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segunda-feira, 24 de janeiro de 2011

Tornados




- Então? Que me dizes? Sim?

Encolheu os ombros, torceu os lábios mas não abriu a boca, manteve o mesmo movimento de rotação com a ponta do dedo à volta da chávena. Para falar verdade, não ouvira nada do que ele lhe dissera até àquele "Sim?", mais lhe parecera uma campaínha a despertá-la do que uma conversa. Fazía-lhe confusão todo aquele corropio de gente a entrar e a saír sem entrar nem saír propriamente dito, tomar um cappuccino na área de restauração de um centro comercial é sempre estranho, pensou, ninguém está a céu aberto mas também não estão dentro de um café, de casa, das suas casas. Ela olhou para os lábios dele e tentou ler o que eles lhe dizíam mas não conseguía ouvi-lo e no entanto, era incessante aquele movimento, formavam pequenas pregas, vincos, entreabíam-se, era quase ridiculo o que ele conseguía fazer... era um discurso enorme, a boca dele não paráva e ela bem se esforçava mas não percebía nada, nada lhe chegava de som, ou qualquer coisa parecida com a linguagem dela para que entendesse a mensagem. Mas ouviu uma gargalhada por detrás da sua cabeça, depois outras a fazerem coro. Não estava surda, porque não ouvía o que ele dizía? Entregue a estes pensamentos falhou o dedo à volta da chávena, a espuma branca do cappuccino veio por fora e algumas gotas salpicaram-lhe a mão, o pires, o tampo da mesa. Ele agarrou-lhe a mão e ela não teve tempo de lhe dizer que estava suja, que a mesa onde ele apoiava os punhos da camisa estava suja. Sentiu o seu indicador encolher-se dentro da palma das mãos dele. E sempre aquela boca incansável a articular coisas incompreensíveis. E as gargalhadas cada vez mais alto. E cada vez mais gente à sua volta sem parar aquele movimento de rotação à volta da sua mesa.



CALEM-SE!!!

domingo, 23 de janeiro de 2011

Mundos






Admirável mundo novo. Longe da visão redutora de Huxley, as novas tecnologias estão aí para nos servir, dar prazer, aumentar o conhecimento e propagar a nossa voz junto de culturas do outro lado do mapa. Encurtar distâncias e aproximar mentalidades à discussão – para lá do óbvio - tornou-se um gesto tão natural na comunicação como o acto de tocar um interruptor e esperar que se faça luz. É neste achamento que nos sentimos na grande aldeia global, participativos de uma vontade de aperfeiçoamento quer quanto à ideia do “homem bom” quer à antecipação da falência do corpo: a máquina ao serviço da humanidade. A divulgação das artes, a recuperação da história, o avanço da medicina, a redução do analfabetismo serão apenas uma ínfima parte do que a tecnologia serve. Admirável outro mundo. Aquele que nos adentra todos os dias. Talvez que a droga de Aldous Huxley deste nosso “outro” mundo tecnológico, mais não seja do que o incontornável perigo da modernidade, uma factura a respeitar pelo gozo usufruído: as nossas crianças estão mais gordas, a população clona-se num faz-de-conta, adia-se o falar no discurso directo presencial, os olhos nos olhos evitam-se, dispensam-se. Como tudo, não serão estas facilidades tecnológicas motivo de fundamentalismos: quer-se bom senso, correcto uso. A expectativa ainda agora se começou a escrever.

sábado, 22 de janeiro de 2011

Ruídos & Quietude



Por mais que a noite lamba as paredes ou o sol pinte os dias a riso, nada impedirá que eu lhe faça o inverso, de olhos cerrados ou mãos no papel comando à minha determinação todo o universo da minha vontade, um mundo paralelo onde me refugio se aquada, uma festa de bombos se da monotonia me fartei. Pois se até no silêncio ouço o compasso do coração.

sexta-feira, 21 de janeiro de 2011

Elasticamente




De um extremo ao outro em segundos atingem-se pontes, precipicios, telhados, o fundo do mar. Se a imaginação é o veículo mais rápido do mundo - independentemente do seu autor - a escrita é também o transporte não só para lugares distantes mas também para emoções tão diferentes quanto o susto, a admiração, o choro, o riso. Depois, os sentires. Mais vagarosos, quase se demora a admitir-lhes o implante que se crava no cérebro e no entanto, velozes quanto a luz, já se aconchegaram ao peito sem lhe dar conta, permitimos que nos esgravatem um pouco, aquela comichão incomodativa a que não se presta atenção, não se quer, não se liga, determina-se o esquecer, para derradeiramente os aceitar de braços abertos. Empatias, simpatias, semelhanças, sincronicidades. Tão elasticamente nos devotamos à escrita, preciosa, nutritiva, completa, numa necessidade de alimento ora frugal ora refinado. Mas quem providencia o pão? A imaginação ou a escrita?...

quinta-feira, 20 de janeiro de 2011

Depoimento




Eu sou Gaspar o cão. E não pretendo ser outra coisa se não um cão. Gosto de mim assim, cão. Dos que mostram os dentes, rosnam e mordem quando não estão pelos ajustes e que abanam a cauda e dão a barriga quando estão satisfeitos. Também dou a pata, a castanha e a branca, mas só se me pedirem educadamente. Não tenho vontade de ser outro animal ou passar-me por gente, de elaborar discursos infindáveis ou ter rasgos de genialidade, ou sou genial enquanto Gaspar.

quarta-feira, 19 de janeiro de 2011

Ainda acordada






Como passa depressa o tempo, sem dar conta de dias e de letras que se deixam escapar em linhas corridas pelas horas da madrugada, em que houve frio, pés gelados, olhos ensonados pelos rumores da noite e abafos pela luz do candeeiro sobre a mão esquerda, um lado virado do coração que nunca se sabe se é realmente verdadeiro se de outros que o fabricam por cada vez que escrevo. És tu. E eu não ouço nada, habituei-me ao deslizar dos dedos e faço dele música que me adormece. Tão pouco sei se sou eu que durmo, se de outros dou repouso, se de outros por turnos avanço e faço-os homens e mulheres. Por vezes tenho saudades de mim, mas já me perdi desde menina, como farei para me encontrar agora mulher?

terça-feira, 18 de janeiro de 2011

Balancete



Neste pequeno-grande mundo tenho achado de tudo. Debutante, com surpresa, mas à medida que o tempo foi passando, habituei-me a ver a blogesfera como um correio mais ou menos declarado, alguns de forma elegante, outros de uma falta de imaginação que devíam ser obrigados a pagar para postar fosse o que fosse. É evidente que esta é apenas a minha visão sobre a coisa, os seus maleficios, a sua verrugosidade; e também, o encanto da aproximação, o deleite da leitura, a surpresa de encontrar gente que sabe o que faz. Não há mundos perfeitos e o melhor deste virtual é a perfeição de eliminarmos simplesmente o que não gostamos. Não tenho disposição para ver o que se passa na vida dos outros, acho completamente inútil e granjear a pena alheia, dá-me engulhos. Não apaparico males de amor ou defendo dores de cotovelo, não tenho compaixão por textos encriptados em que a mensagem chega tão directamente que o óbvio devía ser sinónimo banido do dicionário e nunca me ralei com a afluência a esta Árvore, assim como não faço cuorum para comentários em espaços terceiros. Quem cá quiser vir para ler será benvindo, quem procurar outro tipo de diversão enganou-se na porta. É que o meu mundo é lá fora e é bem real, por isso as páginas de uma sebenta sempre serão mais apelativas, sem necessidade de ligações a outras redes sociais, sem o mendigar de uma apreciação, apenas e cruamente o meu verbo, por mais tosco e pontiagudo que ele seja. É-o na verdade e na sinceridade.

segunda-feira, 17 de janeiro de 2011

Refém




Se eu aqui vier para expiar os meus pecados, sossego. Deixam-se sossegar aqueles que me perseguem, os que me atacam na surpresa de um acordar súbito porque se lembraram de nascer, de ser hora de eu lhes servir, as minhas mãos em queda livre, quero o chão, quero o papel que me apoia o sangue com que vos escrevo, quero espaço para ser e para respirar sem ser por mim num eu que não sou, um outro já que me toma o nome e me inflige outros como eu mesma. Confesso que vos preciso, preciso de sossego, preciso de mim despida.

domingo, 16 de janeiro de 2011

O bater do coração (onze)

Cruzar-me de novo contigo não foi o que doeu. Foi encontrar outro novo, velho, caído, sem sonhos, sem esperança, um discurso monocórdico e estudado, interjeições a rigor com frases da moda. Detesto o teu cheiro. Tu não és ele. Nunca o serás. Tão pouco o imitas bem ou mal, não és sequer a projecção de maturidades ou a expectância do devir, és uma fraude, uma condenação a quem te acompanhar, condeno os meus passos por terem parado em frente aos teus. Tu és coxo, mancas de inspiração, transpiras dias úteis, segundas medonhas e remelosas sem direito a faltas, sem direito a sol, sem direito a lembranças. Cruzar-me contigo não foi cruzar-me com ele.

sábado, 15 de janeiro de 2011

Fabular(es)-9º Ensaio






Logo pela manhã afastava as cortinas e espreitava. Ninguém. À noite, antes de cerrar as cortinas espreitava e ninguém. Achou estranho haver um banco de jardim e ninguém se sentar nele...Bancos de jardim sem gente não fazíam sentido. Tão pouco um pardal, um pombo havía lá visto, uma criança a experimentar um pulo, um velho a repousar as artroses. Ninguém. Pensou num banco pintado de fresco e achou a solução para o afastamento de gentes. Mas dia e noite e noite e dia teríam dado tempo para as demãos secarem e ainda sim ninguém se sentava, ninguém reparava que havía um banco de jardim sózinho à espera de gente que o usasse.


Naquela tarde, em vez de espreitar pelas cortinas afastadas, enfrentou o banco e mirou-o bem. Sentou-se. Dali vía a sua janela com as cortinas abertas. Mas não se vía a ela. E pensou que uma janela sem gente não fazía sentido. E desejou ser ela lá na janela e manter-se ela ali sentada no banco de jardim. E uma árvore despontou ao lado dela. E vieram os pardais, depois as crianças e um par de namorados. E ela fechou os olhos feliz pelo banco de jardim. E quando os abriu, cerrou as cortinas da sua janela.

sexta-feira, 14 de janeiro de 2011

Ladaínha




Devagarinho, mansamente, vai-vem que embala o pensar, talvez se afaste a tristeza com tanto balanço, imitações de viagens em águas amigas, água-primeira no ventre da mãe, um tempo de ir, um tempo de recuo, adormece o doer, dá vontade de esquecer o mundo e o relógio que não pára, tic-tac-tic-tac, vai marcando o baloiço enquanto as tranças se encolheram envergonhadas num dia adulto, não pode parar, não quer parar devagarinho, enquanto houver sonho embala o pensar.

quinta-feira, 13 de janeiro de 2011

Escrita circular



Faz de conta. Uma única palavra. Some-se-lhe outra, outras, perfiladas em linhas mais ou menos direitas consoante o cérebro que comanda a mão que as escreve, respiradas em pontuações consoante o autor inspire e expire sem medo da asfixia. Faz de conta. Insira-se-lhe a poética mas também o humor, que ninguém aguenta muita decadência ou muito riso; o suspense e o sensitivo, para que hajam adivinhações e comparações de estado. Faz de conta. Uma única palavra. Fim.

quarta-feira, 12 de janeiro de 2011

As estações da Árvore




Tenho paixão pelo sol quando o Janeiro medeia e suspiro por trovoadas molhadas em pleno Agosto. Sem dúvida que o Outono me completa, as cores, a luz, até a nostalgia de uma saudade de que se não sabe a origem, inquietações, vontade de viajar e regressar a casa. Mas é a inconstância do querer, o aspirar ao que não se toca de momento, que mais marca em mim as estações do Ano. Invernos, só rigorosos, com muito frio, nariz vermelho e chocolate quente, o cheiro verde do pinheiro, canela, arroz-doce. Depois a Primavera, cambraias e cardigans, amendoas doces, cerejeiras em flor, amores-perfeitos, amores que se descobrem quase perfeitos. Do Verão o cheiro do mar, o cheiro do sal na pele, o cheiro da pele quente.

Não sería fantástico ter-se um bocadinho de cada à medida de cada humor?

Não.

O que é que se faría ao desejo da saudade?

terça-feira, 11 de janeiro de 2011

Livros aos pontapés




Mais de mil. Mais de dois mil. Já leram tanto, que outra coisa não fizeram desde o primeiro vagido. São cultos, cultíssimos, uma bagagem literária do tamanho do Expresso-Oriente incluíndo a carruagem dos víveres. Conhecem todos os títulos, recordam todos os autores e ainda tratam pelo nome de baptismo uns quantos que lhes fizeram o favor de na sua companhia, beber um copo à saúde de mais uma dúzia ausente, mas que todos conhecem muito bem de outras farras.

Sabem de tudo [pois se são cultíssimos!!!], nomeie-se o tema e aí estão eles a dissertar, braços abertos para uma platéia (imaginária, que alucinações, que é que esta gente fuma?), rodando a cabeça num gesto empático à espera de afirmativas, ignoram pequenas interrupções, um mundo autista que teve direito a multiplos ensaios, ensaio geral e ante-estreia.

Depois o vazio. Não há mais nada. Não há surpresa, não há emoção, não há reacção. Só livros a pontapé.

segunda-feira, 10 de janeiro de 2011

O canto do olho




O canto da sala observa-a curvada, um dorso arqueado sob roupas de quarto amaciado no filtro pálido da tez matutina em que os padrões inocentes inflamam decotes assimétricos que descem até à correnteza de tábuas perfiladas num chão nodoso aquecido pelos pés nús do dia alvo. Em cada olhar o relance dos cantos da sala, tudo é carne, tudo é luz.

domingo, 9 de janeiro de 2011

Na minha rua




Dia de semana, frio, haverá chuva neste dia, talvez não, só vento e abandono, solidão entre gentes que correm caminhos sabidos e não os querem, mas vão, vão sempre, sobre o pescoço encolhido em golas de sobretudo carregam a obrigação de ir, vão, vão sempre.

A magnólia que floriu durante a noite ilumina uma rua feia, há perfume levado pela rajada de ar furiosa, arranca-lhe flores, botões e ela sempre bela, não desiste, harmoniosamente estende ramadas rosa-açucarada e não desiste.

Dia de semana, nem sequer um Domingo, e esta magnólia florida a contrariar frio que estala no pescoço que se estica para a admirar, devía chover, lavar os olhos de tanto odor e fazer esquecer, ir, ir sempre.

Amanhã talvez não hajam flores no chão, sopradas pelos passos de quem passou a correr e com frio, não há-de haver chuva nem vento, só uma magnólia grande e seca e todos passarão como sempre, numa rua feia onde ontem pensaram que era Primavera.

sábado, 8 de janeiro de 2011

Folhas de papel




Lá porque é Inverno e o rigor encaminha as mãos para bolsos, não quer dizer que o verbo se tenha ausentado para paragens mais amenas ou até hibernado, aguardando melhores formas de respirar. Lá porque é Inverno não deixei a Árvore secar ou descuidei poda e rega, vejo o terreno, vou amontoando folhas que juntas, libertam calores e afastam bicharada. Mas as minhas folhas sempre serão papel, primeiro que tudo papel cravado a palavras que me saiem sem eu as guiar, deixo-as inscreverem-se no peito, fluir às mãos, não as emendo, porquê emendar o bater do coração?

sexta-feira, 7 de janeiro de 2011

Os atrozes



Do plural porque se multiplicam como ratos, procuram carne ofendida e a sua felicidade assenta na infelicidade de outros. Ou melhor, acham-se felizes ao invejar outros, os que não são de seu bando e estirpe, desencolhem o ego à procura da intriga e a sua perturbação mental leva-os a uma realidade distorcida em que a verdade é o encoberto e a mentira -mentirazinha- uma coisa tão pouca como o seu tamanho.

Os atrozes atraiem atrozes, mas funcionam também isolados, sempre na senda de um exército que os siga, minando, dissimulando, agitando ruidosamente, porque sem alarde ninguém os vê, ninguém lhes liga, uma cacofonia irritante que cessa quando se lhes ignora o esbracejar.

Depois é vê-los a correrem para casa, medrosos, expectantes quanto ao contra-ataque.

Mas não há por que lutar contra os atrozes, que perda de tempo, que enfado, que tédio nauseabundo... Deixá-los esconder o rosto, ou puxarem o manto sobre o corpo torto, definhando-se em salivas próprias, sufocando na amargura de nunca serem originais.

quinta-feira, 6 de janeiro de 2011

Noite de romãs


Aconchegou o gato amarelo no regaço, impediu-o na vontade e contrariou-lhe as unhas espetadas no tecido branco do vestido, olhou-lhe os olhos âmbar e admoestou-o baixinho. O gato pareceu sujeitar-se e franziu ligeiramente o nariz rosa aliviando a pressão das garras. O lume laranja lambía os castanhos até os avermelhar, depois estalava, as madeiras cedíam e esboroavam-se lentamente até uma cinza poeirenta que se acamava sobre outra e outra e mais outra de outras noites sem companhia de fala. A mão quente consolava o dorso do gato, vai-vem a deslizar até à cauda serpenteada, cada afago mais vagaroso que o outro até que se deteve em concha entre as orelhas pontudas. O gato cravou as garras nas coxas dela e impulsionou um salto ágil, veloz, incapaz de ser interrompido. Do lume rolou o madeiro carbonizado e teso e uma romã em equilibrio deixou-se tombar solitária entre diospiros afogueados na madureza do suco. Apanhou a romã e aconchegou-a no regaço. Rolou-a entre mãos e experimentou aprisioná-la entre pernas, depois nos tornozelos e de seguida lançou-a ao alto segurando-a apenas com a palma direita, depois a esquerda, e foi repetindo o arremesso cada vez mais rápido até que o descuido da proeza fendeu a carapaça e coroa do fruto contra o chão que a agarrou. Ficou a olhá-la ao lado do tronco incandescente, algumas bagas soltas como pedras perdidas de um anel de rainha. Segurou uma a uma entre dedos e examinou a sua transparência. Depois levou-as à boca e comprimiu cada bago contra os dentes com a força da lingua. Um fio de sumo desenhou-lhe uma lágrima vermelha nas comissuras. O gato amarelo regressou, acomodou-se em lavagens junto à cinza do borralho. Ela descascou a romã contando 125 bagas que lhe marcaram a hora de ir dormir.

quarta-feira, 5 de janeiro de 2011

A montanha


Depois da subida vencida com as pernas a tremerem e a boca aberta tentar recuperar a entrada de ar ao ritmo do coração, os olhos não estavam preparados para focar um topo assim. Do verdejar que se esperava, insectos a animar, frutos de bolotas caídas no amadurecer de sol, da chuva, do sacudir do vento, cheiro cortante e doce da urze, a bofetada de um chão liso como uma mesa de refeição.
As árvores havíam-se escapado sem dúvida, folhas não podíam haver, claro, até as pedras embirrentas se tinham transformado em memória e dos poucos altos, covas poucas, a erva sorría alteada a medida certa sem resguardo ou tufo maior.
Ainda assim, um quase ermo, quase descampado, alegrava a descoberta de estar no alto, o alto, o mais alto do mundo.
Alguns pares namoravam decorando o lugar secreto onde o amor piquenicava.

terça-feira, 4 de janeiro de 2011

O que eu digo, o que tu ouves


No vértice da folha é que encontramos o sentido do verbo em duplicado, do que demos e que vai directo à boca do outro, enrolam-se os sentidos que no caminho feito se transfiguram em sentires. Muito do que saíu de nós não chega ao destino sem uma amarrotadela, um beliscão, um embrulho deformado no tempo dos ares transportarem as palavras ditas para escritas e destas para as ouvidas em voz tentada na imitação.
O que eu te digo e escrevo chega-te com a tua voz ou, numa tentativa de aproximar a realidade em plano único, com a minha clonada.
É assim que escorregam as intenções, as malformações do querer.
Eu não tinha intenção de te dizer isto ou aquilo, deformaste as minhas palavras ou, não ponhas palavras na minha boca.
Pois não.
As palavras são minhas e são tuas mas não servem dois senhores em simultâneo. Caprichosas, de amante único. E brejeiras que também se dão ao paladar de quem as sabe dizer. Replicadas. Não as minhas. E se por aqui seguir, sustendo a respiração em cada ponto que intervale estas verdades, outras tantas se lerão, já não minhas, mas as vossas vozes em leitura muda pelo peso do que quis dizer.

segunda-feira, 3 de janeiro de 2011

O livro negro dos homens (onze)


Dia após dia na ferocidade das horas, envelhecia os sentidos para além da casca do corpo. Não houvera um tempo antes e agora este, imperfeito, porque também de perfeito não registara louvor ou outra coisa de maior que o levasse a lembrar e ter vontade de aí regressar. Por isso não tinha dor, não tinha alivio, não tinha a humidade dos olhos dos que gostam de memórias nem a inquietude dos que buscam sempre-sempre mesmo sem saber o quê crendo que a felicidade é a doutrina. Cumprira no entanto, um bom homem, silencioso ante a perda e de mão estendida a honrar a educação, nada a apontar-se-lhe, uma quase ausência-presente.

domingo, 2 de janeiro de 2011

Exercicios de melancolia


Não há calor que me não faça desejar o Outono, tardes frescas em que a pele se eriça na pena do sol baixo e fraco mudado pelas horas dos homens para mais cedo dormir. Olho o Rio e choro infâncias mondegas. Já este outro, adulto, convoca-me mulher, não há medo nem vergonha, nem desquerer que me vista para além da vontade. Quisera-te passeio, jogo nas asas abertas da gaivota triste que pia anos e mais anos, tantos. Não há espelho deste Tejo ao astro que me não faça lembrar o chumbo dos dias magros, apertados na gola do pescoço, nem é frio, nem é arrepio, é o meu eu a saír do cais.

sábado, 1 de janeiro de 2011

Agenda 2011-Janeiro


Páginas limpas, sem odores, virginais.
Aqui começa tudo, não há vida para trás, Janeiro é o primeiro dos mentirosos, leva o colectivo na alucinação pungente do recomeço [quando começas, começo a partir de Janeiro], o outro já era e nada reboca, descascado até ao osso limpou das últimas horas [hoje é o primeiro dia da minha vida] o vidro embaciado, oh memóras malditas vão-se!!!
[Agenda: Coisas que não sei, coisas que quero, coisas melhores, coisas e mais coisas e também um eu todo novo, todo impossível.]
É impossível ser eu de novo sem o eu do ano findo, por isso entrelaço nas fitas das sapatilhas todos os anos desde o primeiro dia de Janeiro de um Ano que foi novo naquele dia e prometo! A partir de agora, só páginas limpas, só escrita à sério, só eu impossível, só eu numa estória!!!