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sexta-feira, 29 de maio de 2009

Atrasos

Estou esbaforida, atrasada, eu que tenho o culto da pontualidade deixei-me rasgar nas horas por coisas de caminho, pequenas distracções que me prenderam a atenção e conseguiram desviar os meus olhos pelo tamanho das cores ou pela simplicidade do colorido gigantesco com que a lupa as transformou. Ou terá sido a importância a lente aplicada para ver sem cegueiras mentais o que de facto existe e o que de facto se transforma em imagens quando a expectativa é tão só um exercicio que acomete o espirito descalço e desataviado de filtros.
Atrasei-me, mas não estou certa de que se tivesse chegado no tempo esperado valería a pena o cumprimento. Ou o que se esperaría de mim. É que de mim pode esperar-se tudo, tanto, que até o nada pode ser. E já será alguma coisa. Mau mesmo é quando não me ralar se chego ou não. Ou será essa a importância das coisas e o que me merecem.
Já cheguei, mesmo que atrasada cá estou, e assim tomo conta disto, época dificil esta, muitos incêndios e a árvore tem sede. Esta merece tudo o que lhe sou.

quinta-feira, 14 de maio de 2009

O fundo é (sempre) branco

Agitou o pincel no copo de água, do ocre esvanecido uma espécie de fumo liquido criou ondas e fiapos e por fim tingiu uniforme numa cal parda despojando-se no segundo de toda a intensidade que a cor tivera no incolor. Ali, restringido a um mero copo de água morrera.

Tentou o vermelho. O mesmo, e o copo agora um pantano esverdinhado e opaco.

Voltou à aguarela enquanto o papel ainda estava húmido e em vez de tingir o pincel no redondo das tintas duras mergulhou-o no copo que fora de água limpa.

Encrespou-se, entre o verde fundo e o branco inchado alteraram-se as moléculas e sem que pudesse ter mão toda a água lhe saltou ao peito e o salpicou no rosto obrigando os olhos a cerrarem-se pela violência da tempestade. De seguida os gritos do encarnado, uma submersão entre destroços, bóias e braços e pernas e ainda bocas que pedíam a salvação numa nau esfrangalhada entre o ocre e o verde.

Quis agarrar o papel, enrolá-lo, amachucá-lo entre os dedos mas por cada investida mais a água que o empapava lhe subía ao nariz e impedía de respirar.

Olhou o copo antes do braço descer ao fundo. Limpido, cristalino...



(Telas, C.G. Março/2007)

quarta-feira, 13 de maio de 2009

Cabeças

É dificil concentrar toda a força no acto de quem projecta ao longo do braço o mundo, os mundos, tantas outras galáxias que não são do conhecimento do humano, despejando imagens encriptadas em letras e fazer entender(-se) que por vezes esse gesto provém de um monstro onde várias cabeças se degladiam para tomarem vez e voz. Mais ainda se cada um desses guerreiros é exímio no manejar dos argumentos. Maior a dificuldade se tem a habilidade bastante para usar do sentir como escudo partindo claro, para o contra-ataque.
É que para escutar um nem sempre se atenta aos demais e ou cai-se num amadorismo remendado ou então - e fatalmente- cortam-se as outras cabeças impedindo a torneira pragmática de pingar uma gota mais que seja.
Mas o que dói mesmo é que se o mal/bem for cortado pela raiz também a nossa cabeça rola e muda a partir de então nessas bocas que expelíam letras, inevitável será sentir que se é gente pela metade.

quarta-feira, 6 de maio de 2009

O estrangeiro

O mapa dobrado como uma concertina estava de pernas para o ar, mas o dedo sabía perfeitamente que era aquele o círculo que quería, aí era o seu destino. Pedía desculpa ao abordar, tentava não enrolar a lingua naquelas palavras estranhíssimas mas só à terceira vez é que percebíam o que pretendía.
Costumavam responder-lhe aos gritos e como não entendesse as direcções que lhe apontavam mais alto ainda lhas dizíam de peito encaminhado para a rua que devía descer e de costas para ele.
O homem parou, olhou o mapa, o dedo e o círculo, a cara do estrangeiro e abanou a cabeça afirmativamente, o outro sentiu a angústia menos acentuada.
Seguiram ombro a ombro, o estranho na cidade tentando falar a lingua nativa do outro, albardando-a com exclamações no seu próprio idioma, o outro sorrindo, sorrindo e concordando.
Chegados ao ponto pretendido o homem da cidade agarrou o pulso do estrangeiro, a outra palma abriu-se no gesto largo do que se oferece.
O outro sorriu, não sabía palavras melhores para agradecer o que tinham feito por ele para além das do dicionário de bolso. Era pouco.
Agarrou entre as suas a mão daquele estranho que não proferira palavra durante a caminhada, sacudiu-a, apertou-a, o outro sorriu, tocou-lhe no ombro e libertando a mão disse-lhe em linguagem gestual que era altura de ir à sua vida.

terça-feira, 5 de maio de 2009

[Fera privada]

Antes de fechar os olhos suspira longamente, muitas vezes assemelha-se a um vapor escapado de uma panela sob pressão. Espalma-se mas o corpo tem o ar de gigante a contrastar na quietude do aveludado da pelagem e as orelhas que tremem pendentes ao ritmo do bater do coração demonstram uma quase infantilidade que não passa, parece nunca passar o tom de alegria.

Algures sonha. Rosna baixinho. As patas dianteiras agitam-se, distintamente as almofadas negras e redondas mostram o relevo do calejado entre um pelo branco, sedoso, macio e felpudo.

Espreguiça-se, tasquinha, ajeita as bochechas que cobrem dentes serrilhados e outros de presas aguçadas e no entanto a mansidão, a barriga que pede a mão acolhedora.

Abre os olhos, encara-me, chamo-lhe o nome, a cauda abana molemente, tem sono, encaixo-me nele.

Adormeço no dorso do lobo e sinto-me salva.

segunda-feira, 4 de maio de 2009

Os dois mundos

Impõe-se à cabeça a condição derradeira de não ultrapassar a dissertação para além do aceitável, o que quer dizer -e porque aqui é o virtual- que o texto não terá mais de 2 minutos de leitura, poderá conciliar-se num sumário apenas pelo enviusado do olhar ao último parágrafo e o encaixe de algum eventual comentário será na medida das letras comidas certeiro, se bem que nestas coisas da sensibilidade é tudo muito subjectivo.
Mas se este mesmo apontamento estivesse inscrito na planicie branca -analógica (será???)- aí a atenção sería refém e a custo pedir-se-ía que o fim se evitasse. Bom, ninguém leva a sério um escritor de livros de 20, 30 pag.s, isso é quase um catálogo.
Passado este parentesis, começo:
Os dois mundos.
Esse tão ansiado quanto utópico, o mundo desejável.
Não vou escalar razões nem tão pouco sonhos, há-os no colectivo e depois aqueles que guardamos na íntima vontade e alimentamos para não deixar definhar até ao fastio completo.
O outro mundo é a escrita.
A maravilha que produz sensorialmente, a capacidade de nos objectivarmos e saltarmos muros mais altos que todo o nosso tamanho, a capa com que nos cobrimos e desnudamos. Fornece energia a quem a executa, fornece energia a quem vampiricamente obtém de graça uma transfusão de sangues novos e fluidos que nutrem o corpo, a alma.
E pronto. Era só isto quería dizer, os dois mundos. O desejável e o da escrita.

domingo, 3 de maio de 2009

Shhh...

Não digam nada.
É um despudor haver tanto sol e o calor ter-se lembrado.
Recorto o dia do calendário, deito-o fora, vou para dentro do tronco da árvore e fico por lá até passar hoje.
E mandem calar a brisa, nada de cantorias entre as folhas.

sábado, 2 de maio de 2009

Bagagem

Faço de conta que te sentas comigo. Podes tomar o que quiseres. Conquanto que me olhes o bastante para não te esqueceres de mim quando te fores embora e quando os anos passarem sem nos voltarmos a encontrar.

Vem o empregado, faço de conta que não queres nada, que te chega o eu estar aqui e que tudo o que te alimenta neste instante são as palavras que sabemos não poder dizer, essas são sempre as que se guardam porque as sabemos mas não queremos violar os seus segredos.

Quero que leves também o ruído, as cores e os cheiros, as velhas senhoras do chá das cinco, os homens sós atrás dos jornais e a luz. Aquela luz filtrada que se estica como um tapete quando abrem a porta e entram, entram sempre, também devem trazer alguém para fazer de conta e acompanhá-los.


A partir de agora não faço mais de conta, não vou voltar a lembrar-me de ti.


Hei-de aqui vir mais dias, sento-me aqui onde agora estamos. Talvez escreva. Mas não te hei-de inventar em linhas nem farei descrições sobre como és ou começarei os parágrafos por este dia em que te peço para me recordares para sempre.


Talvez escreva... Ou não.
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(in Eu na Versailles, escritos improváveis, C.G.-Novembro/2005)

sexta-feira, 1 de maio de 2009

2

Já agora digo-vos: E vão dois. Ainda. Apenas dois séculos esse é o peso que sinto às costas, mas também a frescura do inicio dos ensaios, tanto a descobrir, tanto a desvendar, tanto do exigir-me e extremar quando a fronteira mora onde eu quero.
Só 2 passos, umas vezes a pulos, outras de pé em riste, muitas, muitas vezes em pontas.
Passos que aproximaram mãos às minhas, olhos, o calor da pele, o som de risos, letras que se emaranharam noutras e formaram palavras com redobrados encantos.
Faz 2 anos que aqui cheguei. Plantei uma flor depois uma árvore. Já me arrependi e já bati palmas, já perdi a vontade e voltei com a vontade que há em mim, já fui eu e outros e outros de mim voltaram a ser um eu, que não eu.
Por isso, amanhã estou cá de novo. E depois também. Enquanto me fizer feliz.