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domingo, 31 de agosto de 2008

O jantar (Aperitivos)

Embora os conhecesse bem havía preparado com bastante antecipação o cardápio a servir. Cada um no seu coração, cada qual mais oposto que o outro. Era isso que a fascinava e que a mantinha acordada naquele estalo de os desvendar continuadamente por muitos anos que tivessem passado e ainda nos vindouros. Sentía-se uma esponja e eles pingavam-se entre manias de pessoa comum e o uso do verbo na genialidade dos poucos.

O primeiro a chegar, pontualissimo, foi José Maria. Exalava suave a bergamota no lenço de seda e irreprensível no lustro dos botins. Falou do tempo, dos calores e da condição humana enquanto lhe segurava levemente flectido a ponta dos dedos.

Logo de seguida pareceu Franz que mal se apercebeu da presença de José Maria e das suas opiniões politicas entregou um beijo à anfitriã denotando uma intimidade que de facto não existía. Ela sorriu, indicou a sala, o sofá confortável, os aperitivos. Franz serviu-se de um Madeira e encheu um cálice de xerez para José Maria, que acusando o picante acintoso apenas lhe dirigiu um toque de cabeça mantendo-se na sua posição de perna traçada acomodado no canto do sofá.

Lúcia entrou como era: espalhafatosa, a falar muito alto, beijando os dois homens enquanto relatava as aventuras que tivera no caminho. Eles sorriram ante a visão do decote ousado e dos seios ofegantes que a qualquer momento parecíam escapar-se ao pouco tecido que os cobría. Dirigiu-se à garrafa de whiskey e tragou um cálice puro, depois encheu um copo short drink e às mãos cheias completou-o de gelo enquanto se oferecía uma pedra única a derreter na boca.

A desculpar-se pelo atraso de muitos afazeres, um pouco dobrado e de óculos sujos surgiu Fernando, pasta encaixada no sovaco, a tez amarelada, um pouco suado e com cheiro de tabaco entranhado na roupa. Ela sossegou-o dizendo que ele não era o último, que chegava a tempo, ainda faltava David. Ele pareceu um pouco assustado, murmurou tanta gente, adiantou alguns passos na direcção da saída mas ela agarrou-o por um braço e sussurrou-lhe não me faças essa desfeita ao que ele acedeu por tanto gostar dela.

Não quis nada mais para além de um copo de água que vazou de um trago; ela voltou a servi-lo do jarro de serviço e mais uma vez ele dessedentou-se avidamente.
José Maria riu baixinho, olhando-o fixamente, isso é que é sede homem! Fernando procurou refúgio imediato junto a um móvel olhando as fotografias de familia como se elas lhe pudessem proporcionar o disfarce necessário para a sua invisibilidade.

David entrou, cumprimentou na generalidade, ofereceu um ramo de rosas amarelas à dona da casa, tirou o botão que trazía na lapela e enfeitou o cabelo negro e liso de Lúcia por detrás da orelha, adiantando-se em cavalheirescas desculpas de não saber que havería outra senhora presente.

Dispensou os aperitivos, guardava-se para as iguarías que sabía haveríam de o surpreender.

Mesa? E ela destinou os lugares, o sexo feminino em cada topo, Fernando - que precisava da sua presença perto - ao seu lado direito e os outros que se ajeitassem a bel-prazer, afinal eram todos de casa.




(continua)

sexta-feira, 29 de agosto de 2008

Palavras na árvore

Acabou por desistir. Já não tinha mais papel. Nem paredes onde chegar com o braço esticado. A partir daí escrevería em si mesmo, na pele. Nada se perdería: o que de si saísse havería de novo ser consumido por si. E sempre desta forma, sem parar, até a pele ficar agarrada aos ossos e estes misturados na terra e esta dar vida a uma árvore.

quinta-feira, 28 de agosto de 2008

Do que me fazem

Aqui dimensiono-me naquilo que me leem, no que pretendem eu seja. Podem fazer-me gigante entre travessões, menina rabina entre uma exclamação e um ponto amarrecado de interrogativas em que serei, não serei, talvez, se fecharem os olhos posso ser mulher à espera, ou apenas uma aguada de cores, sem contorno, difusa, a perder-me no tempo... um tempo de amar, de me dar, de me saberem frágil entre dois pontos: definição: tu és. Eu sou o que me quiserem, até pássaro de fugida ao frio ou árvore bebendo chuva ou herói em tantas batalhas, em tantos campos, morta esta noite, uma vírgula a respirar, a dançar no alto da lua, a uivar aos que me são pares ou apenas assustada com tantas vidas que trago nas mãos... Reticências para imaginar.

terça-feira, 26 de agosto de 2008

Contos Curtos Quase Escuros - O gajo

Deu um esticão aos atacadores, laçada, dupla laçada, bateu com os pés a troca-passo, enfiou o casaco pela cabeça e bateu a porta. Voltou atrás e deu a volta à chave na fechadura esbeiçada de outras tentativas de entrada por meios menos próprios feitos por ele mesmo quando na correría desenfreada de encontrar o resto do bando se esquecía da chave pelo lado de dentro ou na troca de casaco apalpava o bolso desoladoramente vazio.
Atirou-se escada baixo, no último lance montou-se de amazona no corrimão e juntou mais um pouco de lustro às calças, tacões a derraparem na esquina húmida de paralelípipedos.
O resto da viela gingou-a devagar, o olhar de soslaio para as varandas, cigarro a alumiar-lhe o nariz demasiado comprido e de viés.
Encostou-se ao gradeamento do ponto de encontro, bateram as nove. E também a meia dessa. Não tinha relógio, pendurara-o no prego por causa de uma aposta estúpida que perdera ao braço de ferro com o talhante do bairro. Tinha sido uma boa aposta: bife à borla se o vencesse...
O sino anunciou as dez e lá apareceu o primeiro, calmo, a noite ainda agora se fizera. Aos poucos os outros, um grupo de cinco que contava à vez os feitos do dia, qual tinha sido o mais malandro, o que apalpara a miúda mais boa.
Ficaram ali até alguém de uma varanda lhes gritar pouco barulho e ele, afoito, convidar para vir cá abaixo, tudo a rir.
A noite refrescou-se no entrar do novo dia e dois dispersaram. Ele chamou-lhes maricas e meninos da mamã. A seguir despediu-se o terceiro e o quarto disse-lhe para ele esperar que também já ía.
Ouviu as três da manhã, chupou o último cigarro, praticou argolas com os movimentos da boca e ficou a furá-las no próprio cigarro. Guardou as mãos nos bolsos e sorriu para si porque hoje tinha a chave. Dobrou a esquina a olhar para os sapatos. Foi quando sentiu um ardor na barriga que o queimou todo até às goelas, dobrou-se, caíu de joelhos, sentiu que lhe puxaram o braço mas não conseguiu fazer nada, a outra mão no ventre fazía força para parar de doer.
- Este gajo nem relógio tem! Nem dinheiro nem nada! Só uma merda duma chave! Que gajo este, tss!

segunda-feira, 25 de agosto de 2008

Crónicas do Tejo (XVI)

No nado inverso se faz a origem, volto ao ninho, à baía do meu sentir, aos repiques do sino chamando fiéis às dezoito, adentro a hora de lobos, sou só eu a alcateia.


É nas presas afiadas que rasgo a água e farejo a margem como o pedaço da carne faminta, vou nua mas atenta, ainda o Sol se dá aos enganos de fazer espelho no Tejo, chama-me, chama a vaidade de mim e atrai-me como um mar encapelado, cabelos molhados às chuvas de palavras que ondulo na navegação, garras cravadas atrás que de um salto fujo ao encanto e piso terra minha de novo.


Fecho o caderno vadio. Sacudo no borrão azul respingos de amurada e rasgo a folha, cansada, na unha esquecida de um lobo.



(In Crónicas do Tejo, C.G.-22/08/2008)

domingo, 24 de agosto de 2008

Divagações sobre um elevador


É tarde. Tarde do dia, daqui a nada há-de cantar a madrugada e hei-de imaginar um galo a esganiçar o pescoço. Ou aquele pássaro sempre em pânico dos Flinstones a quem depenam as horas... não sei porque carga d'água me fui lembrar disto agora... é tarde. Doem-me os pés mas valeu a pena, os saltos altos sempre farão a diferença e o resto é conversa.

(Mas onde está a porcaria do elevador???)

Quase de certeza que a coscuvilheira da frente há-de vir ao patamar... a conversa de chacha do costume, "pensava que tinham batido à porta..." Que nojo! Quando tiver dinheiro mudo-me de vez! E sem estas porcarias de elevadores que não chegam...

(Será que avariou?! Será que carreguei no botão? Não se sabe, não é?! A lampada fundiu-se e ninguém está para trocá-la!!!)

Assim que entrar no elevador descalço-me. A esta hora não vai aparecer ninguém. Caramba... parece que vou assaltar o prédio onde moro! Descalço-me logo, os pés na alcatifa... se bem que o béu-béu da velha do 3º é bem capaz de lhe ter espetado uma mija... porque é que cheira sempre a mijo neste elevador?

(Ah! Finalmente! Lá vem ele...)

Um dia destes cai, é certinho. Range que até dói. Chia. Grita. Deve ter falta de óleo... Como é que será que se põe óleo nesta caranguejola? Deve ter que se entrar lá para dentro, para o oco, isto deve ser um buraco escuro, não se deve conseguir ver para pôr o óleo, cheio de cabos e coisas que ninguém percebe, deve dar medo, o avesso do elevador... deve ter, tudo o que se vê por fora tem um avesso, este também tem que ter. E deve estar mal pelos berros que dá, aquelas cordas e roldanas e parafusos a moerem-no todo por dentro e nós aqui sempre a pedir mais, puxa para cima, vai para baixo, aguenta, só mais um peso, é só um piano... Será que os elevadores têm venetas? Quer dizer... temperamentos, se calhar até coração, "o coração do elevador está doente, Meus Senhores", eheheh, "talvez um transplante!"... As parvoíces que uma pessoa não diz quando está cansada...

(Ei-lo. Ah! Entrar e descalçar-me! E agora vamos para casa, tenho sono, é tarde)



Botão.


Magia.


Upa.


(Só me faltava esta... não se mexe. Vá lá! Vá lá! Se desceste, também sobes!)

Nada. Está morto. De cansaço. Como eu. Descalça-te elevador, é tarde.

Vou pelas escadas, a cusca nem há-de saber...

(Contribuição minha para o Elevador)

(Desenho a carvão de minha autoria)

sexta-feira, 22 de agosto de 2008

Homem namorando mulher

Deitou-a na parede. À bruta. Bateu-lhe os pulsos apertados nos vincos vermelhos das mãos e encostou-lhe o joelho na púbis pressionando devagar. Confrontaram-se nos olhos. Ela separou os dedos e depois projectou-os na garra dirigida ao rosto que se aproximava do seu. Reflexo, desvio, escape, guarda, sacudiu-lhe os braços de novo contra a cama improvisada forrada de florões de hortênsias muito desmaiadas sem cheiro nem relevo, só bafo da respiração, cheiro o do cuspo, cheiro o de corpo, não é suor, é identidade. Devagar investe, ela roda o rosto, descobre-lhe o vertice do pescoço. Ele lambe-lhe a maçã, a têmpora, a sobrancelha, o olho que se fecha à humidade mole da lingua lenta que se recolhe, saboreia, activa as papilas na derme que se vai fechando em minúsculos poros e liberta fluidos invisiveis. O joelho roça-lhe ocupado o sexo que aquece e deixam crescer os seios sob a roupa que pesa tanto como chumbo e os olhos pedem agora que o alivio se faça sem a tortura continuada que ele observa em cada pedacinho de pele arrepiada e pronta para o que nega e ainda resiste. A barba arranha-a, magoa-a, arde-lhe orvalhada no lóbulo, nos fios de cabelo presos, na dentada violenta que sente pelo corpo todo. Grita. Doeu. As lágrimas que saiem em fio e se penduram no lábio, pelo queixo, no colo salgam a ferida que se abre à vontade de ter, ser, existir para além de um invólucro que vai dando sinais primitivos na fome da sobrevivência. Fundem-se na parede, emolduram-se.


O criado fardado de libré e luvas brancas endireita o quadro. Afasta-se verificando a sua esquadria. Sorri pelo seu zelo.



(in Telas, C.G.-Março/2007)

quinta-feira, 21 de agosto de 2008

Infinitamente

Recorrentemente aproxima-se até caír lá para dentro. Uma queda sem qualquer vertigem, sabe que não dói nada, é deixar tombar leve e aparecer onde calhar, o sitio é adereço tão pouco cenário, as personagens fazem o todo e enchem sem direito a mais nenhum interveniente uma bolha de tempo. Mutações de cor moderam o tom da conversa silenciosa, não se arrisca um tom acima, mais alguém pode escutar.
(Quando é que gostas mais de escrever?)
Os segundos sem contagem farão o dia de hoje, leva-os pela cidade fora, saboreia-os muitas vezes, evita sempre atingir o final, recua ao pedaço que mais prazer lhe dá e percorre os passos feitos à procura de algum detalhe minimo que lhe tenha passado despercebido, assim novo deleite lhe encha os olhos fechados.
(Não te cansas?)
Lembra tudo, tudo, por vezes acrescenta-lhe o que gostaría que tivesse acontecido e finge que faz parte do original, não tem importância se é invenção, para quê se tudo o é. Ou foi. Ou recorrentemente será.
(És tu essa gente toda?)
Por vezes acorda naquela sensação morna de bem-estar, outras na sacudidela do real, quer, intenta prosseguir para guardar, ensaia de novo a queda e localiza a marca de onde saíu, ali, é ali que tem de regressar e continuar a conversa silenciosa ou então ficar-se pelas mãos, pelos olhos, pela cor que entorna o que sentem.
(Isso é tudo imaginado ou foi mesmo vivido?)
Recorrentemente acha que não é propriedade de si, a frequência do sonho leva a outro e do outro acha que também sonha o mesmo, só por isso vale a convicção e mesmo que seja engano, não faz mal, é belo e único enquanto se derrete na memória e a isso ninguém pode dizer adeus.

terça-feira, 19 de agosto de 2008

A Res Publica

Desceu as escadas engolidas para a estação de metropolitano de mochila verde de penduro no ombro direito e na mão esquerda uma pasta com duas marmitas, um pão e duas cervejas.No átrio de cimento junto aos canais de acesso sentiu uma pressão na cabeça, um gosto de acetona que lhe tomou a língua e as gengivas, um formigueiro no ombro e no peito sobre o lado do coração, as pernas presas no caminhar não obedeceram assim como a garganta, quando tentou cuspir um pedido de socorro. Admirou-se com o apagão que se fez de súbito ficando sem conseguir ver adiante.Não se recorda de mais nada.

O chefe de estação pegou no free-set e chamou os seguranças: não queria aquele negro perdido de bêbado ali estendido no atrium da sua estação; urgia que o tirassem dali, que era hora de ponta e os utentes não podem chegar atrasados.O vai vem de gentes abrandou a sua marcha, tropeçando numa mochila verde, empatando-se num pé de um negro deitado no cimento, parando para ver e poder contar depois lá no emprego o que tinham visto logo pela manhã.Os seguranças ajoelharam-se junto ao homem negro, a pasta perdida de lado, os pés orientados às 19h20, abanando-o, pedindo para que se levantasse.Um circulo fechou-se rodeando em aparato o homem no chão e os seguranças em posição de prece; alguns passantes desistiam do seu destino e por ali ficavam perguntando o que tinha acontecido; outros, em bicos de pés, tentavam vislumbrar o centro do círculo mas as cabeças dos que estavam à frente tapavam todo e qualquer pormenor do espectáculo.Uma mulher usando os cotovelos abriu caminho entre o amontoado: acercou-se dos seguranças e exibiu, de cócoras, um cartão que a identificava como enfermeira.Não houve mais troca de palavras: ela aplicou o indicador e o médio sobre o pescoço do homem negro; depois, tomou-lhe o pulso e olhou para um dos seguranças mais perto dela; ele ergueu-se com um pulo e pelo telemóvel disse que viessem, que viessem, que estava um homem morto na estação de metropolitano.A roda abriu-se como uma flor a desabrochar emitindo um som único de A, para logo se voltar a fechar apertando mais ainda o círculo. As perguntas sucediam-se numa adivinhação, alguns apostavam que o homem negro estava bêbado como sempre acontece aos homens negros, outros que estaria drogado mas a hipótese que reunia mais votos era mesmo que tinha havido uma vingança e o teriam “matado”.O burburinho de vozes atingiu decibéis idênticos aos de um mercado e ninguém prestava atenção à autoridade dos seguranças, que aos empurrões infrutíferos tentavam arredar a turba.Chegaram os paramédicos um quarto de hora depois de os terem chamado, exaltados por lhes apontarem demasiado tempo a aparecerem: com um joelho por terra, dobrou-se um deles sobre o rosto do homem negro e repetiu os gestos da enfermeira que ali continuava; depois, insuflou da sua boca para a boca do homem negro ar que lhe inchou as bochechas; o outro de joelhos sujos no uniforme branco, prensava o peito do homem negro com as duas mãos encavalitadas uma na outra; e as manobras de boca e mãos alternavam-se a tempos certos. Ofegantes e suados olharam nos olhos um do outro e pararam de manipular o homem negro; uma última punhada, violenta, foi dada no peito do homem negro, que abanou com o impacto. Levantaram-se e disseram alto e bom som que estava morto, afastando-se.Os seguranças continuavam na dura tarefa de afastar os transeuntes, surdos às perguntas que lhes eram feitas, recebendo gestos de mão fechada ameaçando contra os empurrões que recebiam.O chefe de estação estava contrariado: logo na estação dele que era um modelo a seguir, um exemplo de urbanidade e limpeza…até poderia ficar com a folha de serviço manchada.Outros uniformes brancos acercaram o homem morto: vinham estes tão só confirmar o óbito.Alguém na gula de se chegar ao cadáver e por que foi empurrado por outros que tentavam o mesmo, desequilibrou-se e chutou a mochila verde que fora do homem negro, perdendo-se esta por entre a floresta de pernas.O médico tomou nota da hora da morte e ordenou ao enfermeiro que o acompanhava que fornecesse um saco para cobrirem o homem negro. Foi na altura que o vestiam de plástico, que um outro homem negro se aproximou, deu uns estalos com a língua e proferiu uns sons indecifráveis. Acocorou-se junto ao corpo ensacado e silenciou-se, só as lágrimas brilhavam na face negra.Uma mulher aproximou-se e num dialecto trocado com o homem acocorado, decifrou para os seguranças que ali continuavam num afã, que o morto era colega de trabalho do acocorado e já inclusive haviam partilhado um contentor quando chegaram de África, que estava cá sozinho, mulher e filhos noutro continente. Um dos seguranças agarrou no braço do colega e disse-lhe para os deixar estar…que não incomodavam ninguém, no fundo, era o velório do homem negro.A estação de metropolitano voltou quase ao normal na correria dos atrasados, no desfile de mulheres belas, dos que deitam papéis ao chão, daqueles que admoestados teimam em acender o cigarro; dos que param para saber que saco de plástico tão grande é aquele que jaz no chão.Chegaram dois agentes da autoridade munidos de fitas brancas raiadas a vermelho delimitando a zona proibida onde o cadáver está deitado. Aguarda-se agora pelo delegado de saúde para atestar aquilo que todos sabem: a morte.Passaram mais de quatro horas desde que o homem negro sentiu aquele gosto estranho na boca e deixou de recordar fosse o que fosse.Os seguranças ligaram várias vezes querendo saber a que horas vem o delegado de saúde, que aquela é uma estação onde passam diariamente 85.000 pessoas e o chefe de estação está contrariado com o sucedido; mas parece que o delegado não virá tão cedo que é já hora de almoço e estas coisas do estômago não se contrariam e até faz mal à saúde tomar as refeições a correr.A hora da sesta chegou e o homem negro morto e ensacado continua no cimento frio do átrio da estação de metropolitano, rodeado de fitas brancas raiadas a vermelho delimitando a área onde se encontra acocorado outro homem negro a chorar e uma mulher que fala um dialecto recita uma ladainha baixinho.O delegado vem acompanhado de dois policias e uma maca. Deitam o corpo pesado na maca e vão embora, levando de arrasto como final de um corso carnavalesco uma ponta de fita branca raiada a vermelho.O homem negro acocorado e a mulher do dialecto perderam-se por entre a multidão e fazem parte do número elevado de utentes da estação de metropolitano. O chefe de estação retomou a compostura e até já tem um sorriso de volta. Os seguranças são rendidos por outros seguranças.Acabou o turno, acabou o dia, acabou uma vida.Ao sair da estação de metropolitano um dos seguranças já desfardado tropeçou numa mochila verde e reconheceu de quem era: doeu-lhe por dentro sem saber porquê.Mas pensou para si que quando chegasse a sua hora muito gostaria que acontecesse em privado, sem gritos nem audiência nem um vai vem de enfermeiros e policia a tocarem-lhe e uma eternidade à espera do nada.Bastava-lhe um dos seus acocorado junto a si, como vira.
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(in Homens, Mulheres e Outras Coisas do Coração, C.G-Nov/2005)

segunda-feira, 18 de agosto de 2008

Até à Árvore. Depois, logo se vê...



Deveríamos lembrar-nos do que vai acontecer. Dos sustos que vamos apanhar. Afinal, já aqui se encerra o todo que a conta-gotas havemos de ser, surpreender, melindrar, desiludir, amar, sofrer.


Mas não nos recordamos de nada, babamos. E cada fio dessa saliva e desse ranho há-de ser o mesmo com que lambemos bocas e choramos de dor. Nem sequer somos capazes de nos defender de nós. Das nossas ironias e cabeçadas, dos projectos arrumados no adiamento do nunca, dos nãos, da maioria das vezes do talvez, pode ser...


E se tudo isto já sabemos mas a memória não liga deve ser porque no caminho que vamos sulcando esquecemos as pedradas atiradas de olho fechado, as fisgas, as corridas de bicicleta, o primeiro beijo. Ou talvez se vá regorgitando em golfadas intervaladas por rasgos de déjà vu, coisas que nunca soubemos e fazemos como se sempre as tivessemos sabido.


Deve ser por isso que existem palavras escritas. Para mim, digo eu. Para me acalmar, digo eu.

Para me fazer entender que escrevo sobre tudo o que sempre tenho trazido e trago dentro de mim. Na maioria o desconhecido. Até aqui. Até mais palavras me doerem e eu continuar a babar.
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(Foto tirada pela minha Mãe a uma Gasolina com 4 meses)

quarta-feira, 13 de agosto de 2008

Do cheio do vazio

Apalpou. Chato. frio. Cego. Iluminou-o na ponta do indicador. Não franziu o sobrolho nem fechou os olhos à luz repentina que se desvendou como um gume de faca, sabía as horas. Girou. O sobrado está morno. Macio. Sabe que é louro mas só porque já o conhece de outros passos... Há uma tendência para se andar no bico dos pés quando não há claridade, receia acordar a escuridão, os estalidos da madeira a doerem quando pisados. Anda muito. Parece muito na ausência de um lume, de uma cor, de um objecto definido, de uma voz que guie até ao mundo dos vivos. E hoje nem o som da chuva, só o da ventania, arrepia-se, deve estar frio, talvez o Inverno chegue hoje e amanhã seja de novo o Verão. Deseja que seja Inverno, ali, a meio do corredor que deixou as tábuas louras para ceder ao polido do mármore. Frio. Quase molhado. E hoje que não há chuva... água só a da torneira. Fria. Presa. Como se estivesse às escuras e só existisse quando se liga o interruptor. O da vida. O de olhar em frente. O de ver na sua frente o que existe para além do reflexo frio e chato e cego que só se ilumina com alguém defronte. Suspirou. Suspirou. Cheio de um vazio.

terça-feira, 12 de agosto de 2008

Carta para ti

Há coisas que não têm explicação e a menor tentativa de lhes arranjar razões sai sempre como uma grande nódoa que mancha o belo.
Tento aqui que as minhas palavras não sujem pois, o que não tenho nem procuro entendimento razoável para justificar porque penso em ti tantas vezes. Tantas vezes durante um dia. Até mesmo na noite, pelos sonhos, pelos voos, pelas cores. Uma e outra vez falei-te mas não me respondeste; nem poderías, não é? não te conheço o som da voz.
Mas o que quero dizer sem parecer banal ou vulgarizar num qualquer apoio de tratado da psique, é que de facto gosto de ti. Gosto mesmo de ti. Fazes-me falta, faz-me falta saber que te procuro e que de uma ou outra maneira esta distância aproxima-nos, acobertados por um silêncio que ouvimos respirar mas receamos interromper e lá vamos nós, vigiando do outro aquilo que sabemos um do outro e nunca haveremos de dizer.
Pronto.
Se algum dia leres estas palavras saberás que são de ti que vêm. Que são para ti. Que nesta madrugada agradeci que chovesse para além do amor que tenho à chuva. Assim ninguém percebeu que evitei chorar e perdi. Assim, mantive o meu estatuto de não me comover com coisa pouca. Assim, a mancha que a chuva deixou limpou a nódoa das minhas lágrimas e coisa pouca pode ser sempre arranjar explicação para uma coisa maior.
(Perdi as imagens que poderíam de alguma forma dar algum brilho a este texto)

sexta-feira, 8 de agosto de 2008

Saltos para o obtuso



Bastava levantar uma perna, passar além este muro pequeno. Voar. Voar até outra dimensão, até que o asfalto de repente ficasse muito branco e até luminoso. Abrir os braços e atirar-me para dentro do pensamento. Talvez não doesse. Talvez parasse de doer.



Vagueio por aquele terraço imenso, hoje veio um rapaz e mais outro lançarem um papagaio. Riscaram o céu de cores garridas, uma guia chicoteada entre os braços do vento. Segui o trajecto daquela ave de plástico, muito rápida, esqueci os olhos do muro e atirei-me naquele voo serpenteado.



O papagaio antes de caír soltou-se do fio invisivel que se prendía às mãos do rapaz.

quinta-feira, 7 de agosto de 2008

5 AM


Queima, morde a lingua, sopra, poisa, lê. Mão. Dedo, dedos. Olhos. Tudo olhos. O esganiço do galo alerta as horas. Cedo, noite ainda, nem pisco de luz a lembrar que a madrugada se deita cansada do seu turno sem folga. Pouco tempo, escasso tempo, raro tempo. Dedos, todos os dedos das mãos e ainda os dos pés e ainda os do pensar e acrescentam-se-lhes os dedos do coração, ainda assim ausência de mais para o que precisa fazer. Tempo, corre tempo que correm atrás de ti, tu veloz, ágil, frágil, fumo de cigarros perdidos entre fumo de calores, entre fumo de mãos e dedos que não acompanham o fumo do sentir nem os olhos a mais que seguem tudo nas linhas marteladas à procura do climax que ainda está longe, por agora calor, calor a inundar em vagas molhadas a boca, a lingua queimada que sopra palavras em sussurros mudos e dedilhados no atropelo de frases, tempo, tempo, azuis e anil escorrem pelas cortinas que acordam à brisa, tarde, o tempo ganhou...
Bebo o café. Frio.

quarta-feira, 6 de agosto de 2008

Fabular(es) - 3º Ensaio





- Escreves melhor quando estás triste?

- Sinto melhor quando estou triste... Tu não?

- Não. Sinto sempre muito, até ao nó, mas de tão diferentes formas...

- Triste?

- Não. Apenas sai. Tem de saír! Hum...

- O quê?!

- Acho que temos de nos zangar mais vezes. De preferência todos os dias. Para que te possa ler tão bem e tão bom todos os dias.

- Porquê?! Escrevo melhor quando nos zangamos?

- Sim, muito mais forte, certeiro, carnal até. As palavras têm um encaixe como um homem e uma mulher num puro acto de cobrição.

- De forma alguma! Escrevo com o peito, cá de dentro, é mesmo do coração!

- Emocionas-te? Quer dizer... com as tuas palavras?

- Sim... algumas vezes. E quando acontece até dói.

- Eu sei. É dessa violência entre aspas que te falava... desse sexo doloroso mas tão sentido!

- Amor, amor, insisto!

- Violência dos olhares que as palavras nos deitam. Até despem, já me despiram muitas vezes e já me tiveram muitas vezes.

- É amor. Porque marca. Eu sinto que te marca... não é verdade?

- É sim, mas não quero confessá-lo. Fica mais belo se apenas o pressentirmos e desejarmos que no-lo digam mas acabam por não dizer, percebes o que digo?

- Percebo. Até tenho vontade de te dizer, se queres saber... muitas vezes, devagar, bem devagar...

- Não digas... escreve.

terça-feira, 5 de agosto de 2008

Um texto como outro qualquer



Houve um tempo em que tudo era sublime. Não havíam quês e os porquês eram porque éramos. O meu corpo pedía o teu e das noites e dos dias só os outros sabíam e se importavam, para nós existíam dois tempos, o da saudade quando apartados e o de sermos e nesses fiapos das horas consumíamos o eu no outro aumentando certezas sem procurar argumentos sobre a nossa direcção.

Perdi a noção de quanto segreguei pele, cuspo, sémen e idéias, mas não me desintegrei da vontade deste amor absurdo de tão completo como se fora eu e tu que o houveramos inventado para mostrar aos outros como se faz.

Deve ser por isso que ainda espero por ti e que nem sequer me lembro do teu destino. Ou do meu, flutuo no desfiar de chuvas e sol do meio-dia, a qualquer altura a tua mão prende-se na minha e retomamos o caminho dos segredos.

segunda-feira, 4 de agosto de 2008

Distinção Agosto 2008




Há blogs que pela sua qualidade me merecem destaque.

Seja pelas palavras ou pela imagem, pela constância do nível e empenho do seu autor, pela inovação dos temas, pela simplicidade com que me fazem viajar. Pelo tanto que me dão.
Assim, resolvi publicamente nomeá-los, sendo certo que a regra única é o meu gosto pessoal pelo blog.

Não é um prémio nem um meme.
Não é uma corrente e logo não é transmissível a mais ninguém pelo que só a Árvore das Palavras tem o direito sobre o registo de os indicar e o indicado não o pode oferecer.

Todos os meses, aos primeiros dias, revelarei a minha escolha. Publicarei aqui o selo Distinção Árvore das Palavras com a identificação do meu seleccionado de cada mês e gostaría que o blog distinguido também o exibisse. Mas isso já fica por decisão do visado.


Em Agosto aponto para a OFICINA DAS IDÉIAS do Victor e Olho de Lince


Porque neste mês de infernos de temperaturas elevadas e muitos incêndios há sempre flores frescas e belas. Porque a sabedoria e tranquilidade andam a par com a simplicidade das palavras na variedade dos temas abordados.


Uma visita à Oficina vale por um passeio encantado.

domingo, 3 de agosto de 2008

Construír personagens



Há muitos anos existíam uns livros para crianças cujas folhas vinham cortadas em tiras, separando aquilo que se aprendera na escola: cabeça, tronco e membros.
Cada página ilustrava uma figura humana, fosse um palhaço, uma bailarina, um limpa-chaminés sempre coloridos de forma berrante no primário das cores.
A brincadeira consistía em criar novas personagens ao folhear essas tiras, atribuíndo e alternando a gosto umas pernas finas e calçadas de sapatilhas de ponta ao limpa-chaminés enquanto a cabeça se enfeitava da careta do palhaço de grande nariz vermelho.
Havíam combinações multiplas, tantas quantas as folhas do livro.
Lembrei-me desse livro animado.
Recorda-me este mundo virtual em que as personagens se alternam de multiplos rostos e calcorreiam trajados em smoking ou uniforme de serviçal, alguns de escada de limpa-chaminés ao ombro espaços tão diferentes na esperança da surpresa.
Parece que a surpresa se mudou para cá... que do real e tridimensional se apanham muitos sustos e a desilusão e a solidão são as tiras mais concorridas.

sábado, 2 de agosto de 2008

Descobridores de sonhos




Escoam-se na ponta do pé as gotas de um mar muito cantado, hoje novo e brilhante na espuma que ondeia até aos tornozelos, abre covas macias pelo peso que afunda o corpo, enterram-se tantas imagens iguais a esta desde sempre, desde que entende que esta água é salgada mas tanto lhe traz de sal quanto lhe dá de beber à imaginação que vai até à linha do horizonte.

Que há para lá desse fio? Deste estar e deixar desaparecer os pés entre areias como se ao elemento primeiro voltasse no precipício da lembrança de ontem e já que já deixou de ser, recolhem-se dobradas as águas que levam perdidos para outro alguém achar pensamentos sem sentido nas marés que neste dia são iguais às de então de outros navegadores.

sexta-feira, 1 de agosto de 2008

Agosto



Mês oito.

Um solavanco. Corri demasiado e estaco à entrada dando aos braços para achar o equilibrio (patético) e recompôr-me na figura.
O marco hectométrico dá-me a distância do antes e do depois: antes da loucura permitida depois do perdão aceite. Consentem-me alucinações e esquecimentos, mês quente, fogo do meu campo interior, pecados salgados como souvenir, linguajares de falas e até mesmo de linguas que senti em Agostos que baralho, era Verão, era Verão... que interessa o ano?

Deito o mês, tombo este oito em sinal de infinito e procuro o inicio e o fim, hei-de consumi-lo antes que me derreta os sonhos.
Ao derradeiro suspiro sente-se o Inverno na nostalgia do ouro dos tolos.



(in Calendários 2008, C.G.)