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sexta-feira, 31 de julho de 2015

Cidade [só para mim]



Todos querem partir, a urgência da saída na voracidade das horas anseia-lhes os pedidos, as exigências, hoje é o dia em que se afastam do Ano e de cabeça atiram-se ao mês por baixo da folha de calendário última, o próximo, o imprescindível e absoluto tempo em que extravasam o corpo e a alma, uma velocidade a empacotar pertences e desnecessários, escoa-se a cidade, entopem-se enfileirados ao mesmo sentido, tudo o que têm é o horizonte das costas deixadas ao cumprimento, agora obrigam-se a chegar, a entrar.
Calcorreio passeios pela cidade que se vai vazando emagrecida pela fuga, quase cheiro de desastre na insanidade do ruído, também eu hei-de entrar, mas num regresso aqui com espaço, ar, férias das férias dos que se precipitam no atropelo do ir, ruas de novo alargadas pela ausência de nada mais que caminhantes, descobridores à mão de semear, sem pressa, apenas assistindo o dia a vir e a descer raiado tricolor nas águas do Rio.

quinta-feira, 30 de julho de 2015

O livro negro dos homens (dezanove)



 
Sempre apreciei aqueles que devotamente defenderam as suas ideias, lutaram por elas, não de uma forma obsessiva mas porque nos seus argumentos as sustiveram como objectivo de vida, espada de abrir caminho enfrentando tudo e todos.
Mas nunca entendi, por força dessa vontade, que tivessem de ser sacrificados à mão de outros homens, vindo mais tarde a constatar-se terem sido os primeiros a fazer história para que outros beneficiassem desse empenho na alteração da visão da sociedade. Da razão.
Chamam-lhes os grandes nomes da história ou os que fizeram história, mas folheando páginas só encontro homens e mulheres na grande maioria, mortos e enterrados como criminosos sem terem tido a oportunidade de ver essa razão vingar para que os que os baniram, preguiçosamente, pudessem usufruir. Depois a adoração, a contemplação ao esqueleto, o monumento a tão bons serviços nas palavras inscritas na pedra fria, jamais esquecido entre os seus pares.
 
 

(Almada, Jan/2012)

quarta-feira, 29 de julho de 2015

Gaiolas


 
Volta tudo, como num encantamento volta tudo: A beleza, o fascínio, o saber sem se saber, o saber sabendo-se que nada de mal acontece mesmo que não se saiba porque aqui tudo se sabe, as sensações de vertigem e desequilíbrio e as de comando e de voo controlado, a vida, a morte, a vida de novo sem a morte.
 
Voltou tudo como há muito não chegava, porém na mesma dose maravilhosa, tão igual desde infante em que a barriga rasava o solo para logo na veneta da inclinação do queixo, do nariz, disparar ao alto do miolo do edifício e avistar o caracol das escadas a confundir-se num movimento circular de aperto pela ilusão dos olhos mirados ao núcleo.
 
Até no sonhar a incredibilidade do real a pregar partidas, malevolamente, o estático a armar-se em forma vertebral, desconfiada olhava a ponta dos meus pés sem base e mergulhava suicida no olho cego que aparecia no meio das escadas animadas, furava-o desafiando o protagonismo, acabando morta num rés-de chão vermelho do meu sangue.
 
Voltava eu, toda, sacudida, de pé, de pés caminhantes, mas já sem voo encantado. E a escada é sempre a mesma, madeira encerada, de caracol, larga e sem serventia a porta alguma dirigida a um tecto branco em abóboda de vidro de onde nunca consegui saír.

terça-feira, 28 de julho de 2015

O céu da boca (Palavras Reencontradas) 10




[...]
 
Como se não fosse suficiente os de fora, também os próximos me olhavam suspensos no meio-sorriso de quem duvida da verdade, da mentira, de uma invenção, cruelmente da sanidade mental, rebuscando reminiscências genéticas a parentes conhecidos ou até mesmo desconhecidos, mas de quem tinham ouvido falar.
Estava claro, tudo explicado.
A loucura é como os males de pele, difíceis de saber quando aparecem, porque aparecem, complicados de atinar na resolução e pelo exemplo, atacam gerações depois da 5ª.
Quiçá 15ª, pensei eu, humor que rapidamente troquei pela incredulidade, silêncios que ofereci pela boca fechada cheia de adjectivos de qualidade, maus confesso, a ignorância do tempo das bruxas a queimar-me a palma das mãos quando os punhos se cerraram segurando-se num e noutro a conter-se.
Mas a redenção chegou pelo alivio das estórias, uma e outra, gentes do meu sangue de quem eu nunca ouvira contar tais pormenores, e ainda as mesmas estórias em versões distintas, palavras desfiadas que recolhi de olhos arregalados e palato confortado.
O meu mal de pele tinha encontrado um unguento maravilhoso, uma banha da cobra que estes vendedores alardeavam para se venderem a si, mas quem lucrava com os seus devaneios era eu, apenas eu.



(in O céu da boca (Palavras Reencontradas), Maio 2014)

segunda-feira, 27 de julho de 2015

Pina (27.07.1940 - 30.06.2009)

 

 
Outra vez por favor.
A partir do segmento em que caio e digo que não quero levantar-me mais, não vale a pena, as pernas partidas afasto-as para o lado para que ninguém veja tão pouco de mim, e sem pés... agarrados às pernas inúteis, que farei da vida, agora, para o resto que não sei quanto dura?
De novo, a partir dos passos em que a força é maior que a dor e dos braços se fazem pernas e as mãos ensinam aos pés passos que endurecem as pernas até estas, impermeáveis, nunca mais saberem o que é dor. Só passos, só linhas desenhadas por mãos que se acham leves a dizer.  
 
 


Nunca aprenderei, estou sempre a saber mais e nada me chega.
Os pés ensinam as mãos e estas florescem como se a Primavera fosse por dentro da minha cabeça, digo mais do que julgo saber, abraço mais nas linhas leves do que conto saber escrever, por cada passo, passos imitam o quanto da vida já passou e no entanto, tudo parece novo, tão novo que me acho incapaz de os saber dançar.
 
 


A partir daqui, por favor, da repetição em que erguida cresço e cresço, pés que me impulsionam à ponta dos dedos das mãos onde toco tecto, céu, linhas dançadas na pele dos abraços na entrega toda à vida. Não deixei de sentir dor, tão precisa nas pernas para desenhar caminhos novos, caír, levantar, chegar sem chegar para chegar sempre, sem fim, nada acaba, pés ensinam mãos.
 
 

domingo, 26 de julho de 2015

Demais




Demasiado barulho, demasiado sol e calor, tanta luz, demasiada água e muito salgado na boca, nos olhos que ardem, demasiada gente, demasiada pele, demasiada nitidez às imperfeições da carne que não deixam transparecer a nudez das mãos, do coração e do riso, da mistura das lágrimas com esta sopa de mar, o que é teu não será meu e todos se banham comunitariamente aliviando enganados que as marés hão-de misturar tudo sem saber o quê a quem, restos fósseis apanhados na morte da areia em conchinhas de segredos sem a etiqueta do nome, demasiadas, demasiado ardor a descarnar ombros carregados, despejos no regressar cíclico em demasiados ansiares, enquanto dura é-se demasiado feliz.

sábado, 25 de julho de 2015

O tempo do silêncio

 
 
Quem procura acha, mas a verdade é que quem não procura também encontra. Nada intencional, estiquei os elásticos à pasta castanha quase a estourar [que raio é isto, não me lembro desta pasta], o sobrolho decerto a enrugar-se pela interrogação e ainda mais carregado quando a sonoridade da resposta atravessou costas, peito, ecoou paredes e me socou na cara:
 
- Papéis teus, coisas escritas por ti, sabías disso não sabías?
 
Não minto, não vou dizer nada, vou fazer de conta que já estou absorvida no interior da descoberta sem ser uma surpresa, claro que sabía não me lembrando de nada, escondo o nariz nos cabelos e deixo que o tempo desanuvie o tempo de responder, esquecer por esquecer será o da resposta que o meu é um vazio total, levanto folhas e leio algumas frases, não sei o que é, não reconheço nada para além da cor habitual com que escrevo mas desmaiada pela absorvência do papel e do escuro do segredo guardado [haveria de ser segredo, pois então! e tão bem arrecadado que nem mesmo eu o sabía!], as letras desenhadas na forma do costume.
Leio, leio, nas mãos sinto as palavras a falarem.
 
A pergunta não foi repetida. Não minto.
 
- Isto não é meu. Foi-me deixado, mas não é meu.
 
[O tempo do silêncio crava-se no tecto e deixa manchas de bolor, temo que o candeeiro que ele tanto gosta caia, mais que mil pedaços de vidro muito fino, irreparável.] O que nos olhamos é o que encontramos, ele sabe.

sexta-feira, 24 de julho de 2015

Mayo a Madrid - 5

 


Dia intenso, palavras mais que ditas as que traduzidas nunca são a revelação do trabalho, relatórios, números, comparações, compromissos, um aperto, há chuva na sala de reuniões, no rosto pálido e contido, como somos bem comportados.
Tiramos retratos para a posteridade dos que talvez nunca mais venhamos a encontrar e no acaso do momento, reconheço com quem nunca falei, quem nunca vi, um tropeço no elevador, Lenita, Anita, Ai Dios! E há mais neste abraço que nos esmaga do que verbos a significarem, gargalhadas, mãos que se seguram francas. Besos, besitos guapas, guapíssimos, de abalada até ao hotel a chuva secou-se numa saudade antes da partida.
Sergi espera-nos para o jantar.




 
 
O cenário é fantástico e aguarda que nós próprios o completemos, uma amalgama que se transforma numa comunhão de sentires entre paredes, iluminação, sabores, sons e bem-estar, fazemo-nos parte do VI Cool. Um tapete de azulejos aos pés e na parede ao fundo a lembrar os nossos Arraiolos quebra o rosáceo marmoreado de alguns painéis a contrastar com a pureza do entrançado de faixas de madeira que libertam focos de luz sem agredir conversas mais íntimas aos que procuram um tête-a-tête. 
O que passou do dia foi-se, o dia era agora, o mundo os meus companheiros, os meus sentidos todos dedicados em absoluto à mesa na profusão de cores e aromas.
 
 
 
 
Desde as patatas bravas ao atum fumado ou às sardinas - as nossas queridas sardinhas - em tomate fresco ou seco ou com azeite, às múltiplas ensaladas - de endívias, de alface, de fundo de alcachofras, de beringelas, de queijo de cabra, de ervilhas de quebrar até uma versão de hambúrguer em bolinhas sem serem almondegas tudo pode ser adjectivado de espectacular.
E ainda a cerveja, de uma leveza absoluta, sempre viva e extra-gelada.
 
 


Mas não é só a comida que nos satisfaz no acto de reparar a saciedade do apetite. Ou digo eu, essa necessidade que tenho do belo, em olhar as cores e a forma e me sentir feliz no relance de uma travessa de acepipes, porque a estética me alimenta.
É fundamentalmente, esta capacidade que os Madrilenos têm em si de tudo tornarem possível, a sua disposição à vida, la movida, o sorriso com que nos ouvem e a forma com que transformam o nosso desejo numa realização, o tanto se gostarem capacita-os à concretização para os outros.
Bravo Madrid!


 
 
Fotos by me and Serhat from Turkey


Maio/2014

quinta-feira, 23 de julho de 2015

Olhar com vista sobre o Rio (28)



Do alto como antigamente, como menina, como tu novo à minha descoberta, já como amantes, já eu perdida de olhares pendurados em ti sem saber chamar o nome a que hoje não digo Tejo mas silencio nesta força que nos une o segredo de te amar tão profundamente que regresso ao tempo de esquecer palavras.
 
Contemplação.
Ou engano meu, gostas destas fantasias em que te adoro, mas debruçada vejo a minha imagem de sapatos na mão, peito a explodir e um não saber o que me vai só de te olhar, naquele tempo contavam-me histórias do outro lado e eu adivinhava-me os incómodos por temer o Cristo-Rei a afogar-se nas tuas águas.
 
Mentira, era o meu não saber dizer, hoje o meu não contar o teu nome, afogo-me deste então neste sentir que peço, salva de mim mesma.


(in Olhar com Vista sobre o Rio, 2012)
 

quarta-feira, 22 de julho de 2015

Pedidos



Disponho-te na minha frente. Dou-me a essa permissão dando-te autorização para estares, esse verbo de ser só tem condição enquanto a existência da tinta espera o meu pedido, o empregado ocupado de um lado para o outro faz-me sinais que entendo ter-me visto, virá, não sei quando, é mais do que aquilo a que te destino, hoje dou-te falas quando rasgar um travessão para diálogos e sinceramente não sei se é esse o meu apetite. Sabes como gosto de paladares fortes, mas não deves responder , é tudo retórica, apenas sentado é o bastante, talvez demais, talvez um estorvo, talvez o empregado já tivesse abreviado a sua aproximação se não estivesses.
 
Olho para ti.
Não sei que te achei. Que me achaste para eu te achar, vejo-te tão pequeno, de olhos míopes, testa curta e mãos desajeitadas que me desconheço. Afasto-te, os meus olhos arrastam a tua cadeira para o fundo ermo da sala, tão lá longe que já nem pertence aqui, mas ainda te avisto, é preciso que te mantenha sob mira para que saibas quão diminuto te escrevo. Não há travessões, essas pontes que se traçam para respirar dizem palavras de apertar ou de acenos, tu não agarras nem uma nem outras.
 
Finalmente, o empregado.
Não chego a fazer o pedido. Traz o meu café duplo. Como eu gosto.



(in Eu na Versailles, escritos improváveis, C.G.- Dez/2005)

terça-feira, 21 de julho de 2015

Россия


 
Que posso eu dizer?
Bom, que de repente venho a descobrir que a Árvore das Palavras anda viajada noutras latitudes e desta feita em climas e idiomas nada comuns, o que é uma surpresa claro, mas dada a constância com que tem vindo a suceder-se, questionei-me se não seríam lusas presenças que por esse mundo fora têm o hábito desde os Descobrimentos de se irem aventurar a território pertença de outros e por lá, saudosos, quererem cousa de pão de esboroar à mão e fado de cantar dizeres com palavras como saudade que é única na língua portuguesa.
 
Mas, porém e contudo, logo três advérbios juntos na defesa da figa de mão fechada, veio-me à alembradura - triste confesso - que muitos encontrões e rombos esta Árvore já sofreu, se é acto de vir e levar, peço-vos ó Vós, que tanta visita têm gentilmente feito, deixem ficar o que encontram, pois que o verbo é belo quando plácido ou revoltoso se acha em seu lugar de estar.
 
Assim como o monte branco e altivo, apenas de o olhar e imaculadamente o desejarmos reter na memória. Deixem as Vossas palavras se assim o entenderem, acho-lhes valor bastante para as guardar no tronco desta Árvore.

segunda-feira, 20 de julho de 2015

Duas penadas



Pronto, já está, limpou-se o fim-de-semana, mala de regresso à arrecadação e nem vestígio de pé de fora, este serve para acompanhar o outro e não se fazer de coxo e ambos na correria do costume palmilham ponteiros de relógio como quem enfarda sem tomar o gosto, em duas penadas escrevo o Tejo, uma margem para cada lado está-se mesmo a ver, não há desperdícios de poesia ao olhar para trás ou na contemplação da cor do céu a tingir águas que possam na influência alterar humores, vejo vermelho que é o risco com que corto palavras dispensáveis no relatório pragmático que preparo, draft, o que será quando for o definitivo sem sombras de traços sentimentais nem a ousadia do calor da mão a lembrar olhos e tom de vozes e a já previsão de um aceno [maldito 6º, 7º, 8º sentido ou o que seja, que tão poucas vezes o instinto me engana! E mesmo assim abano a cabeça e digo para mim que talvez não, talvez não...], duas penadas e nem o Tejo a salvar como benta água, o tempo perfilado como de igual num marasmo dormente, pronto, limpou-se tudo e nada importa, é tudo igual.

domingo, 19 de julho de 2015

Caderno (quase) em branco



Escrevi pouco enquanto estive fora, o caderno amachucou-se nas palavras escondidas entre coisas a não deixar no quarto de hotel, pensamentos vagueados entre trabalho e saudades, preocupações e desejos sobre o tempo passar rápido para rápido regressar, a vontade de inscrever letras no branco remoeu-se nas que sabía na boca e no coração e no instante do acto, a vontade parecia presa, a mão incapaz de saber dizer sim.
Folheei as páginas rabiscadas - em casa nossa tudo tem um sentido diferente - e na leitura dos traços, apercebi-me de novo da angústia do aprisionamento das palavras como se fossem um fardo a carregar no segredo de as conter, nem mesmo a partilha da folha era seguro o bastante para receber a confidência. Lá, recordo que simplesmente não conseguia, talvez a perda da força, talvez o cansaço, talvez nada, talvez apenas esperar os dias correrem para voltar a aprender como se dizer o que se vê, o que se sente.
Aqui dói-me ver-me lá, observar-me parada de mão a esconder o plano onde pouco deixei e ainda assim, o tanto do verbo a corroer as folhas como um ácido e a esburacar o peito, também esse tanto que na ausência do momento é o bastante para se compor depois, agora de olhos a saber dizer, de boca a ver o que diz.

sábado, 18 de julho de 2015

Em casa


 
Cheirar a casa é cheirar a nós, estar perto de quem se quer, mandar beijos para quem sabe, é chegar aqui e ser a árvore, o insecto, flor e vento, o monstro inventado na palavra que o criou e também o verbo que pode apagar todo um campo verde, fazê-lo esquecer de existir, é dizer casa porque se sente que a palavra diz mais que tecto, mais que cheiro, faz um mundo, uma árvore, é sentir consolo no consolo de escrever palavras e esse tão pouco é uma simplicidade que custa explicar pela arte das letras porque ele há coisas que só mesmo sorrindo é que se entendem e no silêncio do passeio entre o roçagar da erva alta e do afago das folhas verdes no cabelo, faz-se o regresso.

terça-feira, 14 de julho de 2015

Boa viagem


 
O que levo não cabe na mala, o click do fecho metálico não se escuta no que transporto no peito, nos olhos, nos cómodos da lembrança, tudo fácil de guardar quando são coisas de mão palpável a atirar para dentro de dimensões standard na mala de cabine, o avião não levanta com o peso da minha bagagem, trago tudo dentro de mim, asas também para poder regressar.
Não gosto deste pedaço em que se sumariza em meia-dúzia de peças de roupa a qualidade do que somos, a que vamos, olho o interior da minha alma e anagramo mala, malas, correrias e tropeções nas meias-dúzias de peças de roupa que vestem a alma dos que se embatem nos aeroportos, felicidades e negócios, despedidas e reencontros e se despacham a desviar bagagens e olhares no receio de encontrarem saudades comuns, uma pressa chegar, arrasto a minha mala pronta, fechada, o meu peito ainda a dobrar beijos perfumados, palavras curtas, quase silêncios quase palavras.
Levo o que me serve e me chega, nada a declarar.

segunda-feira, 13 de julho de 2015

Deixo-a



A qualquer instante caio, não é a surpresa da queda ou o medo da dor ao estatelar-me no fundo, nem sequer o vejo, pintaram paredes, tecto e chão à mesma cor, um poço negro ou branco tanto faz quando não há limite de medida de alto-baixo ou perigo de aleijão na imensidão, o que balança a suspensão é a dúvida do quando, o que move o momento é a respiração que se acelera na pergunta para quando, é agora ou daqui a quanto tempo, quanto me resta do imaginar o que é verde e o que é azul ou então a desaceleração das narinas na tentativa do controle do tempo, da matéria, da matéria do corpo e da essência invisível que nos nano-segundos parados sem respirar se pretendem palpar, alma, não caír por assim querer nessa exigência, apenas vontade como cabos fortes e robustos que sustêm um mundo interior maior que a pele, a qualquer instante caio mas de pé e vejo-me morta por outros matada. Abandono o espaço e deixo o que julgam ser eu.
 
 

domingo, 12 de julho de 2015

A descoberta do (outro) mundo


Era quase certo que mais uma forminha haveria de ficar perdida na areia, enterrada, misturada entre pegadas de muito ir e vir à procura de baldes de água na construção de um castelo que nunca crescería para além da vontade, que vontade mesmo era erguê-lo nos sonhos e ali à beira-mar era correr de pés livres do fresco do mar e chapinhar e fazer bonitos nos mergulhos para os pais verem.
A partir de certa altura, a guarda das formas que davam jeito às estrelas e aos corações batidos contra a areia molhada ficou apenas por minha conta porque afinal era eu a sua dona e a sua construtora e não cabía a outros andarem à hora da partida, a catar altos e buracos na descoberta dos coloridos do que eu perdera dos sentidos e da vontade.
Assim e já só duas forminhas a restar, decidi não voltar à praia com balde e pá, nada nas mãos a não ser as mãos e o que delas pudesse fazer. Mas era a imaginação que mais bulía. Nunca mais perdi nenhuma forminha e fiz castelos mais altos que eu mesma e com grande beneficio pois aconteciam em qualquer lugar e eu, golfinho reinventado, praticava a descoberta do mundo debaixo de água de olhos bem abertos.

sábado, 11 de julho de 2015

Cartas de família


 
De quando em vez pega-se-me às mãos. Não é inocente. Deixo-a numa gaveta do louceiro da cozinha. É bom lugar, é nutritiva, é de encher o estômago e forrar o peito, embora não tenha as duas folhas cobertas de palavras tem as tantas que me satisfaz na boca, plena, saborosa, honesta e de um gosto familiar que só a ela encontro. Guardo-a no envelope já manchado do tempo e de muito manusear, outras mãos a pegaram e rasgaram o papel sem cuidados no pensar em mim, bocadinhos que faltam, ainda o selo azul meio descolado a piscar o olho que eu insisto em calcar como se o envio fosse hoje importante, encaminho-me, destino dos anos, de casas, de cidades, viajo pela cozinha em cada argola de letra desenhada e nessa refeição de amor que tomo apaziguo todas as fomes que sinto.

sexta-feira, 10 de julho de 2015

A mim ou?



Acontece que me acertaram.
E até que nem é a primeira vez por isso devía afastar-me, tratar das feridas e regressar sarada, preparada na robustez de quem na convalescença adquiriu o tempo suficiente do conselheiro sensato para tirar partido da aprendizagem.
Acontece que me acertaram e não gosto de conselhos e farta que estou de levar chumbada - mais que uma é demais e não é porque não tenha aprendido à primeira, é mesmo porque não consegui escapar - estou neste dilema de me deixar ou ir.
 
Ou seja, fico e deixo-me de entretém para as bestas, que a sério, depois de me acertarem, será coisa que já não incomoda e até servirá para ver que só nesta condição de fingimento da morta perdem o medo de se aproximarem para vir dar o chuto ou na alternativa, aguento o embate doendo e vou-me a eles louca como se tivessem falhado.
 
É que chega uma altura já não há paciência. Nem mesmo para mostrar onde acertaram, sem razão, injustamente, fazê-los calar pelas palavras acaba por ser um desperdício de munição, deixar o corpo e trazer o que é meu ainda é o melhor, rir-me de parte silenciosamente enquanto me observo plácida a aguardarem que tenha um acesso de ira, raiva, qualquer coisa que lhes demonstre que me acertaram...
 
Estou no ar...
Quem sabe se foi mesmo a mim que atingiram?

quinta-feira, 9 de julho de 2015

Portas & Janelas - Esboço nº 20



- Além era dele. E ali, e ali, e a casa. Claro.
Pararam.
O céu começara a fechar-se, cada vez mais abafado ele tirou uma rodilha de lenço e passou com força na nuca a olhar o chão, depois ficou-se com a vista presa na casa, ajeitou o chapéu de palha e escondeu a melena branca para dentro da copa, mãos ao quadril e estático preparado para uma investida que o edifício lhe pudesse fazer.
O outro a seu lado deu um pequeno passo, o calor atormentava-o.
- Sabe, eu não estou interessado no imóvel... é tudo para ir embora, só quero o terreno...
- Não pode fazer isso! Deitar a casa abaixo? Já olhou as portadas? Aquela porta ali? Aquela do alto da varanda? Eu vou-lhe contar...
- Não tenho tempo! E como lhe disse nada disto me interessa, é tudo para arrasar, só quero o terreno, já viu coisa mais decadente? Desculpe, tenha paciência, tenho de ir embora!
Ouviu o motor do carro a afastar-se, ao som do trovão o chumbo selou a cor do céu, pingas pequeninas marcaram o chão poeirento a pequenos círculos, ele tirou o chapéu e ajeitou a melena branca, limpou a testa ao braço e ficou a bater devagarinho com a aba do palhinhas na perna.
Olhava para a porta ao alto. Talvez uma janela grande, pensou. Uma janela do tamanho do pai. Era dali que o chamava para os ralhetes, um vozeirão, puxava as duas portadas para trás e enchía o espaço de uma porta. Ou de uma janela grande. E fora dali mesmo que lhe tinha gritado o nome para lhe dar o seu primeiro cavalo. Que o chamara para anunciar a chegada da irmã. E quando já tinha idade e corpo, ele mesmo já chamava os irmãos pequenos que vieram a seguir, mas nunca como o pai, nunca a encher aquele espaço e fazer dele um todo.
Agora todos tinham ido à sua vida, outros à morte, ele ficava para mostrar o que sobrava, uma janela, ou uma porta que nem sequer era dele.
Compôs o cabelo, colocou o chapéu e abrigou-se da chuva que entretanto engrossara.
 
 
 
(in Portas & Janelas, Setembro-2014)

Todas as fotografias da Colecção Portas & Janelas são da autoria de Eduardo Jorge Silva

quarta-feira, 8 de julho de 2015

Boatos



Eles.
Eles disseram, eles mandaram, aconselharam os outros a, apontam o dedo. Eles.
Estes eles que ninguém nomeia e todos identificam. São os outros. Os eles. Um colectivo poderoso que pelo veículo do bafo do rumor atacam, dilaceram, desmoralizam e comprometem o bom nome alheio sem terem nome a não ser eles.
Eles são eles.
Uma entidade divinatória porque os adivinhamos quem a forma, porque se deitam a supor e nessas mezinhas de trazer por casa muita derrocada vão conseguindo arrastar nos pés silenciosos e poeirentos que tentamos seguir na intenção da descoberta secreta do individuo cabecilha ou membro deste clube privado de cem titulares, um titular, concorrentes que entram e saiem à medida do desempenho do boato e usufruto próprio.
Mas a infelicidade deste rastilho descontrolado leva à incapacidade de se chegar à origem do seu autor e o poder do eles reside exactamente no rosto sem rosto, como agarrar a mão de quem segura o fósforo se não se garante que seja o provedor da dinamite, tornemo-nos num deles atacando de igual como a outros fazem, não, lex talionis não. Decididamente. Esse ar envenenado que lhes sai da boca ausente é o oxigénio dos cobardes. 
Um dia, um dia talvez não haja justiça, mas nesse dia e apenas nesse dia eles não terão importância.
 
 

terça-feira, 7 de julho de 2015

Shame on you



Entraram pela carne, pelos olhos, pelos olhos até deixar de ver e não conseguir atingir a verdade da evidência no som das palavras a vergastarem indistintamente a carne onde pudessem acertar até esta se tornar pedaços de coisa mole e pender inerte atormentando a pedir a amputação piedosa.
Palavras amargas, cruéis, deturpadas, palavras velhacas que escarnem de mim sem pernas.
Palavras que rasgam o mundo ao meu redor e afastam cortinas das minhas costas pondo à vista bastidores que aguardam o meu momento de joelhos, o instante pequeno em que soçobro, talvez envergonhada dos meus restos desordenados aceitando culpa por tão defeituosa me sentir, achar ser justiça a condenação de me tornarem rasa. 
A surpresa que me ataca como o chicote que me dilacera é tão grande quanto a ira que me acorda a besta e os cascos que me escoucinham no tambor do peito fazem-me doer as veias que me cortaram nos golpes dados a cada sílaba oferecida com a calmaria de um veneno.
Sai tudo rompendo pele e desta vez até lágrimas, desertos que eu havia comido hoje alago, hoje devolvo a besta do verbo, elogio o meu tamanho e no monte dos bocados acho o balanço do tom para dizer honra e verdade.
 
Shame on you. Shame on you.

 

segunda-feira, 6 de julho de 2015

Vigilante


 
Paramento-me a rigor aos códigos de postura e fardamento, vigilante que não destoe ou destaque mas que agrade sem contudo parecer propósito, me dilua sem mancha escurecer todavia sem ao esquecer querer entregar. 
Sei como ler sem fazer ruído aos beiços gastos do obedeça às mãos juntas em ordem dada, que recebida aperto nelas a oração, sempre há-de haver alguém acima e quem pode manda, quem nada sabe sorri e reza, carimba e ri, entrega e cumpre, ora e espera o grito do pedido renovado ao analfabeto silencioso.
Estou, estarei, estando, estados de alastração para quem precise e ao alcance rápido, uma pastilha efervescente que não faz mal nem bem, uma precisão que se lembra e em caso de ausência um copo de água resolve o problema na lucidez necessária da questão. 
Estou pronto.
Gravata cinzenta e a minha melhor cara de burro, pronto para saír e atacar a semana. 

domingo, 5 de julho de 2015

Boleia(s)


 
Fechar um olho [malabarismos do tempo] ao raio de sol que atrevido vem juntar-se à sobremesa rapada, restos de frutos vermelhos, riscos entre cortinas levantadas por mão de fantasma lento e suave a imobilizar de novo a matéria de algodão [translucida lembrança], faz calor hoje como naquele dia lembras-te? Qual dia, tantos dias de calor, aquele Domingo em que pedimos boleia [o veículo da memória, sobe, subimos], verdade! Olhos abertos, o Sol sentado entrevista, testemunha, ajuda a compor cenários à mesma cor daquele ano, isso foi há quanto tempo? Éramos tão novos... [sintonias de um tempo. Tempo. Acordes de pedra. Pelourinhos] E veio um jeep verde tropa a fazer um barulho imenso e tu pediste boleia e o homem de rayban disse Subam e nós subimos e agarramo-nos com unhas e dentes às pegas ferrugentas daquela lata do tempo dos Flinstones! Lembras-te que o jeep era americano e da 2ª Grande Guerra? Claro que sim![comunhão de assento nas veias] E quando saltámos tu tinhas os calções rasgados no traseiro! Os calções novos estriados com um buraco![revisitações do riso]. Fechar os olhos até ao silêncio se acomodar, é o Sol que entra que me incomoda, queres que feche? Não... [ malabarismos da palavra, boleias da memória, anda].

sábado, 4 de julho de 2015

A multiplicação do tempo


 
A aparência dos dias - duas metades de claro-escuro - vai mais além do que o gozo das horas sem horas, prazer no hábito de fazer do escuro a claridade e desta desligar luzes quando o mundo se ergue. Mas também acompanhar dias a rigor e deles sugar outros tempos, outras latitudes, não por ter poder maior que os mortais ou por omnipresença secreta que esconda mas porque das palavras a renovação de vida me oxigena em futuros sem calendário, sem cor, nem claro nem escuro, apenas paredes defronte ao rosto.
Nesses dias que parecem não o ser, recupero o que salvei daqueles em que o tempo se multiplicou em tantas metades quantas a vontade de escutar palavras surgiu tão naturalmente como o desejo, fechar os olhos e lembrar, muros que se derrubam e caminhos que se rasgam para se poder escapar de  aprisionamentos em que nem sequer se ouve o coração.
Mas é uma lástima que disponha de tão pouco tempo em que possa com dedicação multiplicar para usufruir em dias menores, já que as palavras não escolhem o momento certo, impõem-se, e aceitando-as faço-me o tempo delas.

sexta-feira, 3 de julho de 2015

Só e amparado


 
O egoísmo das letras conjugado à necessária solidão empresta ao actor companhia e amparo, este acaba assim por ser, autor de sua [outra] própria personagem, a estória dentro da história, o observado a olhar para o observador e este, acariciado ou esmurrado pelo destino que atribuír aos que dá vida confronta-se no papel de juíz e deus, escorregando o xaile do aconchego e a rede de protecção.
Mas enquanto se constrói, se flutua no verbo a desenvoltura das palavras para dizer cores e cheiros, transmitir a raiva da traição ou acender o diálogo prolongado entre falas altas e apenas sonoridades que equivalem à elaboração de uma resposta, tudo é companhia, uma proximidade que aquece e isola o resto [dos outros], lembra remotamente para além dos que os escreve, felizes transeuntes que falam em alimento e que dão bom dia ao acordar no lado certo da cama.
Na sentença do fim, a aflição dupla: querer acabar e não querer acabar.
Porque a toxicidade é também a consciência de que o verbo, poético porque necessário na dose certa, tem de ter o seu términus, sufocações de um abraço demasiado apertado, demasiado tempo, demasiada liberdade para outras palavras que se pedem para escrever.
Ou porque o homem tende a suspirar pelo que o resguarda e encanta e adiando o fecho, aninha-se ao consolo ilusório do poder de protegido pelas páginas cheias, decadentemente poderoso para só ele ter o tempo de matar o fim.

quinta-feira, 2 de julho de 2015

Depois



Pergunto qual o destino sobre tantos papéis, cadernos e mais cadernos que se empilham, tantos sem a marca da data, não seguem dias, só o inicio e o fim da última página, não obtenho nada a não ser manobras de evasão, frases curtas com pontos de interrogação e exclamação demonstrando desagrado na conversa que não pretende seguir, não há diálogo pois, se não vou conseguir respostas, talvez nem as queira, se me perguntar a verdade de mim para mim ponho-me a adivinhar futuros coisa que nunca tive interesse e agora isto, perguntas do além, além-mar, além-escrita, além-vida, além-vidas que me acompanham e destas todas não tenho direito de perguntar destinos sobre o que seguem, o que fazem ou não querem. Da minha sei-o. Ou nem tanto, ou chegará o dia e a noite que nem tanto, apenas pilhas de letras em cima de papéis. Depois. Papéis dobrados, como a vida ou o que se segue desta ou nada mesmo. Papéis sem data. Faz-me barcos e deixa-os ir pelo Tejo.
 
 

quarta-feira, 1 de julho de 2015

Campo de Palavras (23)



Refresco a boca nas horas que dilaceram as sombras a pino nas palavras que se multiplicam como exércitos, a mim a tarefa da formação, organização, quería eu um verbo livre mas sem rédea nada mais que a loucura, tantos gritos campo fora numa correria desenfreada de cada um dizer mais alto.
E o encantamento desta liberdade é que cada um parece dizer melhor que o outro, enamorar-me da sua bravura do contar, uniformes azul-china que pelejam ágeis para me impressionar, um e outro ferem-se na audácia de uma vida conquistada para além deste campo, eu no alto da colina cobardemente deslumbrada.
Sinto-lhes os golpes, esta morfina do verbo que alivia e embriaga transformando limites de folha branca em planos de céu, antes de eu caír pelos joelhos a pedir perdão aos que deixo ficar por agora conduzo as palavras que precisam, que eu preciso para molhar a garganta de tanto dizer.
A quietude que assenta como um pano a abafar todo este campo de palavras depois da batalha deixa-me quase dormente. Imóvel. Talvez tenha lá ficado, a mão que segura a caneta, presa sob algum corpo parecido com o meu.