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segunda-feira, 29 de setembro de 2008

Hoje choveu

Do alto do seu tamanho vía-se, um pouco ondulada pela frescura da madrugada que molhara pela noite fora. Ouvira-a. Fizera força para não adormecer e deixar-se embalar na cantoria feiticeira. Assim as adivinhas sobre o formato das poças podíam ter o tamanho que quisesse. Ela podía ter o tamanho que quisesse. Mesmo ondulada. Mesmo arrepiada pelo assobio do vento fino. Mesmo cansada da noite em branco na luta contra a ladaínha da chuva a chamá-la ao sossego, prefería-se acordada na recordação de um outro amanhecer também a chuvisnar, o cabelo muito comprido molhado, o casaco de lã impermeável cravejado de gotículas. Agora acha que não eram da chuva, eram dos olhos dele ou dos olhos dela, agora acha que não é importante... O que foi grande foi a chuva devagarinho, as poças largas onde se viram reflectidos e encaixados a fazerem de centopeia de quatro pernas, por dentro do laguinho raso, por dentro de si a amarinharem e apertarem e sufocarem e até fingir que não íam sentir tristeza da despedida nem naquele dia nem nunca quando voltasse a caír chuva e se lembrassem um do outro em qualquer lugar do mundo onde estivessem. Um sem o outro.
Do alto do seu tamanho viu-se. Agachou-se. Soprou na poça de chuva morta. O espelho de água ondulou-se. Assim parecía que ainda tinha o cabelo muito comprido molhado. De joelhos, passou as duas mãos na cabeça rapada e disse Olá, tive saudades tuas, hoje choveu.

domingo, 28 de setembro de 2008

Cenas banais

Escondeu a boca na mão fechada, bocejou, tentou disfarçar o tédio que lhe causava aquela zoada da voz alheia e no entanto, conseguía distintamente aperceber-se de todas as conversas que se desenvolvíam ao redor, perguntas e respostas, afirmações, até acusações, estas as que melhor lhe chegavam e respondía muda como se fosse pertença dela o diálogo, esquecía-se de seguir o livro que mantinha aberto entre mãos, colava os olhos nas frases impressas e não vía nada, tentava adivinhar o rosto e a expressão dos julgados, o que diríam em defesa, o que alegaría ela caso fosse ela que estivesse sentada em frente do seu juíz, quería despachar aquilo, talvez o acusasse retoricamente, sem debilidades de dependência amorosa ou invocação de tempos melhores, avançar sem medo de uma solidão futura e bocejou, já não era fastio, era saber de antemão o que se seguiría, as lágrimas chegaríam mais tarde, não muito, mas o tarde suficiente para não haver tempo de lhe dizer tudo ou dizer-lhe tudo quando devería ter permanecido calada, apanhou ao acaso uma frase do livro e ficou-se por ali a lê-la muitas vezes sem entender o sentido das palavras, insistiu, uma das vozes calou-se, voltou a perder o interesse na leitura, seguiu o passo que saíu acelerado a fugir do local do crime, pensou que o crime não compensa e disse adeus também, conforme a mulher que saíra dissera segundos antes ao homem que lhe pedira para ficar.

quinta-feira, 25 de setembro de 2008

É Quinta-Feira

É quinta-feira. Dobrou a metade da semana, ainda resta mais um. É quinta-feira, é número ímpar e se fosse Verão touros vermelhos víam o dia último entre aplausos de noites tombadas, é dia cabrão. É quinta-feira nos repiques do sino, vai a quarta a enterrar as cinzas dos sonhos, dá-lhe azar as pérolas brancas no rosário oferecido pelas mãos mortas de heranças. É quinta-feira no sono corrido, veste o cinza cabeça abaixo, esqueceu-se da prata das cores na pressa das janelas fechadas, talvez chova ou talvez arda, tanto faz se vai de costas ou se leva o coração. É quinta-feira, já se perdeu o olhar, melhor de peito fechado às bocas abertas ao vento que das palavras na memória secam acenos e saudades e até dos beijos sente a farpa pendurada levar-lhe o sangue arrojado.

quarta-feira, 24 de setembro de 2008

O jantar (Peixe)

(continuação)

- Caramba! Você de facto tem uma sede!? Não é qualquer um que vira um Borgonha de assentada!
- Que tem? Até eu sou capaz de fazer o mesmo!
Lucia não deu tempo para que a conversa desviasse o rumo e olhando José Maria desafiadoramente serviu o copo de cristal até à beirada e de olhos brilhantes e muito abertos bebeu no gole farto o tinto encorpado. Franz bateu palmas sincopadamente.
- Fantástico! Uma proeza digna de uma dama, sem dúvida... sem dúvida - e abanava ligeiramente a cabeça.
- Falou o cavalheiro exemplar! Cá vamos nós! Preparem-se que vem sermão! Que ferro! - acrescentou José Maria alisando a ponta do bigode.
- Ah! Deixemo-lo falar! Agora fui eu que fiquei curioso! Diga, caro Franz, como são as damas que conhece? Contidas? Rosadas na sua carnação? Coram, imagino! E até tocam piano! E falam francês! Conhece este dito popular? Não acredito que um homem tão letrado como você nunca tenha ouvido este ditoche!
- Mas que ares são esses David? Não lhe conhecía a veia acintosa!
- É para que veja! Que até no fundo dos copos se descobrem borras do que somos! Mas não o nego!
- Boa, boa! - agitou José Maria de sorriso largo.
- Mar...
- O quê?- perguntaram todos
- Mar... o mar que nós somos, o sal da nossa alma...
A criada fardada entrou com a travessa de um gigantesco pargo assado, muito brilhante, de escolta batatinhas caramelizadas pelo ar quente do forno, interrompendo o balbuciar de Fernando sempre empunhando o copo de Borgonha. Serviram-se à vez, pela direita, os copos encheram-se de novo de branco seco muito fresco e fazendo transpirar o cristal como pequenos diamantes. Recomeçaram a refeição, o degustar do peixe firme e odorífero silenciou a discordância, a dona da casa a mirá-los na expectativa do reacender.
- Parabéns! Está uma delicia! Sabe a ...
- Mar, sabe a mar...
- E você a dar-lhe! Como é insistente! E patético!
- O mar é o principio das coisas, o porto dos adeuses e das saudades, dos amores de véspera comidos a tragos largos, não se sabe quando se volta, quer-se deixar de dentro no dentro da mulher, muito para além da recordação, deixa-se esperma que é um bocado do homem que vai tragar outros sitios como mulheres que se despedem, ao mar se volta, a criança que pode ter gerado é num mar que aumenta na barriga da mulher. O mar é vida.
Ficaram todos a olhar Lucia. Depois atacou o seu prato de novo, com muito apetite.
- Mar salgado, tantas lágrimas de mar...
José Maria pigarreou a disfarçar a emoção das palavras de Lucia e do remate de Fernando.
A anfitriã segurou a mão próxima e apertou-a ligeiramente.

(continua)

terça-feira, 23 de setembro de 2008

O gosma ou O desabafo de um desajustado

Há vezes em que o organismo se rebela, transborda o excesso do que nos forrou por dentro e numa golfada vomita todo o mal que de alguma forma tenta entrar nas veias.


Sua-se, cólicas e náuseas dobram o homem pela metade, quase se sente o cheiro do asco.Chegam e lambem as mãos esticadas no oferecimento do (im)préstimo cervical, riem por imitação, aplaudem a linha na laracha adivinhada e batida, esperam a atenção da chefia, hoje chegaram mais cedo, partirão mais tarde no exemplo do funcionário que se aguarda.


Há vezes em que o meu organismo não aguenta e das tripas faço alma.


Há dias em que me perco de mim e por mais que grite não me encontro.


(Ou desfaço-me e da alma faço tripas).

segunda-feira, 22 de setembro de 2008

Estavas à minha espera...

Estava. Tenho esperado por ti, nos últimos dias deixei que uma pontinha de ansiedade me agarrasse e aquela sensação de adrenalina dormente fez-me chegar à porta muitas vezes, tantas confesso, que ao menor ruído ouvía-te os passos ou até esperava surpreender-te preparado de punho em riste para bateres na madeira da minha porta... e eu ali, sorridente por te adivinhar antes do toque.


Tenho estado à tua espera porque tive muitas saudades. Agora já não me lembro como eram, que estás aqui comigo e não vou desperdiçar tempo nem emoções a falar do que passou. Mas esperei tanto tempo, tanto... Passou um ano, um ano dificil sem ti, sem a tua voz morna, o teu estar sossegado, a nossa bucólica presença um para o outro, apenas abraçados no silêncio do crepitar da lareira sem nos ralarmos que ainda faça calor pelo dia fora. E a chuva? A chuva que nos molha os olhos de tanto olharmos um para o outro...


Esperei por ti e fiz tantos projectos quanto os sonhos que tive contigo e das coisas que haveremos de fazer juntos. Vais ficar comigo? Não respondas, não quero saber. Só quero que saibas que tenho estado à tua espera e estou feliz que tenhas chegado Outono.

domingo, 21 de setembro de 2008

Os estranhos

Fez-lhe um gesto com o braço dando-lhe a primazia de passagem. Carregaram à vez nos botões marcando o piso onde sairíam. Ela ficou próximo da porta, ele encostado ao aço que revestía as paredes do elevador. Ela subía com o olhar os andares a passarem devagar. Ele subía com o olhar os saltos finos e a linha preta das meias que desaparecía sob a saia travada.



Um solavanco. O elevador estacou. Depois desceu um pouco com um salto. Rangeu. Imóvel.



Ela carregou várias vezes no botão do andar onde quería saír. Ele aproximou-se. Repetiu o gesto dela para o número que marcava a saída dele. Ela carregou na saída. Depois rápido e quase furiosa calcou todos os números. Ele carregou no botão vermelho e o alarme gritou. Ela olhou para o homem, ele olhou-a confiante da sua acção. Silêncio. Ela encostou o dedo no alarme e carregou com força prolongando o som fino de campaínha.



O elevador deu mais um soluço. Eles recuaram e encostaram-se aos cantos. Depois parou. Eles olharam-se. Aproximaram-se da porta e em uníssono gritaram socorro, bateram com as palmas com força no aço ressoando um som metálico frio. Silêncio.



Ele acocorou-se num canto, é esperar, disse. Ela olhou-o e sussurrou, ninguém sabe que estamos aqui fechados. Alguém há-de vir, acalmou-a, mas quando, perguntou ela, não deve demorar, não se enerve, não gosto de espaços fechados, claustrofobia, não, não, mas não gosto.



Alarme. Silêncio. Alarme, alarme, alarme, a campainha perdeu a força e pareceu soar como um besouro cansado.



E agora? Esperemos, melhor sentar-se, não quero. Silêncio.



Ela escorregou pela parede lisa de aço, deitou as pernas de lado, os saltos a afiarem-se no tapete que cobría o fundo do elevador. Pousou uma mão sobre as pernas vestidas de negro. Costuma vir aqui, não, é a 1ª vez, eu também, vinha por causa de uma entrevista, ah, pois. Está abafado, sim, é normal, espero que apareça alguém antes de ficarmos sem ar, ora isso não há-de acontecer, acha, acho, já não sei, estamos aqui há muito tempo, nem tanto, apenas 10m, só? Parece uma eternidade, pois, acontece quando nos tiram a liberdade, quando nos prendem contra vontade, como sabe, já esteve preso, não, é uma forma de dizer, que comparação, mas é a realidade, você está presa, se não estivesse tinha ido à sua vida, mas não é o mesmo, acaba por ser, você é sempre assim, assim como, teimoso, só com mulheres claustrofóbicas, não seja estupido, está a perder a pose, você conhece-me de algum lado para me dizer isso, tirei-lhe a pinta assim que entrámos no elevador, o quê, topei-a logo com essas meias com esse risco atrás muito direito, deve ter a mania que é boa, você é um tarado, se calhar sou e até sou capaz de a comer, aos pedacinhos, bocadinho a bocadinho...



Ela levantou-se e gritou desesperadamente, deu murros na porta, carregou todos os botões.



Não seja patética, se a quisesse atacar já o tería feito, foi você que parou o elevador não foi, fez de propósito, sim, sim, o que quiser. Sente-se, poupe-se, poupe-nos o ar.



Ela enrolou-se ao canto, tapou o rosto com ambas mãos e chorou aos soluços. Vá lá, não fique assim, daqui a nada tiram-nos daqui, deixe-me. Escondeu a face entre os joelhos e fungou. Ele aproximou-se dela e pôs-lhe a mão sobre o ombro, depois sobre os cabelos, ela sossegou, levantou a cara, a maquilhagem deslizava em fios negros até pingar pelo queixo. Ele puxou do seu lenço e enxugou-lhe as lágrimas, depois molhou uma ponta na sua saliva e limpou-lhe os borrões à volta dos olhos. Ela saltou-lhe para o pescoço e abraçou-o irrompendo de novo no choro. Ele apertou-a. Depois embalou-a ao de leve, ciciou-lhe palavras de conforto, estou aqui, estou aqui.



A luz desapareceu por completo, depois alumiou-se muito viva, o elevador disparou na sua corrida piso acima, eles apartaram-se, ela mais chegada à saída, ele encostado nas paredes de aço.



As portas descerraram-se lentamente e ele ficou a ver afastarem-se um par de pernas com uma linha negra que desaparecía sob uma saia travada.




2ª participação no Elevador

sábado, 20 de setembro de 2008

Antes do dia nascer

Levantou-se.
Devagar.
Na ponta dos pés para não acordar o dia, meio estremunhado e preguiçoso, ainda ausente das suas obrigações. Afastou as cortinas e encarou a madrugada: fresco, cheiro de terra quente por dentro, húmida à face, fofa, permeável à chuva que nos primeiros ensaios não sabe como há-de caír, se de pingas grossas e constantes se disfarçada de borrifos mais iguais a pó. Há azul indigo no ar, um toldo que capeia o mundo.
O mundo é o que a mulher vê da sua janela e o que os olhos lhe permitem atingir. O que os olhos fechados inspiram ao absorver esta cor funda e triste para dentro de si e tão bem condizem com partidas e despedidas e promessas que se firmam com o propósito de se mentir por bem, pois sabe-se que nunca passarão de marcos a lembrar a hora de dizer adeus e apenas isso. É como uma condecoração que se espeta na carne do peito, no lado do coração, legendando a emoção partilhada, um sinal do tempo.
A mulher passa a mão sobre as suas medalhas, ao toque recorda cada palavra dada. Tem saudades. Não sabe que são saudades, sabe-lhe a tristeza, sabe-lhe a azul da madrugada, sabe-lhe a um tempo vagaroso pelos corredores da noite.
Os candeeiros de rua descansam da sua vigília.
O dia acordou.
A mulher tapa o rosto envolto nas cortinas brancas de gaze.
Devagar.

quarta-feira, 17 de setembro de 2008

Fabular(es) - 4º Ensaio

(De cócoras, os pés já a incharem e a tornarem-se vermelhos de estrangulados pelo peso do todo)
- E tu?
- Eu?...
(De olhos fechados, não a pensar nas palavras mas a definir sabores)
- Sim, tu, que disseste?
[Eu disse-lhe que não precisava pedir-me, assim, pedir-me como um pedido, entendes, bastava que me desse a entender que o quería. Eu ía. Ía de olhos fechados e de braço esticado na guia da mão atada à minha, aos tropeções e cambaleando como um bêbado mas ía mesmo.]
- Não lhe disse nada...
- Tss! Bela oportunidade! Agora que havías de falar, calas-te! havía de ser comigo!
- Que queres? Não me lembrei de nada... nada que estivesse à altura, só me vinham à cabeça coisas banais e que já toda a gente disse!
- Dizías à mesma, bolas! Mais valia do que ficares como o espantalho!
[Disse-lhe tudo com os olhos, percebeu tudo, não foi preciso estragar o momento com confissões ou gostos peculiares ou dizer que era diferente, bastou olhar e encontrar o olhar, uma seriedade que quase magoava de tanto querer, entendes, e era medo, medo sim daquele minuto]
- Para dizer coisas que já se sabem mais vale o silêncio. Até o do espantalho. E olha que serve.
(Sentam-se. As pernas traçadas moem os artelhos na gravilha. Um pega num graveto e risca a terra grossa. Faz um coração. O outro arranca-lhe o lápis improvisado e atravessa o coração na diagonal, faz uma seta)
- E agora?
- Não sei...
- Nunca mais se encontram? Nunca mais? Nunca na vida?
[E aquele minuto doeu uma vida, beijámo-nos e ao mesmo tempo crescíamos, crescíamos e depois já quase do mesmo tamanho ainda nos olhávamos e queríamos, sem palavras, tudo sem dizermos nada, bastava a mão esquerda na direita e amávamo-nos deitados no horizonte, ou na terra ou onde nos quiséssemos e nada fazía falta, nada.]
- Não sei, talvez um dia.
- Pois... Quando forem grandes os dois! Pode ser que se encontrem!
- Pois é, é verdade, tens razão...
(Aplicam o dedo no carolo e empurram o berlinde. Um deles desenhou umas gotinhas de sangue a pingar do coração atravessado pela seta. O abafão aguarda)

segunda-feira, 15 de setembro de 2008

As palavras por vezes...

Às vezes deslizo palavras pela folha. Outras tiro da ponta da lingua, por baixo, junto às bochechas, algumas renitentes que se agarram às campainhas e me fazem comichão e tossicar como se tivesse penas na garganta. Muitas arranco do coração, cravejam-me, preferível a dor rápida de as tirar do que o macerar-me contínuo e lento a beber-me o sangue. Umas tantas não sei de onde vêm... se das saudades, se das saudades do que não me lembro ou se das saudades do que devo ter vivido como outrém e agora me atormentam. Vilmente. Cobardemente. Eu devería recordar-me para saber o que enfrentar mas não! aparecem, tomam conta de mim, das minhas mãos, da minha folha, da minha tranquilidade. Enxoto-as para junto das outras palavras mas estas não se domesticam entre linhas, querem espaço só seu, atenção especial, exigem luzes de prima donna... Às vezes escrevo coisas de mim que não sabía até as escrever, escrevo coisas de mim que nunca pensei sentir e doer e fazem-me rir e dançar e voar. Voar! Voar!!!
Às vezes deslizo palavras pelos pingos das lágrimas. Molham-me a folha, mancham-me as palavras e no entanto, está lá tudo, as palavras, o sentir, a saudade, o amor, os abraços, o regresso! Ai, como é bom sentir a dor do regresso!
Às vezes peço às palavras para me enganarem.

sexta-feira, 12 de setembro de 2008

Contos Curtos Quase Escuros - A subir

Subiram os degraus a par. Entre patamares e a respiração a tirar perguntas e respostas ele agarrou-lhe o pescoço e aproximou o rosto do dela, um sopro do hálito a denotar surpresa, olhou-a no fundo dos olhos, ela cerrou a luz e esticou os beiços preparada para ser beijada. Apertada, encostada a ele e costas na parede para não poder fugir, sabía a cena, já havía visto em filmes e ouvira contar destes sobressaltos que fazem perder a força nas pernas e sobem calores desde os tornozelos até à boca da barriga. Era suposto ela demonstrar decoro e tentar escapar-se ao ataque, a respiração um pouco agitada entre o deixa-me e o tem-me aqui, a vez dele calá-la com a boca em sucção pelos lábios, pescoço e abrir-lhe a blusa na violência sedutora das mãos que trepam por espaços aconchegados e conduzidos entre botões e fechos. Finalmente, ele dir-lhe ía qualquer coisa ao ouvido que se perdería no meio do penteado que habilmente desmanchara e sem mais resistência ela deixaría que o corpo se fizesse uma porta franqueada soçobrando gemidos e pequenos urros a incitar à chegada. Era sempre a subir, sempre, mais, quase, mais, agora, não há que perder o ânimo, agora, agora, evocam-se os deuses e os santos, suspende-se a respiração, o movimento, o mundo...
- Mas o que é que tu tens no olho?!

quinta-feira, 11 de setembro de 2008

Um pouco de paixão

Tenho saudades tuas. Daquelas que me obrigam a ir mais cedo para a cama, quem sabe esta noite tenho sorte e sonho contigo. Nós os dois. Se não adormecer logo, pelo menos obrigo-me a ficar no escuro, olhos fechados mas sorriso iluminado por te imaginar chegar, agarrares as minhas mãos, olhares para elas com muita atenção, passares os teus dedos ao longo do comprimento dos meus, depois um beijo na palma. Abraço. Abraço-te à volta do pescoço, gosto sempre de sentir essa linha onde o cabelo termina e deixa sentir a macieza da pele, a cova. Aconchegas-me a ti devagar.
Abro os olhos.
De olhos abertos vejo-te, sinto. Como se realmente estivesses agora a abraçar-me.
Deixo-me ir um pouco mais além. Experimento que me beijas.
Fecho os olhos.
Não consigo beijar-te sem ser de olhos cerrados, parece que tudo se dimensiona na boca, na pele dos lábios, na humidade que faz deslizar a boca na boca, a lingua nos lábios, nos cantinhos, no puxar sorvente e lento e mesmo de olhos fechados vejo os teus olhos fechados.
Tenho saudades de ti.
Daquelas que me impelem a imaginar beijar-te e até adivinhar a que cheiras.
Cheiras a mim, aos meus sonhos.

quarta-feira, 10 de setembro de 2008

O jantar (Sopas)

... continuação



Porque se tratava de um jantar a sopa foi o primeiro prato a ser servido.

José Maria apurou a vista ao filete dourado da beirada do serviço branco que aguardava o creme de espargos.

Algum silêncio quase solene perante os aromas até Lucia dar um esticão no guardanapo e rodear o decote com o mesmo. Fernando sobressaltou-se pelo som de chicote e bateu com a mão no copo de água derramando-o. A anfitriã pousou-lhe a mão sobre a sua, trémula, sossegando-o mas ele, ansioso pelos demais presentes, levantou-se de um salto e desapareceu pelo corredor, de pasta preta entalada no sovaco.

- Lamentável... mas caricato!

- Meu caro Franz, estranharía que você não dissesse qualquer coisa...

- E essa sua observação?! É suposto querer dizer o quê?

- Opinar, opinar! Toda a gente sabe como você gosta de opinar!

- Todos gostamos, aliás -acrescentou David- cabeças livres têm esse fruto sempre pronto a ser espremido!

- Que fruto? De que falam? Esta sopa está óptima! Mas que fruta? Não percebo nada desta conversa! E o Fernando? Que se passa? Mal da barriga? Diarréia? Amarelo como está...

- Não, não é nada disso! Apenas, sabem... ele é timido, e tu Lucia assustaste-o...

- Eu???

- Carissima Lucia não fez nada. O homenzinho é mesmo esquisto, como todos sabem...

- Cuidai quem fala... A tentar impressionar? ora, ora!

- José Maria, é a segunda vez que você me aferroa!

- Meus senhores! Por favor! As senhoras! Não é hora para avaliarmos sensibilidades.

A dona da casa sorriu a David agradecida por atalhar o que podería ser o início de uma violenta discussão.

O prato de sopa de Fernando arrefeceu até formar uma capa, o som de metal dos talheres repousou as vozes e o estomago agora preparado para se irrigar acalmou os diferendos.

Bebeu-se uns goles de clarete, Franz elevou o copo e elogiou o verde que escolhera para si enquanto Lucia não lhe deu tempo para terminar a adjectivação e de uma assentada virou o conteúdo do seu. José Maria arqueou o sobrolho, a boca num sorriso branco e por baixo da mesa roçou o tecido das suas calças no joelho dela. Ela olhou-o descarada e lambeu os lábios.

David tossicou, limpou gentil a boca e voltou a pousar o guardanapo sobre o colo.

Foi quando Fernando entrou, muito pálido, a fungar. Sentou-se. Puxou da garrafa de vinho tinto e serviu-se até este transbordar e manchar a toalha branca. Levantou o copo, o Borgonha a pingar-lhe a mão, o punho da camisa. Bebeu consolado. Empurrou o creme de espargos intocado para longe de si.





continua

terça-feira, 9 de setembro de 2008

Imolação

Não é preciso mais luz. Agarro nas mãos e preparo dedos e pulsos, faço um risco ao meio e separo cada metade de mim, deixo verter. Por vezes ferve, queima, ateia palavras e elas velozes saem nas chispas do pensamento; Doutras, não faço nada, é só sentir deslizarem-me como uma noite em que escorregamos por sexos e amores. Sabe-se ao que sabe. Quer-se mais, prende-se mais, dá-se mais e mais. Não há tempo, não há contadores, não há tamanhos. O que for enche, revolta, alimenta e renova-me. Recria-me. No derramado acabo por me beber, não me sacia, vicia, preciso mais, quero melhor. Há mais luz. Desperdiço mãos e dedos, empatam-me. Soltas, progridem frases perante os meus olhos. Fecho-os. Abro-os. Nada desapareceu nesta insana felicidade de procura e busca, perseguição e caça. Abato-me. Disparo flechas a mim mesma e vejo-me sangrar no verbo ingrato. Sol. Ardo.

Riscos

Tenho dias de lápis e borracha e outros de caneta.
Mas hoje é daqueles que só a sumo de limão em que apenas o calor das mãos faz sobressaír o impresso das letras.

segunda-feira, 8 de setembro de 2008

A rapariga do livro

Gostava tanto , tanto da capa que por temer acontecer-lhe alguma coisa forrou o livro. Era um livro grosso, muitas páginas, sem um único desenho, só letras e mais letras. Na verdade comprara o livro mais pela beleza da ilustração da capa do que pelo seu conteúdo, não era muito dada a leituras, acabavam por a enfastiar. O que gostava mesmo era dos desenhos, mas este só o da capa, flores cor-de-rosa que tombavam de uma árvore curva e caíam sobre o cabelo longo de uma rapariga vestida de branco que recostada no tronco se debruçava sobre um livro aberto. Tinha para si que aquela figura era ela, gostava de se imaginar assim, a ler à sombra de uma cerejeira em flor.


Forrou o livro esmeradamente. Nas voltas e voltas que lhe deu lá se abríam as folhas e chamavam a sua atenção para uma e outra linha. Lía. Mais um vinco. Frases. Lía. Mais uma dobra. Sentou-se. Página um. A rapariga do livro.


(A rapariga do livro tinha sobre si um encanto que ninguém conseguía desatar: estava condenada à eternidade de ler um livro sem fim).


Que disparate! Era por coisas destas que se aborrecía. Recostou-se na cadeira. Tirou um pé do sapato, mexeu os dedos, sentiu fresco.


(Para todo o sempre a rapariga folheava à medida da leitura em voz baixa, as páginas intermináveis de uma história que nunca acabaría. A cerejeira floresceu, deixou caír as flores rosadas, deu frutos vermelhos e brilhantes, perdeu toda a folhagem, fez-se morta e mirrada e de novo despontou pequenos troços muito verdes que antecederam flores perfumadas).


Descalçou o outro pé. Afagou-o no peito do outro. Gostou da sensação de encaixe perfeito que a curvatura de um permitia ao alto do outro. Tentou entrelaçar os dedos, sentiu os nós dos tornozelos a deslizarem sob a planta morna e macia do pé.


(Um dia a rapariga já cansada de ler em voz baixa, emudeceu. E embora continuasse na sua condenação nenhum som embalava a cerejeira, que se dobrou, dobrou e dobrou cada vez mais).


Enfiou os dois pés num só sapato, mal cabíam os dedos, sobravam os calcanhares, apertavam-se os dez num espaço sem ar, sem forma, esbeiçava o calçado a transbordar de um número que não esperava.


(E como se não tivesse sinal da história avançar pela voz baixa da rapariga, a cerejeira esgotou-se na avalanche de flores cor-de-rosa até a cobrir toda e apenas restar um livro aberto, caído sem dono e perdido para todo o sempre).


Agarrou num lápis e escreveu FIM. Depois rasgou a folha que forrava a capa dura do livro grosso e passou a mão pela ilustração que a encantava. Uma cerejeira levemente curva pingava flores cor-de-rosa sobre um livro intitulado "A rapariga que não gostava de ler".


Calçou-se. Abriu o livro e ficou a admirar as ilustrações pastel que cobríam todas as páginas.


(in Telas, C.G.-Outubro/2006)

quinta-feira, 4 de setembro de 2008

Distinção Setembro 2008



Há blogs que pela sua qualidade me merecem destaque.


Seja pelas palavras ou pela imagem, pela constância do nível e empenho do seu autor, pela inovação dos temas, pela simplicidade com que me fazem viajar. Pelo tanto que me dão.
Assim, resolvi publicamente nomeá-los, sendo certo que a regra única é o meu gosto pessoal pelo blog.


Não é um prémio nem um meme.Não é uma corrente e logo não é transmissível a mais ninguém pelo que só a Árvore das Palavras tem o direito sobre o registo de os indicar e o indicado não o pode oferecer.


Todos os meses, aos primeiros dias, revelarei a minha escolha. Publicarei aqui o selo Distinção Árvore das Palavras com a identificação do meu seleccionado de cada mês e gostaría que o blog distinguido também o exibisse. Mas isso já fica por decisão do visado.


Setembro tem Ares da Minha Graça. Da dela, entenda-se. Da Patti, a autora.


Cada texto é um quadro vivo, vibrante, satírico, caricatural, espirituoso. Verdadeiro. E a vertente opinião está assinada por quem tem coragem e chic para o fazer na 1ª pessoa.
A acompanhar, as belas imagens na ponta do dedo sempre de prontidão.


Eu aconselho.

terça-feira, 2 de setembro de 2008

(Texto)Tão banal como o riso

Às vezes tinha dias de riso. Daqueles que disparam por tudo e por nada, em que o nada era o mote e o tudo era a gargalhada colectiva. Meias frases eram o saca-rolhas que fazía saltar uma mente endiabrada e muito bem lubrificada pela progressão explosiva com que desenvolvía o motor de uma qualquer história arranjada à pressão, os outros uma achega, um fertilizante que impedía que o ponto final arrasasse o trabalho do aparelho vocal e da extensão e compressão das paredes abdominais. Nesses dias havía sempre sol. Era amarelo. E vía-se, redondo, como se costumava desenhar quando ainda se vestía bibe. Por todo o dia ría e mesmo inquirido sobre a graça achava graça à questão, encontrava-se mais sagaz nestes dias, apurado com soluções para problemas que se assemelhavam apenas e tão só a complicações. Depois os dias de riso começaram a rarear, ou não podía ou não devía ou não se lembrava ou não tinha vontade. Às vezes tinha dias que tentava rir como nos dias de riso mas não lhes achava piada nenhuma ou até se considerava um tolo. O sol ainda aparecía mas agora escaldava-o e até o amarelo o encandeava. Um dia parou de todo com o riso. Nem sol, nem soluções, nem facilidades nem amarelos. Só um grupo de homens velhos que o rodeava, cotovelada aqui, piscar de olho no outro, uma tosse incontrolável pelos cochichos trocados de como ele os fazía rir e sentirem-se felizes.

segunda-feira, 1 de setembro de 2008

Setembro

Mês nove.

De repente. Assim, num estalar de dedos. Tão intempestivo.

Abriu os braços e atirou o que lhe antecedeu contra a parede, sem piedade e surdo aos rumores que ainda se sentem do mar.

Chegou e instalou-se. Fez-se imponente: O ano que inicia ao nono, que manda nas uvas, nos figos, nos frios matutinos e também nas tardes cansadas, na obrigação, no tempo, Ah! tempo! É tempo de mostrar, provar, prova-me Setembro que te temo nos dias que mirram e eu saudosa (de quê, de quê?) ensaio poemas no agasalho que puxo aos ombros, já é Setembro?!

...

Ficou sério num repente. Ou fiquei eu. Baixo-me pelos castanhos que me sobem à boca, folhas tesas e encarquilhadas de um Verão. Houve Verão este ano? Já não me lembro, parece que tenho de deitar as pernas à vida e correr, correr, correr...



(in Calendário 2008, C.G.)