Posso estar aqui a condená-lo e ele pobrezinho, ferido, mal... ai![caminha rápido e curto] O melhor é ligar e saber, deve precisar de mim e eu aqui a fazer mau juízo[ligações sucessivas sem sucesso].[Choro].[Passa as mãos rápido pela saia que se electrifica com muitos ruídos à volta das pernas].[Arranca a saia].[Serve-se do vinho que tinha aberto e toma um copo de um trago só]. Afinal não lhe vou dizer nada, mesmo nada. Se ao menos houvesse alguém a dizer...?

terça-feira, 20 de janeiro de 2015

O céu da boca (Palavras Reencontradas) 7



[...]

Perguntavam-me então se o fazia num estado de alma, uma demonstração do que me ía cá dentro e a revelação dos eus mais não era do que espelhos a projectarem reflexos (mal) acondicionados do que muito provavelmente o meu racional arrumava. Assim entendia-se uma normalidade para as lides quotidianas e a convivência estreita entre mim e os demais de mim tão perfeita estava explicada.
Não sabía o que dizer.
De perfeito era o mais imperfeito, na verdade um caos, na verdade escrever nunca foi um estado de alma, sê-lo-á e não sei mas deito-me a adivinhar, para os outros, que para mim nunca tive muito essa coisa de falar do meu privado, aquela coisinha mesmo intima sempre a escondi mesmo fundo dentro de mim e nunca tive a necessidade de partilha do segredo, a escrevedura chegava como o ar a precisar de ser inalado e a partir daí a descoberta do que havia para além da sobrevivência. Mas nada de estados de alegria ou pesar como fundamento para o verbo, esses serão talvez o fruto dos que convivem comigo.
Mas nem sempre bem, nem sempre mal. Como toda a gente.
[...]


(in O céu da boca (Palavras Reencontradas), Abril 2014)

segunda-feira, 19 de janeiro de 2015

O barulho das luzes




É suposto que num grupo de trabalho a qualidade seja de alguma forma nivelada, mesmo que alguns se destaquem, porém nunca hajam os que se salientam pela negativa ou mais tarde ou mais cedo, essa fenda vai rachar-se de tal maneira que partirá sem emenda possível e será um mito dizer-se que é uma equipa.
 
Assim é quando cegamente se labora e insistentemente nesse erro se perdoam as falhas cometidas pelos incompetentes, ou politicamente menos preparados para a partilha, achando que o conjunto fará o todo e disfarçará a mingua deixada, o que acaba quase sempre por resultar em trabalhos acrescidos para aqueles que cumpriram com a sua missão.
 
Recordo-me sempre, nestas alturas, das coreografias de grupo e de algumas aparições meteóricas que surgiam e rápido se esfumavam... Diziam sempre, que mesmo que houvesse alguma pequena falha, eram tantos, ninguém notaria, com o barulho das luzes, não se percebe nada...
 
 

domingo, 18 de janeiro de 2015

Pensar 2 X


 
É a escrever que brinco, que respiro, que amo, que me revejo, que outros de mim me usam e desses outros os leio com aceitação ou repudio na critica que lhes faço.
Porém, esse acto é feito na inteira confiança em que sinto, sem apertos, livre, sem condição e tentar cortar a voz da tinta nas palavras com que borro as páginas equivale a taparem-me a boca.
Já aconteceu publicar e ser admoestada, recomendações veladas ou até mesmo conselhos sobre a natureza do verbo, tudo para me por no bom caminho e perante o cabelinho levantado, a dose veio reforçada no tom de outras medidas, de maneira que não tive outro remédio senão engolir em seco a minha liberdade e retirar tudo às vírgulas.
Mas o remate da coisa foi quando me disseram em tom paternalista, para eu pensar duas vezes antes de me aventurar de novo.
Duas vezes?
Mas vocês só pensam duas vezes? Que desperdício...
 
 

sábado, 17 de janeiro de 2015

A moeda



Antes permitia-se porque ainda havia tempo, agora permite-se porque o tempo se lhe encurtou, dois estágios da mesma verdade ou a agilidade do pensamento entrevado na calcinação do corpo, uma moeda falsificada sem duas caras que inexoravelmente exibe sempre o mesmo. De olhos cerrados e frente ao espelho ainda se vê igual, mas a devolução do estalo ao levantar as pestanas, deforma o reflexo e o raciocínio desengelha para outras paragens, afasta o rosto da superfície e desencadeia uma sucessão de escaladas e correrias impróprias para o físico estático, imóvel, porém tão mais explorador do que quando o tempo lhe sobrava.
E agora só vai quando lhe apetece.
 
 

sexta-feira, 16 de janeiro de 2015

Instantâneo - Episódio quatro



É tudo encenado. Um drama!
Está tudo a postos e pronto para o arranque e a branca atinge em cheio, nem mesmo o café é à séria, as palavras patinam na falta da tinta ou na falta de tino ou na pouca força do elástico que esticado no seu limite paga as favas pela incapacidade do cérebro se poder retirar da sua caixa e ser chutado até acordar para a realidade, ou reformulando, para a teatralidade do acto e o acto em si é nenhum. Comparáveis artificialidades à lâmpada que alumia mais que qualquer idéia. Apagada. Sumida. Talvez comida pelo gato, pelos gatos que cofiam os bigodes e se passeiam lânguidos pelas folhas virgens do caderno, de resto tudo frio, o café a ganhar uma nata acre e coalhada, sai o elástico disparado pelo descontrole dos dedos habituados à dureza do aço da caneta e de seguida na perseguição o salto do felino, a tragédia, o caderno!
Instantâneos indescritíveis.

quinta-feira, 15 de janeiro de 2015

Olhar com Vista sobre o Rio (20)



Fundo, tão fundo, vais-me fundo ao peito quanto não te descubro porque me tocas assim.
 
Desta forma tão simples que não entendo para o achamento das palavras certas e só o sorriso me dói ao pensar-te no caír da tardinha e eu cansada, ainda labuto o verbo para o elogio do amor, presa a folhas na mão e à vida noutra, a pensar que não me hei-de ir daqui sem descobrir...
Não sei se são silêncios que me arrancas das mãos ou melodias que me sussurras para distraída me fazer água, o cacilheiro ronca no desaperto dos cabos e eu corro perdida da minha tarefa.
 
Fundo, tão fundo, engoles a caneta que me roubaste. Palavras brancas no meu peito, Rio.
 
 
(in Olhar com Vista sobre o Rio, 2012)

quarta-feira, 14 de janeiro de 2015

Embaciado



Embaciado. Ou irrespirável. Ou nem um nem outro.
Apenas uma chateza de trajecto que não se alcança na vista por onde passa o salto, o ressalto, o passar, deslocar corpos amontoados à espera do chegar a um destino marcado com hora atrasada em que todos sopram e mancham vidros mascarando-os de cortinas inexistentes e fantasiando-os da casa deixada pelas costas ainda mornas do leito afundado na cova cada vez mais próxima de uma terra tirada a palmos encostados a vizinhos estranhos que vão caindo e chegando sem salvação.
 
Embaciado o ar, irrespiráveis os vidros. Ou os dois.
O homem de fato riscado segue de pé, balouça o corpo imitando o ninar e olha o trajecto invisível encarando sério os contornos do nada, perde-se no cucuruto da mulher ao lado admirando as raízes do tempo nas cãs disfarçadas, vizinha de ares no mistério dos veres ou na cegueira embaciada da proximidade.
 
Esgotaram o ar quando se tiveram, um fio de água correu a cortar o embaciado dos vidros. Não se falaram, nem sequer um bom dia, cada um seguiu o seu caminho como sempre. Imaginou a mulher ao sentir-se observada por um homem de fato às riscas ao seu lado.
 
E passou a mão no vidro embaciado, respirando fundo.
 
 

terça-feira, 13 de janeiro de 2015

Perímetros



Por estarem próximo a mim não se conceba que me conhecem.
Menos ainda, depois de repetidamente ajuda eu ter pedido e esta ter sido adiada para mais tarde, porque é-me sempre pedida ao minuto e no beicinho esticado formula-se a minha boa-vontade, a minha sabedoria, o meu jeitinho para tal. Como se tal fosse preciso, pois basta pedir e embora eu soprando que não alcanço tanto elogio e nem tanto socorro na prontidão, acudo sempre.
Mais tarde, voltei ao pedido: Ajuda. Agora não.
Pois que não chegue então.
Recolho-me ao meu terreno privado, aqui ninguém poisa pé, ninguém pede licença porque não há permissão para sequer espreitar, é solo sagrado do meu paraíso e do meu inferno, vá lá que se eu acreditasse neles assim os desígnios o pintaríam, mas é o quarto de porta cerrada onde escavaco a louça e remendo poemas junto à aorta ainda quente depois da decepção.

segunda-feira, 12 de janeiro de 2015

O livro negro dos homens (quinze)



 
Curioso como a verdade se paga caro. Preferível encarar a verdade com uma mentira bem conduzida, daí nenhum mal traz retorno ao verdadeiro que optou por outro caminho e aos que escutam sensibilizados pela verdade escondida e que não passa de loa articulada.
Com a verdade me enganas, diz o ditado, e assim o autor verdadeiro que passa a contar a mentira também piamente nela acredita e de mentira contada e recontada, num caldo de verdades requentadas se torna o pecado original.
Por isso, a história da verdade que se tornou mentira, torna-se apetecível, pede-se o seu relato repetidamente, as suas versões embelezam-se à medida da audiência, abanam-se os queixos na concordância da audácia, quase o aplauso explode na comoção sentida.
Desgraça quando o que partilha a verdade inicial levanta o dedo e lembra o ovo...
É escorraçado por ser um mentiroso.
 
 
(Lx., 06-06-2010)

domingo, 11 de janeiro de 2015

Sossegos



Escapei-me pelo escuro da noite porque precisava da claridade das palavras sem ruído de vozes na pergunta sobre o estado das coisas. Fome, sede, tristeza ou somente silêncios prolongados são vitimas fáceis das interrogações e afinal não se passa nada, só se procura o recanto do eu no acerto da moldura, por vezes é esse o segundo ou o milímetro que se acha entre a harmonia e o berro que se pede para a paz. Distâncias invisíveis e incompreensíveis para quem usa o verbo como oralidade. Deitei-me ao caderno e sob a lâmpada amarelenta das quatro da madrugada dedilhei no azul até os olhos se esgaçarem e o peito consolado se sossegar afrouxando a batida. A morna sensação do dia a nascer conduziu-me à cama pelos ombros com o toque de um xaile. Deitei-me, os pés na cabeceira, a cabeça enroscada na barriga do cão. E passado algum tempo o som de palavras junto ao ouvido, Hoje é Domingo, não é dia de trabalhar... E o aconchego de uma manta macia sobre o corpo.

sábado, 10 de janeiro de 2015

Pedaço de acontecer



Disse que era do frio, assim acabam-se as perguntas, as testas enrugadas, as paragens a meio-caminho na suspensão da certeza da resposta ou o engano do desvio do caminho à pergunta feita que é como quem diz parece-me que não me estás a responder ao que perguntei levando a pensar noutro assunto distraíndo-me. Pois é, é do frio, este recolher enroscada súbito, é do tamanho paralisar que apetece quando o Inverno verdadeiro e à antiga se senta a meu lado, traça a perna e resolve amiguinho conversar, conversemos. E eu, por dentro, toda outonal de espíritos, resolvi-me em Alices e dispus-lhe a que ele quis, o que ele escolheu.
Eu, disse que tinha frio, tenho frio, por dentro, talvez de um Outono que não me tenha acontecido. Provavelmente desses que só aparecem nos livros e escritos à medida.
(E quando voltares a perguntar vou responder que não me lembro do que estás a falar. Só para não repetir que tenho frio. Por dentro. E viro a página).

sexta-feira, 9 de janeiro de 2015

Surdez da saudade



Menos um dia, mais uma eternidade sem ti.
 
Nem que as brumas se adensem o ditado se cumprirá amaciando a dor, quanto mais tempo passa mais me arranha e fere. Não importa que seja em silêncio, é assim que o quero e tanto mais agora que se calou a tua voz, as tuas gargalhadas, guardo para mim este aleijão e digo nada, é nada quando distraída me perco e me perguntam que tenho, talvez falta de ouvido, ou será que te escuto quando ainda te vejo a dobrar esquinas (juro que sim, tantas vezes que corro atrás das tuas pernas) e o coração se estilhaça cravado para dentro não deixando sarar.
 
Dói-me mais. Só a mim. Uma dor maior como nunca ninguém teve ou há-de sentir. Porque é minha. E ai daquele que se atrever a vir com ditados ou comparáveis experiências na sensatez de um relato porque nada pedi, nada desejei, nada lhes sofri igual, esta egoísta eternidade só acaba num dia.
 
 
Ao meu irmão 

quinta-feira, 8 de janeiro de 2015

Campo de Palavras (19)



Penso nas palavras como se as gritasse e todas elas saem do meu caderno levando linhas e fronteiras da pontuação para além dos limites do branco que se enxergue propagando-se até ao difuso da lembrança abafada. Procuro-me nas ruas que passeei em Novembro, feliz, tagarelando de risos entre enfeites brilhantes e a Eiffel vigilante mas acho-me encolhida de joelhos a peito como se abraçasse todos os meus amigos franceses deste lado, uma página dobrada e todos a salvo. Escrevo. Na folha alisada para que se possa respirar, sem medos. E apenas o tanto do que sinto. O meu coração está convosco, livre e solidário.

 

quarta-feira, 7 de janeiro de 2015

Comme Charlie



A noite caiu, esqueceu-se o dia de voltar para erguer os homens e ensinar palavras, dizer perdão, olhar diferente.

terça-feira, 6 de janeiro de 2015

Rebuçados


 
Racho uma fenda no tempo ao cerrar os olhos ao frio lacrimejante: Fumos artificiais em dedos que seguram cigarros invisíveis na tremura arroxeada da neblina que pousou um manto no horizonte, confundem cinzentos pálidos com vultos que muito rápido se aproximam silenciosamente.
Não é ninguém. Dissipações da imaginação, fermentação da fuga, não necessariamente nesta ordem, enquanto ardem os cigarros há tempo de voltar.
Adivinho um leito de rio onde não vejo.
Flores onde há peixes, Primavera morna quando não a quero, partir porque tenho de estar, voar porque tenho pernas e estas com balanço suficiente bem que seriam capazes do salto e quiçá, na correria, atingirem as águas evaporadas hoje em espuma, fumo, névoa, cor da cinza, resto de um cigarro mal apagado que se esboroa e tudo volta à terra, afinal o tempo de me adoçar a boca e esquecer amargos, um pequeno entretém que não cura a fome. Um rebuçado para disfarçar.

segunda-feira, 5 de janeiro de 2015

Lugar ocupado do meu sentir[-te]


 
Chego, sento-me e olho. [Daqui a nada vem]. Sei que não vem, a secretária arrumada do jeitinho dela, tudo muito organizado. Sempre. [Não vem mais e continua tudo tão no sitio]. O contraste absoluto para a minha mesa, não tenho pastas de arquivo mas sei onde está o que procuro, sempre. Se ela me pedisse ou perguntasse qualquer coisa [Viro-me no sentido da mesa dela, da cadeira dela, espero que ela me peça com aquela entoação de voz aguda], eu dava, eu dizia mas fico silenciosa e quieta, ela não está nem há-de chegar. Não está atrasada nem me avisou com meses de antecedência até eu esquecer [Como e quando me vou aperceber que ela não vem?], por isso é escusado procurar na agenda porque só encontro notas de outros e dela a ausência da causa. Do estar. De rir e imitá-la e rirmos as duas e apoquentá-la com teimosias e ela fincar o pé no dia seguinte pois se nem hoje ela vem [E amanhã? Dói menos o teu não chegar?]
 
Perguntam-me por noticias dela, há-de estar muito bem. [Mas egoísta calo o que só me apetece dizer, que mal estou sem te ter perto de mim].
 
Já tentaram levar a cadeira mas eu digo sempre que está ocupada.

domingo, 4 de janeiro de 2015

Um pouco de ontem


 
O sobrado era da cor das avelãs e muito liso, quase acetinado e no meio dos degraus estava abaulado, rangía quando se descia devagarinho mas naquela manhã não recordo esse barulho, só o alvoroço de muita gente a subir e a descer a escadaria que entortava à esquerda para quem a olhava como eu, cá de baixo. Eram miúdos e professores, tudo de bata branca muito tesa, suponho que pela goma em demasia que tinha levado para aguentar os vincos a primor. E pais, ou melhor mães, muitas mães de cardigan pelos ombros com um único botão ao alto apertado, vestidas de tons pálidos a contrastar com as nossas bochechas muito coradas pelo primeiro dia na escola e o peso das malas a estrear os cadernos.
Dei um beijo e recebi outro da minha mãe e fui pela mão da professora. Ao fazer a curva no alto da escada olhei-a e ela sorriu-me com um jeitinho de cabeça para eu seguir. Nesse segundo tive tanto medo.
 
Amanhã retorno ao ciclo de sempre, sem feriados ou comemorações. Tenho tudo pronto para o regresso, sinto que o novo ano - se é que assim se pode dizer - se inicia amanhã.
Faz-me falta aquele beijo, a mão da minha mãe e até, atrevo-me, um pouco de medo.

sábado, 3 de janeiro de 2015

Transfusões



Visito páginas visitadas e encolho-me no meio da conversa.
Revisito-me, tão felizes que nós eramos apetece-me acrescentar, verdadeiras expressões de prazer na apreciação ao verbo, este ido se se tiver em conta o monte de palavras que já aqui foram cuspidas, tão secas e esquelécticas que com um sopro nunca se lhe adivinharia o vestígio.
Divirto-me, de uma assentada faço quatro estações, escalo montanhas, suicido-me entre faltas de pontuação, ai o rigor da ortografia! rio-me, lá e agora, onde andam vocês e será que alguém se apercebe do que dizem e se riem, fantásticas aventuras do sobe-e-desce e ainda e sempre - porque não? Claro que sim! - a poesia, entendível como ferramenta do amor.
 
Revisito-me no sangue que me anima e da transfusão do verbo nova vida lhe acho para me escrever.
 
 

sexta-feira, 2 de janeiro de 2015

Caderno(s)



Engano-me a escrever o Ano e volto um ano atrás. Não mudei de caderno, não encostei o que as minhas mãos já conhecem de tantos afagos e deitei a uso um fresco de 1ª página a condizer com o inicio do qual erro em rodapé para marcar palavras que se sucedem. Afinal, intemporalmente. Eu continuo a ser eu e de mim mesma outros se ocupam nas linhas do caderno velho que também se acha novo. Bastam uns algarismos para tal. É tudo trabalhos, cadinhos, amores. Precisão de contar, vontade, contrariedade, polos que se vão encostando e dão faísca, ponta de sapatilha que dilacera os dedos calejados mas que no toque ao solo electrifica o corpo no amor à arte.
 
Podía fazer batota e alterar os Anos em que cada palavra se juntou a outras tantas e encheram de branco o azul-china, derramando tudo o que sou e o que não posso ser porque são outros, mas nada se alteraria por conta do gosto ao verbo e da sensação de estar viva quando escrevo.

quinta-feira, 1 de janeiro de 2015

Primeiro [de Janeiro]



Desencanto!
Romperam doze e nada aconteceu, antes sufocado entre um sonho e um dormitar de pálpebras à espera da transformação na queda de um gasto, passaram névoas e coisas do antigamente como se fora da vivência sentida e no sacudir abrupto do momento mágico, apalpou-se desconcertado para nada achar: Nem cauda para abanar de contente ou asas de voar montanhas, tamanho maior para saltar margens ou braços alongados para socorrer solitários à procura de colo.
Desencanto, tudo mais do mesmo, e até do pensamento contrariado da novidade nada encontrar, logo ali se torceu para se vingar da loa que a si mesmo iludido contara de  tudo ser diferente quando o Ano verde despontasse.