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segunda-feira, 31 de dezembro de 2007

O espírito do Ano Novo

A mesa posta de dias atrás com migalhas de vésperas e doces dentados de colheradas mal servidas, debaixo de um prato uma nódoa de vinho espreita, o arranjo de azevinho já seco do principio de Dezembro com bagas que foram vermelhas, agora reboladas na toalha bordada com motivos natalícios.

É quase meia-noite do último dia deste ano velho.

É quase hora de estrearmos as nossas promessas, rompermos as meias usadas do passado, bater os tachos, soprar em gaitas de plástico compradas numa rifa, usar rente à pele aquele tom azul que habitualmente detestamos.

Já preparámos a cadeira mais alta para aí pularmos embora repetidas vezes o aviso às crianças tenha sido feito que o perigo espreita se subirem.

Aquecemos na palma da mão umas passas de uva meladas de tanto açúcar e que devem ser mastigadas uma a uma a cada badalada das 12 do fim deste dia. Nessa dúzia uma será e apenas uma, a jura de finalmente começarmos aquela dieta fantástica sem hidratos de carbono nem glucose e que o amontoado de pregas e bóias magicamente desaparecerá logo no primeiríssimo de Janeiro.

Uma outra será para a compreensão com os outros: os outros são sempre uma tribo indefinida e servem para tudo. Basta prometermo-nos que não nos exaltaremos. Que não vale a pena que a vida é tão curta... a propósito, o chefe vai ver quando eu voltar do que serei capaz! Nunca mais me acusará de ser reactivo! Eu dou-lhe a reactividade...

As outras passas de uva serão engolidas de uma vezada que o relógio anda rápido e nunca se consegue comer a preceito e tomar o gole de champagne que faz gases mas que é da tradição e ainda galgar para cima da cadeira, estreitar nos braços os nossos queridos que fazem as mesmas figuras que nós.

Num ápice vão os pensamentos para a saúde, para o amor e para o dinheiro, claro.

E num pulo se chega à janela atirando sem escrúpulos ecológicos coisas e barulho, que o tempo é de festa e este é que é o espírito!

Comemorar a vida, o Recomeço, a Alegria de cá termos chegado!

Amanhã já é hoje, que o velho já se foi e entramos de mergulho nesta espiral do tempo chamando-o de Ano Novo.

Amanhã! Amanhã, cansados e remelosos da festança do reveillon não nos recordaremos das promessas nem do espírito que nos animou nas últimas horas.

Voltaremos a aconchegar-nos ao sono e tudo será como dantes.

domingo, 30 de dezembro de 2007

sábado, 29 de dezembro de 2007

Um quase tempo


Quase a fechar a porta, partir - e de minha parte deixando poucas saudades - é costume sentar e fazer um balanço sobre os meses findos, uma espécie de aquecimento para as grandes decisões que pesam agora sobre o novo ano, que coitado, ainda não nasceu já está carregado de responsabilidades.
Imputa-se-lhe a dieta rigorosa, o deixar de fumar (esta vai mesmo ter que ser com a nova lei), a condescendência, o partilhar e mais uma série de verbos "bons" plenamente adjectivados em qualidade e quantidade.
No fundo não passa de uma rasteira, uma armadilha que nem sequer se disfarçou já que é o próprio que a arma, desguarnecida da necessária vegetação e do chamativo isco.
Virão de novo os dias grandes e as vontades serão exactamente as mesmas, apesar dos votos agora embrulhados em tão belos predicados abraçados em desejos ao rubro.
De inicio, diga-se uma semana, vá lá duas, entra-se numa peregrinação espartana de levar a bom termo tamanhas decisões tomadas na meia-noite do 31.
...Mas deixa vir o champagne e a festa e tudo será tomado como um quase tempo.
Que venha o 2008.

sexta-feira, 28 de dezembro de 2007

Paralelas

Da primeira vez que o viu, a sério, quer dizer sem se aperceber somente de uma presença, mas olhá-lo, vê-lo, sentir-lhe forma e espaço, aguardava na berma esquerda que o combóio das sete passasse. Atrasado, claro, como sempre, claro. Por isso, tinha subido lenta e distraída o monte de terra e cascalho que a levava até às linhas brilhantes assentes nas tábuas carcomidas pelo tempo, chutando pensamentos sem se prender a nenhum, um automatismo sabendo de antemão o que a esperava do outro lado - nada, havería só cascalho e pedra, um monte a descer, depois uma erva rala cortada cerce pela fricção do aço contra o aço, uns malmequeres amarelos e depois sim, uma mata fechada, escura, onde gostava de se descalçar e sentir a dor da caruma sob o seu peso.


Mas nesse dia lá estava ele, talvez parido pela mata, a cabeça levemente tombada, o olhar guarnecido pela aba do chapéu.


Miraram-se no silêncio. Ele agachou-se e pousou a mão ao de leve sobre o carril e murmurou-lhe "vem aí". Ela olhou-o, a boca semi-aberta da surpresa deixou pender um fio de saliva, fino, quente, ela envergonhada limpou-se às costas da mão.


"Está mesmo aí" insistiu ele. E sem dar tempo para mais admiração descobriu-se, fez girar o chapéu em direcção a ela e deitou-se entre as linhas paralelas. Ela deixou o chapéu escapar-se, olhou a curva e viu o combóio a aguçar-se veloz para atingir a recta oferecida, apitando alegre, o fumo cinza a encher de desenhos o céu azul.


Paralisou-lhe o corpo, o pensar, o mundo. O combóio acelerou e cortou as duas metades do monte de terra e de cascalho, faúlhas chisparam-lhe junto aos pés, deixou de vê-lo, imaginava-o separado, o combóio fora-se, um soco no estômago que a fazía dobrar-se.


Ajoelhou-se sobre a linha e queimou-se, um vinco negro sobre as canelas que a fizeram dar um salto atrás. Gatinhou até ao sitio onde ele se deitara mas ninguém lá estava, nem vestigio de ferimento, algum pedaço amputado.


Só um malmequer amarelo, mal arrancado, sobre uma tábua carcomida pelo tempo.

quinta-feira, 27 de dezembro de 2007

Parabéns, Pai



Acho que sei onde estás... talvez numa festa, apreciando o teu puro, tingindo os lábios num malte, lançando charme e enchendo o salão com a tua voz de tenor.


Não tiras os olhos da Mãe, orgulhas-te de ser a mulher mais elegante da sala, discreta e tão cheia de presença.


Sei que estás bem, só podes estar bem. Mas tenho saudades vossas.


Descansa Guerreiro, meu bravo.


Um beijo para ti.

quarta-feira, 26 de dezembro de 2007

Depois da festa

Agora o silêncio que abusa do exagero, da demasia, do ruído empolado da metamorfose.

Quedam-se os brilhos, as taças, as caldas, o abraço apertado, guardam-se os pontos de exclamação, as peúgas repetidas, os almoços e os jantares, arrumam-se os parentes, enjoam-se os presentes, curam-se bebedeiras de tanto gostar... e hoje?

Hoje chove, esfria a vontade, come-se coalhado o amor que tanto de véspera se fermentou. Não apetece a fala, amarrota-se o riso, os pés cansados esquecem festas de outros anos até de ontem, entra-se no resguardo da contenção, envergonha-se o vermelho-verde, baços.

Peregrina-se lento e cinza até ao dobrar das paillettes quando as rolhas explodirem de novo beijos e desejos de tudo bom.

terça-feira, 25 de dezembro de 2007

Parabéns, Mãe



Onde quer que estejas.


Um beijo

segunda-feira, 24 de dezembro de 2007

Hoje há moelas

Ou cozido. Ou pipis. Ou qualquer outra coisa. Que as palavras hoje custam, doem, infectam e fazem pus, uma crosta mal sarada que mantém em carne viva o sentido sob o peso dos dias que se aproximam.

Há demasiados cheiros e paladares, e ainda muito riso, muita voz de criança a cantar, a pedir atenção, muita gente, de tanta gente tanta saudade.

Vejo-os, assisto-os deste tempo do agora, olho-me, miúda, irrequieta, ainda quero colo. Preciso de colo.

Hoje há tudo e não há nada. Não quero comover-me nas palavras, salgar-me delas na pálida ilusão de revisitar outras casas e encontrar-me a mim mesma, sentada no chão, a articular frases com a caneta de tinta permanente a manchar-me azul-china nos dedos que afastam do pensamento figuras que moram no meu coração.

Por isso, hoje há moelas, é só o que há.

domingo, 23 de dezembro de 2007

sábado, 22 de dezembro de 2007

Lista de desejos



Gostava que este ano não houvessem presentes. Se calhar nem Natal. Nem pessoas a desejarem o bem de um dia para o outro. E a 26 de Dezembro encolherem-se na rua e disfarçarem na gola do casaco a má vontade de levantar a saudação e dizer apenas Feliz Dia Para Ti!.

Gostava que não pensassem no feriado nem na comilança em casa alheia, que está tudo pela hora da morte e enquanto toca a eles, poupamos nós.

Gostava que não se esmerassem nos adornos que afinal isto é uma vez ao ano e depois volta tudo às caixas, algumas bolas partidas, o pinheiro artificial é mesmo lindo mas o cheiro de pinho nem me lembro já como era.

Gostava que não oferecessem o abraço a esconder o embrulho, olho vivo para o que lá vem.

Gostava que não recordassem o pedinte da esquina, que amanhã, se ele lá estiver até lhe dou o resto do que hoje sobejar.

Gostava de não tropeçar a cada troca de palavras na saída airosa do rótulo pendurado ao pescoço de boas-festas, que afinal não me conhecem de lado nenhum, mas fica sempre bem e é hábito dizê-lo.

Gostava de me deitar hoje, com frio e amanhã acordar numa bela manhã de Junho, morna e o vizinho do lado me dizer Bom Natal, Vizinha.

sexta-feira, 21 de dezembro de 2007

O grito



Na ventania do fim de tarde os cabelos desfraldaram-se como pavilhões de uma nau imponente. Ele afastou-os do rosto descobrindo o caminho da pele até à boca dela. Apertou-lhe os pulsos junto ao coração e ela na tentativa de lhe tocar sentiu a força a sufocar-lhe as veias como se o sangue se estivesse estancado naquele garrote, não precisando de correr mais.

Percebeu que era ali que se dizíam nos olhos.

Não trocaram mais palavras até se separarem, apenas se abraçaram até se vincarem um no outro.

Seguiram caminhos opostos, costas com costas a afastarem-se.

Ele pôs as mãos em concha junto à boca e gritou amo-te.

Ela sentiu uma parede a ampará-la e salva, ergueu o braço ao alto desenhando-lhe uma flor.

quinta-feira, 20 de dezembro de 2007

... And now, something completly diferent(1) ou o Bolo Baltazar


Não é segredo e já por aqui falei da minha paixão por gastronomia. Sabê-la, testá-la e aprová-la é para mim muito mais que um hobbie ou tão só a necessidade que temos de nos alimentar. Descobrir a origem de uma receita, as histórias ou lenda que as povoam, procurar os ingredientes e como um cientista abrigar-me no aconchego do meu laboratório, pesando, misturando e observando o evoluír destas verdadeiras poções mágicas revela-se-me como uma leitura de um bom livro.

E à conta desta minha "bisbilhotice" alguns segredos guardados a sete chaves têm sido ao longo dos anos depositados na minha confiança.

A história de hoje gira à volta de um bolo de chocolate que viu o seu nascimento e consagração no Zaire, actual República Democrática do Congo, anos 30, época natalícia e quando chegou a Portugal, lá para os lados do Bairro Alto num antigo palacete, Natal também, já passados mais de 50 anos, a sua inventora chamou-me à sua cozinha e contou-me uma história de amor. Só quando acabou a confecção deste manjar é que me apercebi que tinha estado a ser avaliada pela minha atenção e capacidade de a seguir, no fundo duas histórias que se cruzavam, sendo que a de amor mais não tinha sido que uma manobra de diversão, sabendo a artesã de antemão a minha fixação por relatos. No final, pediu-me para escrever a receita, tinha chegado o tempo de a passar a alguém.

E a história de amor, perguntei? Também posso escrevê-la? Não me respondeu, debruçou-se sobre o forno perfumado e apenas exclamou: "Voilá!"


BOLO BALTAZAR


Ingredientes

- 300gr. de chocolate negro em barra

- 8 ovos

- 150gr. de açúcar

- 100gr.de farinha

- 70gr. de manteiga

- 4 colheres (sopa) de rum

- 1 colher cheia (chá) de fermento



Cobertura


- 150gr. de chocolate

- 50gr. açúcar

- 30gr. de manteiga

- 2,5dl. de natas

- 5 colheres (sopa) de rum


Parte-se o chocolate em bocados para dentro de uma caçarola, fazendo-o derreter em banho-maria. Incorpora-se a manteiga até ficar uma pasta lisa.

Bate-se as gemas com o açúcar até ficar espumoso e esbranquiçado. Juntam-se a farinha e o fermento peneirados e a mistura de chocolate/manteiga e o rum.

Elevam-se as claras em castelo e adicionam-se em pequenas doses.

Depois da forma barrada e cheia com a massa vai ao forno já bem quente durante 10 minutos; depois 20 minutos em temperatura mais baixa e no final da cozedura deverá cobrir-se com folha de aluminio para evitar fazer crosta.

É desenformado morno sobre o prato de serviço e vestido com o creme feito em lume brando com todos os ingredientes constantes da cobertura.

Acompanha com natas ácidas batidas.


Experimentem, vale a pena.
E esqueçam as calorias. Engordem de abraços, beijos e bem-querer.

(1 - A frase é da autoria dos Monty Python de quem sou fã.)


quarta-feira, 19 de dezembro de 2007

O título que quiserem



Perguntaram-me hoje se eu deixava que as palavras me consumissem a vida. Esta contínua e viciante bebedeira de escrever, escrever todos os dias nos momentos e em lugares mais estranhos, na minha cabeça, no olhar que perco em alinhavos de frases, no mundo rodeado de letras que giram à minha volta. Afinal é só agarrá-las e fazê-las minhas...

Não.

Vivo a vida até a gastar toda. Até ficar gasta e transparente. Um dia de tão puída rasgar-se-á e nem a mim dará mais préstimo para me cobrir. Até lá farei uma festa com ela.

Mesmo que de letras seja o som da música.

terça-feira, 18 de dezembro de 2007

O pinheiro - Um conto de Natal

Ela escolhía com precisão o sitio onde colocar os pés, evitando aqueles montes de lama e o que parecía à luz dos faróis da velha camioneta espelhos de forma irregular que mais não eram do que poças de água da chuva que nos últimos dias se abatera pela cidade. Ele vagueava no terreiro por entre pinheiros fantasmagóricos, mãos nos bolsos, despreocupado, a ponta do cachecol ondulando ao sabor do vento frio de Dezembro. Olhava e voltava a olhar e não se conseguía decidir por pinheiro algum: todos lhe parecíam demasiado grandes ou anões. Ela acercou-se dele e no seu olhar a mesma indecisão.

O velho lenhador guardando o dinheiro amarfanhado junto à rodilha do lenço sujo aproximou-se deles e gritou como que a cantar "então freguesa?"

Mas a freguesa torcía o nariz e nenhum pinheiro lhe enchía as medidas. E o lenhador na sua ladaínha de sedução sufocava pelo tronco pinheiros farfalhudos, passando as mãos grossas e calejadas pelas agulhas, deslizando-as como cabeleiras fartas, comentando que aquele era o melhor sitio onde podía comprar a sua árvore de natal.

E desgarrada dos outros pinheiros lá estava uma arvorezinha delgada, quase raquitica de ramagem, uma única pinha pendurada... Ele olhou para a mulher e os dois tiveram a certeza que aquela era a única que poderíam levar para casa e enfeitar junto à lareira.

Perguntaram pelo preço mas o lenhador riu-se e disse-lhes que aquela era "ruim e desfigurada, torta e nada bonita". Eles insistiram e o lenhador farto da venda e do frio apenas soprou "ofereço-lha!".

O homem agarrou o pinheirinho pelo tronco magro e sentiu a mão a queimar. Surpreso, abriu a palma e viu que estava manchada de resina. Acalmou-se, nada comentou com a mulher que seguía à sua frente.

Chegaram a casa e levaram a árvore para a sala, junto à lareira, plantando-a num enorme cabaz repleto de terra. Trouxeram os enfeites e as luzes. Mas a árvore tinha crescido e crescido e agora, para espanto deles, erguía-se esbelta e altiva naqule verde profundo e fresco, roçando o tecto da casa. Eles apenas olhavam e silenciosos deram as mãos num receio que aquela magia desaparecesse.

Ela reparou no tronco: vigoroso, mostrava uma mancha cor de mel, um âmbar que gotejava, desenhando uma marca cravada fundo naquela madeira loira.

Abraçados, aproximaram-se do pinheiro elegante e conseguiram com toda a nitidez ver um coração tatuado, os bordos enfeitados de resina brilhante e odorífera.

Recordaram então um tempo de namoro em que ambos se tinham prometido para todo o sempre, um coração desenhado numa árvore qualquer, dois nomes inscritos, um amor a crescer conforme o pinheiro subisse em direcção ao infinito azul.

segunda-feira, 17 de dezembro de 2007

Flores


A sua maior glória fora receber flores, não umas quaisquer mas aquelas, colhidas pela mão dele em correría pelo campo fora, braços abertos, grito contra o vento. Rebolaram colina abaixo e falaram de joaninhas, cães, tamanhos de bostas de cavalo.

Ficaram de peito arfante deitados nas costas da erva húmida, os olhos a encadearem-se no turqueza do alto.

Adormeceram. Acordaram no tremor do tempo passado, a hora perdida de chegar a casa.

Ela procurou-lhe a mão e sussurou "Nunca vou esquecer este dia".

Ele ergueu-se e deu-lhe um beijo na bochecha fria, um fio de cuspo espalmado no rosto.

Perdeu-lhe a infância, a adolescência, a madureza dos dias trouxe-lhe o esquecimento. Não sabe nem quer entender porque razão hoje se lembrou da caixa de chapéus e de lá tirou o ramo, seco, algumas hastes quebradas, as pétalas a desfazerem-se no pó do tempo. Afagou a cara sentindo-a molhada daquele fim de tarde. Sorriu e recordou os sons de olhos fechados.

Hoje porque lembrou é mais um dia de glória.

domingo, 16 de dezembro de 2007

sábado, 15 de dezembro de 2007

Pôr-do-sol

Olhou-a de frente, um sorriso nos lábios, a cabeça amparada na mão. Ela cobría-se daquele tecido macio que envolve o amor. Silenciosa. Procuraram-se, o cheiro, o naufrágio um no outro.

Foi quando ele viu uma auréola rodear-lhe o cabelo encarniçando-o. Apontou, ela viu no reflexo do olhar dele a bola de fogo a baixar e entendeu o que lhe dizía. Estás a perder tudo, não, não estou, hoje ofereço-to...

Tocaram os lábios, a ponta da lingua húmida e macia a festejar na boca que sempre soubera de cor, a mão junto ao seio feliz, altivo do afago.

Queres-me?

Então corre, ainda o apanhamos!

Gritaram na dor de serem engolidos. Sobrou um risco curvo, escuro até se apagar de vez para a intimidade do acto.

sexta-feira, 14 de dezembro de 2007

Ler as mãos




Gosto de mãos. Gosto de observá-las, ver como se movimentam independentes, fabricam desenhos, os dedos a unirem-se para fortalecer ou a separarem-se para agitar palavras.

Gosto de mãos que sabem falar, que imitam voos, que sem pudismo mostram o seu corpo interior exibindo linhas, calos, toda uma nudez que se pode ler até ao pulso, polpa, impressões digitais.

Gosto de mãos com vincos, um quase corte à faca, bifurcações que me relatam histórias de tempos, amores tacteados, um firme segurar do outro na tomada do afago.

Mãos que fecham para esconder linhas de outras mãos, famintas de laços embrulhados.

Mãos são leituras que se escancaram, dão-se, provocam-se, inventam-se na habilidade cruzada e torcida, esfregada e suada.

Gosto de ler mãos como livros proibidos, apetitosamente espreitadas no olhar surpreendido de quem adivinha um segredo tatuado pelos anos, indelével, belo e único.

Quente.

quinta-feira, 13 de dezembro de 2007

Dias de azar, Dias de sorte



Dizem, há temporadas, fases de azar. Anda-se em maré de azar e depois passa. Parece quase uma obrigação, uma fatalidade ter que cumprir o ditado, levar adiante esta mal fadada série que parece não terminar, mesmo sorrindo, mesmo buscando uma "boa energia".

Ontem, sentada num autocarro apinhado e com cheiro de cebola, distraí-me a olhar para a biqueira das minhas botas. Imaginei o que sería se partisse um salto, assim, longe de casa, de um mestre-sapateiro, de uma loja. Mas o sol fulgurante obrigou-me a esconder os olhos sob os óculos escuros e limitei-me a deixar que ele me flirtasse no nariz, nos lábios, no pescoço.

Durante o dia, anda para lá, anda para cá, bate o tacão (não perco esta mania do compasso), debaixo da secretária coreografias na biqueira, arrasta, empina, coup de pied, levanta, senta, mais andar e crack. CRACK? O miserável salto ao dependuro, triste, eu manca forçada e agora, e agora?

Agora nada: uma alma caridosa põe-me o assento estofado do seu carro à minha disposição e larga-me à porta de casa em 30 minutos!

Hoje: Porque não acreditam no que digo? Provas, tenho números que não mentem, não é a matemática uma ciência exacta?

Não.

O amor é uma ciência exacta: ou se ama ou não se ama.

Recebi-o em palavras sonoras, bem di-tas. E também as disse.

Fechou o ciclo.

quarta-feira, 12 de dezembro de 2007

Cartas ao Poeta (IX)



Meu Poeta,


Estes dias de tecto fechado aportam-nos a melancolia de horas findas, uma sensação de perda que não chega a ser porque no fundo é um tempo de interiorizar e renovar.

Aquilo que nos prende agora o olhar para a frente e nos trava os movimentos mais não é do que a hibernação da memória de dias de sol e bronzeados dourados de uma época que achamos que iríamos ser felizes para sempre. Entrámos no fuso horário das cores escuras das roupas que nos vestem a alma, a angústia de não sabermos quando voltaremos a sorrir por ver o dia amanhecer claro e luminoso.

Mas este é um tempo necessário para valorarmos o que de bom deitámos para as costas e sentirmos como nos faz falta brincar, pular e dançar.

Não adianta fugir do agora: ele é a preparação para ver na próxima estação a erva a crescer, o rio gordo de chuvas aprisionadas, o coração calmo para tão logo sentir que nos voa do peito.

Por mim e por aqueles que amo vou dançado à chuva, de pés nus para me sentir ligada à terra, braços ao alto para tentar tocar o céu.


Um beijo, meu Poeta.


(in Cartas ao Poeta, C.G. 07/09/2005)

terça-feira, 11 de dezembro de 2007

Ao longe

Escuta...

Consegues ouvir? Consegues notar a tempestade ao longe, as nuvens a afastarem-se rápido para deixarem passar o bater do meu coração a compasso da trovoada a caminho de ti? Aquele tempo parado, suspenso, que antecede o estrondo e o cheiro fulminante da descarga do meu querer-te?

Não tapes os ouvidos, nada receies.

Afinal, de seguida vem a chuva lavar a terra, silencíam-se os raios riscados e aí vais conseguir ouvir-me.

Escuta... amo-te.

segunda-feira, 10 de dezembro de 2007

O Dia da Árvore


Hoje faço anos.
Já faço muitos, são dez.
Apesar de me tratarem como um bébé, já sei tomar banho sózinha e escolher a minha roupa, falo inglês, francês e espanhol e sei muito bem o que quero ser quando for mais crescida: Bailarina.
Os meus pais acham mal, que não é vida para uma menina e o ballet não é futuro.
Não consigo entender isto... A minha mãe fez teatro e o meu pai foi tenor... Porque não me percebem?
Quem me dera fazer mais anos! Talvez uns doze ou até mesmo uns quinze! (Não, quinze não, já é ser muita velha).
Hoje faço anos mas a minha mãe obrigou-me a ir à escola.
E faz muito frio, não me apetecía nada saír da minha caminha. Sorte tem o meu irmão que ainda não vai à escola nem tem professora de matemática!
A professora de Ciências Naturais, logo no inicio da aula, disse-nos que hoje iríamos lá para fora, fazer uns buracos nos canteiros e plantar umas árvores pequeninas, que hoje é o dia da árvore. Que esquisito... nunca ouvi falar disto... conheço o dia de Natal, o dia do Pai, o dia da Mãe, o dia de Páscoa e o dia do meu aniversário que é hoje, 10 de Dezembro... (os outros dias também não sei a que dia calham... sei que a minha mãe faz anos no dia de Natal e o meu pai logo a seguir dois dias depois, e há sempre muitas festas seguidas...) O dia da árvore?
Será que há alguma árvore que faz anos no mesmo dia que eu?
A minha colega Maria Luísa disse à stora que eu faço anos e toda a turma me cantou os parabéns a você! Eu senti muito calor nas bochechas e fiquei envergonhada, mas também gostei muito! A professora até disse que este ano eu casava os anos, pois fazía 10 no dia 10... fiquei muito contente embora não tenha percebido muito bem.
Agora estamos cá fora, ao vento e à chuva miudinha que está a molhar-nos todos.
Só a stora é que tem uma pá, nós temos de escavar com as mãos e já tenho as unhas todas pretas e os joelhos estão com muita terra e algumas minhocas vieram espreitar. Que nojo!
Temos de enfiar estes pinheirinhos pequeninos e verdinhos no meio do buraco que fizémos, tapar com cuidado junto ao tronco para não abafar as raízes, mas ao mesmo tempo deixá-los seguros e protegidos para não voarem se vier uma tempestade.
A professora veio fazer-me uma festa na cabeça e disse-me que devía lembrar este dia para todo o sempre, pois que daqui a muitos anos vou encontrar naquilo que é hoje um rebento uma árvore feita, tal como eu, que hoje sou pequenina e daqui a muitos anos já serei uma mulher.
E que quando o fôr deverei escrever sobre este dia.

domingo, 9 de dezembro de 2007

sábado, 8 de dezembro de 2007

Onde estás?



Dói, dói cá dentro, amarrota-se este silêncio devasso e cortesão como uma casa em ruína onde o vento ultrajado assobia na posse a ira da tua ausência. Uma pedrada certeira, a palavra omissa de mão firme aponta no tempo o som distorcido do que não ouço. Imagino que imaginei.


Faço cálculos sobre tons que elevo para te conseguir escutar, mas o grito da distância abafa a tua voz, sinto-me surda tacteando nas horas perdidas risos que não acho. Imagino que eram só meus que dos teus não vejo a cor.


Dói contar os ponteiros baterem em números gastos nas nódoas negras e roxas de frases que perdi mal as estriei. Não cheguei a sentir o gosto do novo, a fechar os olhos de tão doce ciciar no aprender de te ouvir dizer aquilo que só imaginei.

sexta-feira, 7 de dezembro de 2007

Imagens



Olhou-a, talvez um pouco supreendido, um pouco pálido pela materialização, dimensão, espaço, andar. Olhou-a mais de perto, curvado como um bambu à força da frescura das águas. Assim já sabía a que cheirava. Cheirava bem, cheirava a ela. Apertou-a sem ternura, a roupa a amassar-se exibindo costelas, o nariz enfiado nos cachos de cabelo, a respiração a acelerar-se na cova do pescoço, esmagou-lhe os seios, a palpitação exuberante da arritmia, espremeu tudo de si para dentro dela. Depois olhou-a sem saber o que fazer primeiro: falar, beijar, de novo o abraço mas a velocidade da felicidade atirou-se às mãos e entrelaçou-se nos dedos como uma âncora. Voltou a apertá-la contra si, o sorriso a sorver os três beijos seguidos que recebeu e o atirou ao assento sem força.


- Que bebes tu?


- Eu bebo-te a ti.


(Invenções numa viagem de cacilheiro perdido no nevoeiro)

quinta-feira, 6 de dezembro de 2007

A mulher dos gatos



Não consigo recordar a minha infância sem me lembrar dela.
Creio mesmo que desde sempre e talvez muito antes de eu ter nascido, ela já morava naquele bairro, naquela casa de aspecto sinistro que servía de incentivo para as crianças comerem a sopa rapidamente.
A mulher dos gatos - como toda a gente a chamava - era intemporalmente velha.
Sempre a conheci de cabelos brancos a esvoaçarem fugidios de um chapéu de palha carcomido na aba, vestes negras como panos de teatro em decadência e uns socos de madeira gasta pelos passos. O mistério estava no anel que usava, faíscante no indicador direito, engelhado de anos que para mim eram mais de cem.
O grupo do bairro, do qual eu era um dos membros fundadores, tinha inventado uma história sobre aquele anel de pedra vermelha, que diga-se, atravessou os tempos até aos meus filhos e muito provavelmente irá perdurar até ao deles. Segredávamos que a mulher dos gatos era a mulher de um pirata famoso que ao longo das suas investidas em ricos barcos espanhóis muito ouro e pedras preciosas havía recolhido, sendo que aquela jóia era única e decerto, tinha poderes especiais.
Mas à noite, quando o sono não me quería, perguntava-me porque razão a mulher dos gatos não usava os poderes do anel para ter uma casa melhor ou comprar um chapéu novo ou até mesmo, comprar uns gatos sem defeito nem olho vazado, orelhas roídas e peladas no dorso.
É que a mulher dos gatos era a mãe de todos os gatos do mundo.
Falava com eles coisa que nunca ninguém entendeu, mas os bichos - acho - liam-lhe até a alma; ou então eram os poderes fantásticos do rubi daquele anel que os enfeitiçava e fazíam segui-la como um rebanho para dentro de casa.
De quando em vez, o bando do bairro acocorava-se, entre risos abafados e encontrões, junto ao muro da casa dela e munidos de seixos e gravetos mirávamos a pontaria aos felinos esparramados pelo jardim. Nunca entendi até hoje como a mulher dos gatos adivinhava que nós ali estávamos: surgía como uma estaca negra à soleira da sua porta, apenas o indicador guarnecido da jóia rara a apontar-nos a falta que ficara por cometer e claro, que dispersávamos de imediato, cada um mais assustado que o outro, uma e outra derrapagem na fuga, um joelho chorando um fio de sangue que rapidamente limpávamos à palma da mão e depois lambíamos, (convencidos nós) para que não nos faltasse a força.
E sempre foi assim.
Eu cresci e o resto da malta também. Só a mulher dos gatos parecía ter diminuído de tamanho. E mirrou tanto, tanto, que um dia desapareceu. E com ela os seus protegidos de quatro patas.
Rondámos a casa, cautelosos, no temor de ver aquele dedo enfeitado a espetar-se nos nossos narizes e accionando os poderes mágicos, transformar-nos a todos também em gatos.
Parecía mesmo que aquela mulher velha havía regressado para junto do seu pirata, pois passou um par de dias sem a vermos nem ouvirmos o adocicado dos miados.
Organizámo-nos e com uma estratégia infalível tomámos a casa decadente.
E foi uma surpresa quando nos deparámos com um interior ricamente mobilado, quadros enormes, um lustre gigantesco igualzinho ao de um filme de capa e espada, fofos tapetes que abafavam (felizmente) os nossos passos arrastados pela comoção e ansiedade da descoberta. Não havía um único pêlo de gato a manchar aquela limpeza; aliás, não havía gato algum, nem mulher dos gatos.
Estávamos desconcertados.
Pela escadaria tomámos o andar de cima, vasculhando cada canto e já muito afoitos e descuidados, escancarámos as portadas altas de um quarto.
Nunca me esquecerei daquela imagem, de ouvir o meu coração troar como um tambor dilatando as veias do pescoço.
A mulher dos gatos estava deitada numa cama que parecía ter sido feita de lavado com ela lá deitada. Estava imóvel e de olhos abertos.
Desatámos a correr como nunca o havíamos feito, aos gritos estridentes, cegos a achar a saída.
E de repente senti que me chamavam lá de cima. E não tive medo. E quem me chamava sabía o meu nome... Estaquei. Voltei a subir e a aproximar-me da entrada daquele quarto.
Cheguei-me à cama e em bicos dos pés espreitei para a face da mulher dos gatos. Os olhos abertos, serenos, apontavam para o tecto. Olhei no mesmo sentido do dela mas nada vi. Só vi o anel no indicador direito a brilhar como labaredas.
Os gatos, acomodados na cama junto ao corpo da sua protectora aquecíam-na e um e outro prestava-lhe honrarías com uma áspera lambidela no rosto ou nas costas das mãos. Não sabía o que se estava a passar mas tinha a certeza que a mulher dos gatos não dormía.
Eu só sabía que não tinha medo, que de alguma forma os gatos e o anel de pedra preciosa me protegíam.
Um felino gordo de pelagem tartaruga veio enroscar a sua cauda felpuda à volta dos meus tornozelos esmazelados. Achei que era um sinal para deixar a mulher dos gatos entregue à intimidade da sua familia, dos que a amavam.
Ainda hoje me pergunto porque razão, antes de a deixar e chamar os meus pais, avisando que ela morrera, lhe retirei o anel dos poderes.
Não fiquei com ele.
Enterrei-o no jardim junto à árvore onde ela se costumava sentar a ler e a vigiar-me. A mim e ao resto do grupo.
O gato tartaruga seguiu-me nas minhas manobras e depois de com os dois pés eu ter calcado fundo o tesouro da mulher dos gatos, ele acomodou-se naquela terra, as patas dianteiras dobradas por baixo do peito, a barriga gorda babando o pêlo farto cobrindo o nosso segredo.

(in Verdadeiras Histórias, C.G., 13/07/2006)

quarta-feira, 5 de dezembro de 2007

Os meus segredos (seis)



Ao som de um fado coimbrão embalo-me em memórias infantis de uma queima de fitas embebida em cheiro de vinho, negro de capas esfarrapadas, florões de papel-crepe oferecidos a uma menina sardenta.


Dedos minúsculos abrem gaiolas rechedas não de pássaros, mas de rãs e caracóis e também bonecas e uma imagem da Rainha Santa Isabel desfiando rosas de um regaço de gesso pintado a azul e ouro, entre desfiles de um pato branco de bico muito laranja atado por um cordel da minha imaginação.


E agora que vejo o meu passado a morrer aos poucos numa cama de hospital, sem dignidade e altura penso se tudo não terá sido apenas mais uma história das minhas, um devaneio, um delirio de tanta saudade.


(in Os meus Segredos, C.G., 30/11/2005)

terça-feira, 4 de dezembro de 2007

STOP



Passo horas em transportes, gasto tempos a ver a urbe fugir, o rio a vazar-se nas minhas costas, corro em duvidoso equilibrio para escapar à multidão, à enchente das manhãs de segunda trombuda e de olheiras do Domingo nocturno mal passado. Não consigo dormir nestas viagens, distraio-me nas conversas alheias e guardo o livro lido a meias pelo passageiro que tomba sobre o meu ombro, escrevo, escrevo muito de caneta em riste e mordiscada ou apenas na memória. Outras vezes apenas olho, ausente da posição sentada e dos braços cruzados a proteger o que trouxe de outras horas.

Hoje foi dia de outras vezes.

Lá no alto um quarto crescente luzidio a marcar a ainda noite, cargueiros perdidos no Tejo imenso de veludo azul indigo, neblina qb a meu gosto pairando sobre margens.

Foi então como um rasgão que o céu abriu a boca de cena e lançou para mim, só para mim, um clarão alongado muito amarelo e vermelho como o fogo quando consome a madeira e a ilumina de dentro. Todo aquele nascer rebentou-me no peito, na garganta, nas lágrimas que me distorceram a vista e à medida do seu crescer assim aumentava em mim uma fartura de coisa bela que me parava pela sua imponência.

Acho que hoje percebi o que são histórias de encantar. Não são donzelas nem dragões, nem corcéis nem principes. São apenas o que mora connosco e não nos damos o tempo para as entender.

segunda-feira, 3 de dezembro de 2007

Linhas

Talvez penses que uns simples traços, sombreados, diluídos na ponta do polegar te desenhem a minha forma de estar e sentir, um carácter até. Não me juntes a protótipos, séries, tão pouco tipifiques o meu gesto de pousar o braço e alongar-me sobre ele observando na ponta dos dedos movimentos independentes apenas porque me distraio nas conversas miúdas e deixo que a luz atravesse a minha mão. Faz-me de linhas finas mas seguras, pois sei o que quero. Nua porque sei quem sou. Mas deixa-me de olhar vestido que este trai-me a alma e algum pudor eu preciso.

domingo, 2 de dezembro de 2007

Encruzilhadas-Desafios

O Dias desafiou-me para participar neste "jogo" que consiste em compôr um texto (prosa ou poesia) em que os títulos dos dez últimos posts se constituam como palavras obrigatórias, recorrendo a outras para estabelecer o nexo da publicação.

ENCRUZILHADAS






"Daqui, do meu tamanho, à varanda do meu mundo, atinjo os sonhos e seguro-os nas lutas que todos os dias defronto com a realidade. Hoje pelejo em demandas, perguntas, questões em interrogação, podemos? Sim, podemos, devemos! Sonhar com campos infinitos, nuvens com forma de bichos, luas azuis, mares, rios, pintar crónicas do Tejo, inventar o homem novo, chamar-lhe Zé Grande, ensiná-lo a sorrir no obrigado, chorar quando amargurado...

Daqui, do meu sonho não caio.

Amo-te, ainda me falta dizer-te. E fazermos uma viagem ao centro do universo... de 92m.. Ou o tempo que quisermos enredar-nos por esta encruzilhada de palavras."

Os meus propostos são os indicados na minha lista de links, não havendo claro, obrigação alguma de aceitar este quebra-cabeças.

Ao Dias, um beijo.

Caio...




sábado, 1 de dezembro de 2007

Crónicas do Tejo (IX)



De regresso à minha margem tive a sensação de revelar um filme às avessas.
Talvez porque a caravela de Belém parecía mais de pedra do que o habitual, imóvel a encantar-se do rio que a beija mas limitada no seu sonho de arrancar âncoras e amarras, afogando essa mágoa na enchente do Tejo.
Vi imagens a passarem lentas, entrecortadas pelos pilares vermelho sangue desta Ponte que feita de carnes e metal, embala viagens de vai-vem, repetidas no dia-a-dia, inovadas pelo céu, enfeitadas pelas escarpas.
Sorrio-te Rio, ao ver a face projectada neste vidro, um carão franco semeado de ilusões. Afaguei a janela deste barco e senti o teu rosto cansado. Mas devolveste-me já no segredo da noite o tempero da ondulação e sosseguei.
Há quanto tempo te conheço eu?

(in Crónicas do Tejo, C.G. 18/11/2005)

sexta-feira, 30 de novembro de 2007

92m: Viagem ao centro do universo


Aço nas espáduas, nos trapézios pendurar o tremor da queda, a caixa de ressonância a poluír nos décibeis inaudíveis o coração afundado no cravar até ao trespasse. Cheiram-se abraços, pescoços enroscados na transpiração nervosa do 1º minuto. Olhos: disparos, flashes, mosaicos projectados do caleidoscópio da cor, forma, abertura e fecho, tamanho. No tamanho das mãos esconde-se a mão da situação, agarra-se o pulso, sente-se o latejar da veia tresloucada, cruzam-se vontades no zoom detalhista dos gestos, grão de pele, toque, aperto, aconchego aos moldes naturalistas que o corpo provoca. Dilue-se o cenário, afugenta-se outros ruídos, cava-se na voz terrenos sentidos, cevadas que amadurecem rápidas como fumos sugados ao alto nos minutos dilatados que sobram. Nada sobeja, tudo se decalca, confirma-se a necessidade do movimento na precisão da palma aberta sobre áreas arrepiadas de confessos desejos. Gosta-se, goza-se, tira-se prazeirosamente hálitos bebidos na boca apertada, desatada na correría de dizer o verbo. Tempo: 90m. Corrige-se o ritmo cardíaco, baixa o trem de aterragem. Os dois passageiros acenam, até à próxima.

quinta-feira, 29 de novembro de 2007

Podemos?



O que eu quería mesmo era que tu chegasses a fazer de conta que nem me conheces, tentasses a conversa comigo entre desculpe, desculpe, e eu a perdoar-te num sorriso traiçoeiro que me escapou da testa franzida, um café para quebrar o gelo, senta, podes sentar e até um bocadinho mais perto, sentirmos a que cheiramos os dois, como soa o canto da sala depois de te ouvir gargalhar, brincar com os dedos a andar por cima do tampo da mesa até descobrir a tua mão, na frase reticente o toque ao de leve no braço, pende para mim, olho-te nos olhos, de que cor são os teus olhos, não sei porque mudaram agora para o tom feliz e latejante da veia que se tenta prender na tua do coração, apontar a boca à tua e a tua respirar no aroma do querer, podemos beijarmo-nos se quisermos, podemos abraçarmo-nos forte se quisermos, podemos ficar juntos se nos quisermos.

Podemos fazer isto tudo, não podemos?

Fingir que nunca nos encontrámos e que aquele instante já era nosso porque o desejámos muito.

quarta-feira, 28 de novembro de 2007

Zé Grande - História contada em dois pedaços

(continuação)

Agarrou-se ao seu ferimento, os dois metros enrolados como um bicho-de-conta, a garganta aberta para o grito que não saía. Rolou de um lado para o outro e por fim, com nitidez, o céu, já muito azul, uma bola amarela lá no alto. Ficou assim, as lágrimas a salgarem a terra, misturadas com sangue que se empapava nos torrões secos. Viu um rosto debruçado sobre o seu. Uma aura azul celeste emoldurava umas faces brancas e uma boca vermelha repetía senhor, senhor, senhor... Quando acordou estava suado nos panos que lhe servíam de cama. O pai passara perto na carroça do Manel da Rabina e estranhara o silêncio da serra. Deu com ele de olhos fixos no céu e comentou com o companheiro que era o diabo do Padre que havía voltado para o reclamar. Levaram-no de arrasto até à carroça e no meio de bostas para estrume e uma cesta de uva morangueira fizeram o transporte até casa. A mãe coseu-lhe o pé, um ponto cruzado como fazía nos buchos e nas mulheres que paríam. Revezaram-se todos até ele dar acordo de si. Ficou por três dias deitado mas só falava do trabalho inacabado, guardando para si o rosto celeste. Estava certo que era a Senhora da Candosa que o havía visitado. Mas nada dizía. Era véspera do feriado e à noite havía baile. Tudo se abalou à serra, rodearam o coreto para admirar os metais polidos e desafinados, espreitaram a quermesse, conversaram com o Padre. Zé Grande, manco mas feliz, arrastava o seu tamanho aos ressaltos. Deram-lhe uma cadeira perto da roda do baile para que não perdesse o espectáculo. O povo levantava os braços e os rolos de poeirada não incomodavam ninguém que os giros e as voltas eram a coisa mais apetecida desde o ano que passara e de infortúnio já bastava a míngua da vida e o que acontecera a Zé Grande. Foi no meio do folguedo que ele de novo a avistou. Soergueu-se mas ao impulso da sua vontade a dor no pé segurou-o. E o Padre também, que lhe deitou a mão à camisa branca de mangas muito curtas para aquele tamanho todo. - Onde pensas tu que vais? Compostura, meu rapaz! Que aquela menina é a filha do Governador e está aqui para se curar dos pulmões! Que nem te passe pela cabeça olhar para ela! Tu vê lá o que arranjas à tua familia e a nós todos! Que o Sr.Governador Civil tem sido muito amigo das gentes da Candosa! Que o Senhor o proteja por muitos e bons anos! - e elevava o indicador à testa e ao céu. Mas a menina doente dos pulmões não o estava dos olhos e era impossível não mirar obssessivamente aquele homem tão grande e tão pequeno como o vira enrolado no chão. Recordou o seu grito dias antes, ao vê-lo enorme a derrubar mato e a árvore onde acabara de fazer uma promessa, como lera num romance de amor às escondidas. E como depois sentira um medo a tomar-lhe o corpo quando vira tanto sangue e o homem parecía ter morrido. Fugira a bom correr, as faces afoguearam-se-lhe e a enfermeira que lhe perdera a trela serra abaixo ficara encantada com aquele rubor. E o seu pai, o Sr. Governador Civil também ficaría. Zé Grande continuava de pé. Olhavam um para o outro. Tudo à volta tinha desaparecido. Juntaram as mãos e dançaram. Os outros afastaram-se mas os acordes eram um veneno que lhes dava alegria e depressa esqueceram o par. Bailaram muito e Zé Grande sentía o pé a crescer, uma baba quente a arder pela perna acima. Levou-a até ao assento e murmurou que já voltaría. O barulho era muito, os risos ecoavam a serra e ela não conseguía ouvir as palavras dele. Zé Grande disparou serra baixo, uma correría feita a uma perna que tinha de poupar o pé aleijado. Já nem lhe doía. Só vía o rosto da menina, o manto azul celeste da Senhora da Candosa a enfeitá-la. Atirou com a porta de casa para trás. Ninguém. Descalçou o sapato e verteu o sangue que se havía acomodado numa pasta de terra. Não reconhceu o pé, nem tão pouco os pontos cruzados dados sabiamente pela mãe. Procurou a caixa de costura e enfiou a linha grossa e negra dos buchos na maior agulha que encontrou. Bebeu do medronho do pai, goladas fartas que lhe escorreram até ao peito e afastaram o cheiro de suor. Cerrou os dentes e enterrou a agulha com força, unindo as duas metades da carne, espremidas entre sangue e uns veios brancos que teimosamente queríam fugir ao ponto. Acabou por vazar a aguardente. Enrolou um pano ao pé e com força ajeitou o trambolho para dentro do sapato. Bateu a porta e correu serra acima. Não há árvore que o não tema nem lenhador que não lhe louve a coragem. O Zé Grande salvou a serra da Candosa, que no dia feriado apareceu um fogo que não passou de fogaréu e todos o combateram sem problemas. Graças à limpeza que o Zé Grande fizera dias antes. Todos lutaram contra o lume menos o Zé Grande que ficou retido em casa, doente e a delirar. Agora é coxo. Até dá piedade. É que naquela noite na véspera da procissão, e do fogo e do feriado, quando o Zé Grande atingiu de novo a serra, já a festa havía terminado. E a menina havía sido levada pelo Sr. Governador Civil. Para todo o sempre.


(in Verdadeiras Histórias, C.G. Janeiro/2007)

terça-feira, 27 de novembro de 2007

Zé Grande - História contada em dois pedaços

Fechou os olhos e deixou-se ir, abraçada àquele torso vestido de negro e saias como ela. Lembrou-se que talvez fosse uma dádiva, um sinal lá do alto, a bendita, a escolhida, uma outra Maria. Abriu os olhos e viu a figura do Padre novo a afastar-se do seu corpo.
No dia seguinte, o velho Pároco Ramiro voltou, restabelecido das maleitas da psoríase, curado pela visita ao Vaticano.
O novo fora-se. Para todo o sempre.
Nasceu gordo como um bácoro.
A mãe esvaiu-se alagada nos sangues, no esforço de o parir e de implorar ao Criador que a mantivesse pura e casta. A parteira já com cinco para criar, condoeu-se da orfandade daquele bastardo e como boa cristã deu-lhe o peito ainfa farto do seu mais novo.
Ele deitou as mãos cerradas ao monte de carne e agarrou-se à vida.
Nada lhe faltara: Comida, parceiros de brincadeira, trabalho, pancada no lombo, um tecto, um pai e uma mãe. Nunca se inquietara a procurar a origem das suas diferenças: o nariz fino contrastava com o amontoado arrebitado do dos seus irmãos, o cabelo liso e negro destacava-se entre as cabeças cor de palha do resto da familia, mas o que mais se distinguía era a sua desmesurada corpulência e altura no meio dos corpos largos e atarracados do resto da prole.
Ficara Zé, de seu registo civil José Machado, por todos conhecido como Zé Grande.
E como os tempos eram duros, a lavoura o sustento e oito a comer, foi-lhe dado em destino o jus ao nome que ganhara: não havía árvore que o não temesse, lenhador que o ignorasse como valente a manejar a ferramenta e os seus dois metros de altura deram-lhe a lenda de ter sido gerado pela seiva de um eucalipto.
Gostava dessa história que ouvía de si.
Sempre tinha gostado de histórias, especialmente as que sua mãe contava. Também não conhecía outras, que a escola não o tinha merecido. Somava coisas por associação, por abate de troncos, por sobras de pinheiros. E bastava.
Não quería saber de quem o tinha deitado ao mundo, nem tão pouco como morrera: essa era uma história que já lhe havíam soprado mas que nenhum interesse lhe despertava. A sua familia eram os Machado e a sua vida cortar árvores.
Ía o Agosto perto do feriado e o calor apertava cada vez mais.
Aqui e ali chegavam noticias e fumo escuro de labaredas que comíam o verde. Bombeiros, só o nome lhe conhecíam que ali ninguém chegava nem quería saber. Era cada um por si a tratar das suas coisas e com a mão esticada ao Senhor Prior ao Domingo cobrindo o rebanho, tudo se salvaría.
Zé Grande, à soleira da porta falava para dentro, para a mesa onde já todos se havíam acomodado à ceia e onde ele não cabía. Tería que esperar que dois dos seus irmãos terminassem e lhe dessem a vez.
- Pai, com as festas tão perto e o lume a vir por aí, ninguém vai ligar!
O Pai mastigava e não respondía.
- Pai, tou cá com umas ideias...
O pai continuava a mastigar, olhou-o e arrotou.
- Pai, tou capaz amanhã de roçar aquele mato lá perto da Candosa...
O pai olhava o tecto ao vazar o copo de morangueiro.
- Pai, é que a Senhora vai passar pela Candosa e tenho cá um destes medos que se ateie ao manto... e depois vai tudo pró baile, ninguém quer saber senão da bailação!
- Vai lá Zé. Mas cuida que do nosso pedaço não fique restolho, que s'o demo s'apega! Nem sei! Nem sei rapaz! - E o pai tirou o boné com a mão direita e com essa mesma mão rapou na careca orlada de um tufo ruço.
Ergueu-se, espreguiçou-se e deitou abaixo os suspensórios. Recolheu-se aos fundos da casa.
Zé Grande, animado pelo consentimento do pai, saltou como uma mola e de empurrão enxotou dois dos manos, tomando o assento ainda quente do banco corrido.
O lugar do pai ficara vago.
Comeu numa pressa e pediu à mãe que lhe fizesse a cama. Quería dormir depressa para rápido chegar à serra e limpar o caminho por onde aquele andor coberto pelo azul celeste do manto da Senhora da Candosa havería de passar.
A mãe que o conhecía como um dos seus, pois que lhe havía dado do seu leite, esticou uma coberta no chão, e depois uma outra, que mesmo em Agosto, ele há noites de sereno.
Sorría para o seu Zé Grande. Entendía o que lhe ía na alma. E até já magicava numa história inventada sobre a Senhora a aparecer-lhe quando ele andasse no mato ruim. Zé Grande deitou-se nos panos: Não havía tamanho nem espaço de cama que comportasse um homem com dois metros.
Era escuro quando pegou no machado e na foice e se abalou serra acima.
Os olhos dominavam o breu e o barulho dos ralos indicava as bermas farfalhudas de fetos e amoras silvestres. Subía, subía sempre, uma e outra vez pisando o visco que soava a sapo chamando a fêmea. Quando atingiu o cume e a vista alcançou o coreto branco, as estrelas começaram a apagar-se e um fio amarelo riscou nos cabeços dos outros montes.
Tirou a camisa e atou-a à cintura.
Puxou atrás o braço direito armado da foice amolada e num silvo decepou o matagal seco e agreste.
Um pássaro largou como um eco as asas batidas em fuga.
E durante um tempo nenhum ruído se ouvía para além do aço implacável rasgando o ar até ao restolho teimoso que ficara de outros verões. Continuou sem cansaço algum até se deparar com um eucalipto magriço e esticado, bem no meio do rumo da procissão.
Primeiro atónito - que nunca vira ali aquela árvore - e depois desafiado na sua altura - um pouco acima do seu tamanho - largou a foice e de duas mãos pegou no machado, decidido a deitar abaixo aquele poste que se lhe metera ao caminho.
Mas quando dirigía o gume afiado ao tronco esbranquiçado do eucalipto, ouviu um grito e falhou o alvo.
Malfadada machadinha que lhe fugiu ao pé esquerdo e enterrou a lâmina no peito protegido pelo cabedal ensebado da bota. Mas fina do uso, escachou-se numa fenda e deixou o pé desarmado numa ferida esbeiçada.
Caiu por terra e naquele momento nada mais havía que o seu pé, todo ele era um pé, tudo na serra era a dor que sentía.
.
(continua)

segunda-feira, 26 de novembro de 2007

Lutas

Degladiaram-se na bravura das linguas e na agilidade dos nós dos dedos, nas gravatas corrediças das pernas e no encaixe dos braços. Só os olhos cerrados calcavam a sonoridade dos corações em marcha e quando a máquina aquecida vibrou conectaram-se, desligando do mundo-terra o tubo condutor da realidade. Auto-suficiência. Regeneração dos sentidos. Apologia do ovo. Artesãos de sedas proibidas. Há no crime do acto o supremo desejo do motor em combustão. Valorosos lutadores sem palavras descerram o olhar, abrandam no espólio deixando a certeza da desforra.

domingo, 25 de novembro de 2007

sábado, 24 de novembro de 2007

Obrigado

Assim que a olhei uma sensação de bonomia e paz preencheram-me como um liquido a encher uma jarra para receber flores. Não foi só do tom afogueado à volta do astro, uma combustão lenta de quem sabe o poder que detém quando admirado. Talvez dos abetos e do recorte das chaminés que acordam para o pequeno-almoço de olhos esfregados... ou será da serena aflição do retorno a casa, da pressa do ninho morno ao alcance da janela, a vertigem do mar a picar no nariz?
Vai dormir o dia ou acorda a noite?
Porque fui eu agraciada com tanta beleza num presente enquadrado numa fotografia que disparou apenas "estou a pensar em ti"?
Obrigado. Obrigado Vida.

(Foto de A.Pastor, debruçado na janela de uma qualquer casa da Parede)

sexta-feira, 23 de novembro de 2007

«Amo-te»





Crucificaste-me a sentir,

levemente acidulada no peso das aspas que apertas na palavra.

A cada prego marcado anseio-me ao som que quero ouvir.

Apontas - peço - bates - quero - afundas - sossego.

Cravas-me o aguardo.

Avessas-me na busca,

levemente nauseada na quebra das aspas que sufocas na palavra.

Suspendes - caio - tocas - sorrio - agarras - digo.

Hesitas-me o olhar.

A cada aspa caída deslizo-me ao tom de me quereres amar.

.

(in Toda a Poesia Despida, C.G. Outubro/2007)

terça-feira, 20 de novembro de 2007

A varanda-História contada em duas metades



(continuação)


Voltaram a pedir-lhe que colocasse o capacete de protecção que já, já íam começar os trabalhos de deitar "aquilo" abaixo. Uma paralisia atacava-lhe os movimentos na vontade de ver partir a história: é que aquela não era só uma história sua, era partilha de várias pessoas, de um tempo de história maior naquela rua, naquela cidade.
Ao primeiro embate da bola de ferro, nuvens de pó apagaram a visão da casa e um estrondo semelhante à trovoada seguido de outros de estilhaços de vidro fez temer quem assistía à demolição, pensando num castigo dos deuses de Olimpo. Quando a caliça assentou num véu branco e fino ele constatou feliz que a varanda permanecía intacta, só uma das colunas impedía que trespassasse a barbárie para o interior da casa e a devastasse dos seus segredos, da sua vida de vidas contida.
Sorriu sarcástico e murmurou "bem feito!".
Sentía-se de alguma forma vingado. Viu-se naquela varanda, do alto da sua adolescência, um bigode mal despontado, cabelo comprido em desalinho, um medalhão ao peito que diz "façam amor, não a guerra" que o pai já lhe recomendou que aquilo é coisa de rapariga, o punho erguido para o céu de Primavera, empoleirado no ferro forjado, a outra mão presa ao varandim descascado por ele em lascas e farpas, e os avós de dentro de casa a chamarem por ele, que isto de revoluções é coisa perigosa e tanta liberdade só vai dar mau resultado.
Gosta de declamar para os avós, mostrando o trabalho que faz com os seus companheiros, uma troupe de saltimbancos pelo País fora a mostrar o que é a alfabetização e a cultura. O avô abana a cabeça e suspira que isto é coisa de comunista... a avó gosta de cravos, sempre gostou e faz grandes jarras, manchando o salão de vermelho.
Sacudiu o pó das mangas do casaco, bateu com os pés, os olhos a arder pela saudade do avô que já se fora: lembra-o a fatiar grandes talhadas de melancia sangrenta, a dar-lhe o coração da melancia, a limpar-lhe o queixo miúdo com um lenço muito perfumado a lavanda que sempre tinha no bolso.
Atirou o olhar semi-cerrado à varanda e viu, nitida, a colcha de cetim negro a esvoaçar num dia de Abril para ver passar o avô uma última vez.
Limpou os olhos, a bola de ferro arremessada grotesca, mais uma vez à casa: esventrou-se o seu interior e água em repuxo começou a esguichar, afastando em correría os representantes da Junta e da Câmara.
Agora a avó regava com esmero os vasos de sardinheiras que por todo o ano floríam... vá-se lá saber como ela conseguía. Viu-a a acenar e a dizer-lhe para ir com cuidado, já ele homem, ela muito velha. Porém os olhos azuis continuavam a ter aquele fulgor de jovem, que ela tinha deixado em herança ao filho seu pai, mas não a ele.
Pensou que tinha pena.
Pensou que cada vez que a bola de ferro desmanchava aquela pirâmide de história, um bocado do seu coração se misturava com os torrões e a caliça e a água enferrujada dos canos.
Tirou o capacete e ignorou os gritos de aviso, dirigindo-se decidido à casa. Olhou a varanda, a pingar um choro que escorría entre as grades de ferro forjado, o mármore agora coberto de pó branco perdera a cor rosácea, nenhum vidro nas portadas das janelas, só um assobio desolador de vento que sopra por dentro da alma da casa a apossar-se.
Abriu a palma como a receber alguma coisa.
Um pau do varandim despencou e ele ágil tomou-o na mão.
Por entre os pedregulhos e destroços que minavam a rua, afastou-se, levando na biqueira dos sapatos rolos de pó que lhe embranqueceram as pernas.


(in Homens, Mulheres e Outras Coisas do Coração, C.G.-13/03/2006)

segunda-feira, 19 de novembro de 2007

A Varanda-História contada em duas metades



Deu dois largos passos atrás. Ergueu o queixo e apontou a vista ao edificio esboroado pelo tempo, um rosa salmão desbotado nas manchas de humidade bolorenta corroendo a fachada de meio até ao telhado, florões pintados com ar de fresco perdido encolhidos entre duas colunas dóricas enquadravam, apercebía-se, uma varanda de ferro forjado que havía sido majestosa e que muitos cortejos vira passar.
Os prédios contíguos havíam sido tapados com redes verdes grossas e protegidos por escoras, não fosse o impacto da gigante bola de ferro fazer perecer também os seus vizinhos. A rua fechada, sirenes, luzes rotativas, os Bombeiros, individualidades da Junta de Freguesia, um representante da Câmara, a Protecção Civil, a empresa de demolição e um guindaste e muita gente. Muita gente. Os que vivíam naquela rua e a idade permitia ainda os passos andados e os filhos dos filhos daqueles que outrora havíam tido lojas de comércio e havíam passado de geração em geração e os outros, aqueles que só vêm para apreciar o espectáculo e contar depois, a sua versão romanceada.
Trouxeram-lhe um capacete de protecção e recomendaram que se afastasse.
Ele só olhava. Sentía no peito uma pressão que o atormentava e ao mesmo tempo uma alegria que lhe parecía explodir quando olhava a varanda imponente e se vía ladeado pelos avós, num ano do meio de 60. O avô trajava de negro, camisa branca e gravata riscada, emblema da sociedade recreativa na lapela, chapéu de feltro; a avó estava muito elegante com os seus olhos azuis de safira, ataviada num vestido às bolinhas e até tinha posto o anel de pérola do seu noivado, reservado para ocasiões especiais. Ele estava eufórico, os calções de veludo azul marinho davam-lhe frio nos joelhos mas pouco importava, pois aquela bandeirinha de Portugal agitada freneticamente na sua mão dava-lhe todo o calor que precisava. Já sabía o que tinha que fazer: quando o Sr.Presidente passasse à varanda engalanada com ricas colchas de cetim ameixa, só tinha que que gritar "Viva Portugal! Viva o Sr.Presidente!". Pulava, pulava muito, tentava enfiar a cabeça entre as grades de ferro forjado mas a avó estava sempre a puxá-lo pela jaqueta e a mandá-lo ficar quieto. E o Sr.Presidente que não aparecía e as flores que cobríam o chão da rua principal estavam já a perder o viço e até o céu, de repente, se pôs escuro e o avô temeu que chovesse. Começou a impacientar-se e para passar o tempo nada melhor que tentar acertar nas cabeças dos que passavam lá em baixo, com um cuspo puxado a custo para a ponta da lingua, formado numa pinga branca e espumosa que guardava até o alvo estar na mira da sua boca. Acertou em muitas cabeças, a maior parte delas cobertas de chapéus mas também algumas completamente calvas, que fizeram os seus donos olhar para cima, para espanto da avó e um grande safanão nele, que agora o avô não estava para brincadeiras e já tinha proferido um "mau-maria" muito azedo.
Que aborrecimento! O Sr.Presidente tardava e ele, prisioneiro das boas maneiras impostas, aborrecía-se... começou a descascar o varandim de madeira com alguns furinhos aqui e ali, e naquele entretém de sacar lascas e farpas lá apareceu o homem que todos esperavam.
Foi uma festa! Ele foi o que gritou mais que todos, o que mais rápido acenou a bandeirinha mas o Sr.Presidente lá embaixo na rua florida, só levantava a mão direita e meneava a cabeça gentil como uma marioneta para as alas formadas, nunca olhou para ele, lá em cima! Isto deixou-o furioso e segregou uma grande cuspidela que embrulhou na ponta da lingua e catapultou em direcção às costas do homem!



(continua)

domingo, 18 de novembro de 2007

Cá de dentro

Na horizontal para que não caiam de si palavras, está cheia delas, plena, quase transborda. Por cada vez que o coração bater uma imagem eclode, um sentir forma-se, uma palavra tenta o escape pela comissura dos lábios, escorrendo fininho e transparente seguindo o rosto abaixo, deslizando pelo pescoço engrossando em riacho, uma pequena poça nos ossos côncavos junto ao encaixe do ombro, encheu, segue caminho desviando pelo vale ao centro dos seios e deposita-se em mar no abdómen. É no ventre que aninha as palavras. Que as aquece e protege. Que as dá a quem suporta sentir a sua força e o seu valor.

sábado, 17 de novembro de 2007

Fôlego


Quero dizer-te simplesmente sem pontos uma virgula sequer mesmo que a respiração me fuja e a voz me enfraqueça ou tu tentes calar-me com a mão suave na minha boca ou os teus lábios se apertem num shiu e até os que passam parem e escutem e depois vão contar ainda a outros que decerto juntarão mais do que aquilo que ouviram que no finito do tempo em que eu acabo de proferir estas palavras estas palavras serão cinza do que sinto pois tão vivo é o lume que me consome além-mim que temo que ao dizer-te simplesmente quanto me és sustendo o inspirar e o expirar a sufocar a combustão tu tentes falar e me digas também o que guardo precioso no silêncio que honramos.

sexta-feira, 16 de novembro de 2007

Cartas ao Poeta (VIII)

Meu Poeta,


Hoje foi dia de casulo.
Daqueles em que nos enovelamos todos, em fisico e em espirito. Olhamos para dentro de nós na tentativa de descobrir o que falhou, o que ficou esquecido. Questionamos as facturas que a vida nos apresenta e não nos conseguimos recordar que compra foi essa que efectuámos para agora aparecer uma conta exorbitante de penas e suplícios.
Hoje foi dia de passado.
De lembrar dos nossos erros, de constatar que preocuparmo-nos com ninharias é uma perda de tempo, de reavivar os nossos mortos neste tempo presente.
Hoje foi dia de calmaria.
São hoje as horas de aceitar aquilo que a vida nos oferece e tão só apreciá-la.
Afinal, até nem terei tanta queixa...
Hoje foi dia de ti.
E como me sinto maior de existires.


Daqui um aceno, onde estiveres vais vê-lo e será o meu sinal para o teu porto seguro.
Um beijo, para saberes que me fazes falta.
.
(in Cartas ao Poeta, C.G.-16/08/2005)

quinta-feira, 15 de novembro de 2007

Tua





Elasticamente

te consagro em ventre

meu

guardado veneno que me

implora

afago no solto intervalo da tua ausência

procura

meu

consolo em orvalhos sonhados

minutos tardios implorados no vestido

caído na força do contido

chão

meu

desejo, minha paixão


(in Toda a Poesia Despida, C.G.-Novembro/2007)

quarta-feira, 14 de novembro de 2007

Porquê



Por mais de uma vez perguntaram-lhe porque o fazía assim. Porquê? Porquê haver sempre tanta explosão contida de sentires, o vidro das lágrimas, punhos, nariz ao alto a farejar, sangue incolor, palpitações na garganta, premonições, um adeus, um afastar, amores impossíveis de amar?! Tão mais feliz e bonito juntar um e outro, dar as mãos, suspiros em forma de coração, beijos, sol e Primavera... sería um final a deixar todos de sorriso rasgado e dormirem descansados uma noite merecida. Ele encolhía os ombros, banalmente, na impotência da fórmula descoberta atingir no comezinho da repetição de gestos e despertá-los para o outro mundo, filtrado, coado no paralelismo que o eco tem como ressonância do que se diz, do que se faz, do que se quer. Algumas vezes tentara, em nota de rodapé, explanar a sua teoria de que todo o acto tem um reflexo em simultâneo como a imagem de um espelho e que aqueles sentires controlados por si nas suas narrativas desenvolvíam outros actos mais libertos, gritados, tão verdadeiros que só sentindo. Ninguém entendera, retiraram-lhe o mérito da idéia e chamaram-lhe demente. Adoeceu nas palavras por inscrever e perdeu-se em febres delirantes que o atiraram para a duvida da sua própria crença. Tantas vezes se perguntou porquê que a interrogação atirada ao reflexo o fez nascer de novo como mulher.

terça-feira, 13 de novembro de 2007

Quarto Poético



Para lá do vidro ninguém vê nada. Para lá dos panos que vestem de longo ninguém sabe nada. Podem adivinhar, inventar cenas de amor, tragédias em vermelho e até o escárnio do ronco. Mas não sabem.

Não imaginam que na noite de fora dás-me luz por dentro e o sol e a lua se põem e nascem quando nós queremos, a sede bebes-me da boca e no dedo passado na sobrancelha riscas a vontade do sorriso silencioso e morno como se desenhasses a criação de mim. Não sabem que não me dizes minha querida nem eu a ti porque sabemos que querer é o que nos temos nas palmas abertas de tanto dar e palavras, tantas palavras, tão pouco ruído para a tempestade que troamos.

Depois o sossego. Apenas a coisa invisivel que paira no ar, cheiros que se agarram às paredes como graffiti, assinaturas de nós, uma alma una espremida entre carne e sentido.

De lá para cá à distância da transparência do vidro da nossa janela há uma muralha intransponível que abafa mundos e só a breve brisa no nosso sono nos lembra que já há cem anos assim era.