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segunda-feira, 30 de setembro de 2013

Projecções



 
Fecho a porta devagar, nunca gostei de fazer barulho ao trazer a porta atrás das costas puxada pela mão deixando lá dentro um rasto de mim, uma quase eu, uma quase voz, ainda uma que fica nos abraços das mãos que apertam espáduas e se desprendem na mão que se fecha à pega de um pedaço de metal frio que tranca num trinco para calar sons, abraços, segredos, sussurros.
 
Agora vou, tenho de ir, não quero mais palavras nem que venhas seguir-me nem acenos ou coisa de fatalidade, não vou olhar para trás para saber se me olhas por isso não olhes, dói mais assim para doer menos depois, podía bater com a porta e acabava-se tudo num estrondo para se sossegar no silêncio que o come, mas a sombra que me fica, o decalque da que fui ida esperam-me quando a saudade te for leve.
 
O Outono aguarda-me.
 
 
 
 

domingo, 29 de setembro de 2013

Marcas para não esquecer



Cada ramada arrancada, cada ramo que foi levado, cada fruto comido e saboreado à sombra ou à morna claridade entrecortada da folhagem deixou marcas, cicatrizes, nódulos altos e rugosos que fazem história e me lembram momentos. Uma espécie de régua de crescimento que permite contar alturas, agora estava aqui e agora estavamos aqui e agora ríamos e aqui prometías tudo. Tantas promessas... Não gosto de promessas. Nada. Nem de juras. Nada mesmo. E quando me dizem que vão fazer qualquer coisa, seja lá ela o que for fico sempre a contar que o façam, sem promessas e sem jura. Se tiverem intenção de o não fazer, apenas o dizer para me agradar, não façam. Agrada-me mais que o não digam, assim com nada conto. É que a árvore mesmo sem ramos e folhas continua a crescer e do meio para o alto sempre despontam novos ramos e com verde folhagem que destes em própria altura, haverão de despontar em flor e fruto e saciar-me. Nunca me comprometi com a árvore mas nunca lhe disse adeus.
 
 

sábado, 28 de setembro de 2013

Replicare



Propago-me como ecos gritados em montanhas à espera de um retorno que se espera sejam vozes verdadeiras de gémeos perdidos que nunca se verão e no entanto sabem-se por aí porque se escutam, querem-se numa dúvida convencida dita e repetida à força que acaba por ser história e depois lenda porque se devolveram no som escutado, uma partida torpe, a voz que vai e regressa em menor escala.
Não há outros escondidos, procuro-me na identidade libertada, autorizações àparte que de mim não a precisam e nem a demandam, tomam rumo pela montanha, conheço-os mas não são mais de mim.
Já não precisam do original, são eles o verbo tão primeiro e sejam o grito ou o eco, a graciosidade com que o fazem ilude-me na voz a replicação do que ouço, quem chamou quem, quem sou eu aqui, a do topo do monte de mãos em concha ou a devolução resumida até se apagar e o silêncio encher-me a garganta.
 
 

sexta-feira, 27 de setembro de 2013

Mayday




Cá vou eu, preparem-se, espero que estejam prontos a receber-me e a prestar-me auxilio, vou nas últimas, um fio de sopro atirou-me na esperança de me saber quase perto, preciso-vos na urgência de quem nada mais tem, larguei tudo o que me pesava e atrasava na corrida e segui descalça para rápido vos tocar à certeza do real, quente e palpável, de distância comi muito e empanturrei sentidos o mais nos olhos e na lembrança do dia que agora chega, quero abraços, quero apertos, quero chão do mesmo chão e loucura de não saber dizer, boca cheia de palavras que se atafulham de vontades de ser a primeira a saír e se revela no silêncio parado e suspenso. Cheguei, estou entre os meus.
 
 
 

quinta-feira, 26 de setembro de 2013

Não sou do contra mas gosto de chuva



 
Antes de se ver já se sente, fareja-se, imagina-se o som estalado quando pisa a terra e chega forte. Veio mansa. Tímida. Quase como um pó que incomoda e se sacode deixando um rasto molhado na palma da mão aos tolos que pensam que a sua quase invisibilidade é apenas um estado passageiro que lhes atraiçoou um pedaço do dia.
Eu quero-a e peço-a, condenada pelos demais que me ostracizam pelo gosto invulgar e me imaginam em corridas fortuitas de jornal à cabeça e queixume pendurado nos lábios mal ela desponta, já disse, quero-a, agora que venha à séria e liberte o cheiro da minha recordação no solo quente e alcoólico que racha aos primeiros pingos e depois se empapa em lamas escorregadias.
Intermitente nas chapadas de vento, dá-se a ver e afasta-se, toca-me e seca, um tira-gosto que me acelera o apetite e dá espaço ao verbo.
Hoje há música, hoje danço.
 
 

quarta-feira, 25 de setembro de 2013

Achados



Tinha serventia mais de adorno do que do substantivo a que fora criada e a verdade é que no dia a que dera assento não lhe cuidaram a fragilidade e partiram-lhe um dos pinos das costas. Deixaram-na a um dos cantos, sitio habitual de estar, na diagonal como enfeite a fazer contorno entre o cadeirão de orelhas, robusto e alargado e o móvel de cerejeira, altivo e encerado. Mantinha uma pequena almofada de veludo macio ao alto a encobrir-lhe a mazela, e à distância era uma bonita cadeira de torneados, lacada e dourada que não perturbava a decoração e dava sempre jeito para uma visita que não se esperava quando os lugares estavam ocupados.
Na realidade, quando tal acontecia todos se precipitavam a gritar Nessa Cadeira Não!, mas não se explicava mais além e só entre quatro paredes se refería a tal objecto como a cadeira velha, a cadeira partida, ou em dias de contemplação como a cadeira de palhinha ou a cadeira lacada. Não mencionavam sequer que o encosto tinha sido partido numa festa de comemoração dos 18 anos do rapaz da familia. Que mesmo de pino quebrado tinha servido de assento a uma noiva para várias poses de retrato. Que naquele canto se sentaram de rosto entre as mãos, à vez, filhos que não voltaram a ver os pais. E finalmente um antiquário que apontou Tiffany e a levou para sempre.
 
Nessa noite em que foi despejar o lixo e viu uma Tiffany ao lado do contentor, apurou a vista e levou os dedos aos pinos do encosto. Quase sorriu. Quase ouviu palmas e gargalhadas e um filme rápido passou-lhe trazendo à pouca luz dos candeeiros da rua uma iluminação da memória que julgava apagada.
Procurou a cicatriz no sitio partido. Nada achou.
 
 

terça-feira, 24 de setembro de 2013

O bater do coração (dezanove)



 
Gosto do sabor da surpresa. O descobrir sem suspeitar que me preparo para o fazer, não haver indícios que me encaminhem à adivinhação ou ao mais leve faro sobre. Já falei aqui sobre os bónus da vida, os que de quando em vez me calham em sorte. Essas surpresas e esses bilhetes premiados são a mesma coisa. Nada de materializável ou complicado, a maioria das vezes só eu as encontro especiais, para os outros serão banalidades ou até algum desvario acrescentado de minha pessoa.
Porém, as surpresas maiores e melhores são aquelas que estão misturadas ao alcance da vista imediata, mimetizada, uma camuflagem dificil de desatinar quando os olhos e o ouvido não quer ver e escutar.
E se se quiser ouve-se, aos poucos, depois melhor e cada vez mais distintamente um compasso diferente do ritmo comum do coração escutar-se-á.
E a clareira abre-se mágica, brotando uma árvore imensa de fruta fresca.
 
 

segunda-feira, 23 de setembro de 2013

A outra que vá



 
Não custa, levanta-se bem, alerta e sem remelas embora de bico fechado e sem rodeios na direcção, tudo em ângulos muito direitos, as costas muito direitas, só se adoça para os bichos, a paciência foge-lhe para um saco que há-de transportar como carrego a mais na bolsa a destoar dos sapatos, nunca na regra da moda, figurinos só os seus e ai de quem a contrarie pela manhã. Cinzento, negro, fosco, baço, opacidades de mundos impenetráveis que se recusa explicar pela falta de mistério e essa já é explicação que chegue.
Não custa, segue por dizer que não segue e no tempo da batalha já chegou, sentou, coloriu os olhos, a boca, o tom de voz, os trejeitos de si e de outros que imita para ter vontade de rir sem ter vontade de estar, inventa vontades e vai esquecendo o que custa. Se é para estar, então que se ocupe espaço, que se alastre como um pingo de tinta a empapar um mata-borrão rosa, uma mancha larga e gorda que incomoda e não se esquece. É-se.
Custa regressar e encontrar quem mandou ir. Colar a de dentro à de fora, entrar pela derme de quem sabe estar à espera para suportar peso e segredos e lixo e chocalhos e enganar-se no semblante da representação. Dormir dentro e acordar partindo sem ter a chance de olhar para trás e acenar até logo a nós mesmos.
 
 

domingo, 22 de setembro de 2013

Madrugadas



 
Lucida, consciente e de vontade própria, tudo o que farei daqui para a frente é da minha responsabilidade, mesmo o hipotético medo que me possa arrebitar a pele em picos ao fazer o ângulo do que esconde a curva na adivinhação do que já altera o ritmo cardíaco ou a boca cada vez mais seca, nunca possa levianamente, ser adjectivado a outrém. Eu quero, eu vou. Um crescendo de silêncio que me persegue como uma sombra que pressinto materializada no braço lento que se estica para me prender pela nuca. Engulo. Ouço-me engolir. Não escuto mais nada . Será então, sinónimo duma solidão acompanhada no pressuposto da vigia, que mal dobre a esquina maldita que tento seja corajosa, me há-de agarrar pelas goelas, sufocar, apertar com dedos até estes entrarem na carne pela dor e não deixarem o som que agora não se ouvindo nunca se ouvirá.
 
 
Um gato mia.
 
E de novo.
 
Ergo-me.
 
 
Ainda não clareou, os gatos têm fome, fecho o caderno, desligo o candeeiro e volto para a cama.
 
 

sábado, 21 de setembro de 2013

Coisas sem importância que são importantes




De preferência tudo. E à mão. Na mão. Com as linhas no papel e as linhas dos dedos a contarem relevos de coisas, coisas sem préstimo, velhas, coisas de lixo merecedoras e de muitas perguntas a cada vez que são vistas por olhos sem lentes especiais e sem odor que inquirem enrugados se não está na altura da reforma e de serem trocadas por novas, brilhantes. O cinzeiro lascado pintado à mão que veio dos Açores no azul branco de fundo vidrado com muitas veias pelo uso. A caneca de pintas comprada numa feira na Lousã comida pela cafeína e pelo pingo teimoso que verte. A cadeira com a travessa onde se esfrega a cova do pé à espera de três desejos. O elástico de cabelo que vai do cabelo para o pulso e deste para o alto da cabeça e volta e vem. A caneta de tinta permanente sempre permanente, quase gasta, sempre fiel, quase substituída, volta para ensinar a nova. A garrafa de água que tomba. No frio, o xaile de borbotos e pêlos de gato e cão, as meias de aquecimento pela coxa, o café negro e muito forte, o earl grey com uma rodela fina de limão.
O caderno. Os cadernos. Os cheios. Cheirados e os de uso corrente amaciados na palma inteira a sentir os altinhos da página marcada. Os novos, a estrear, a apalpar o comportamento de receber a seiva com que se desenham os segredos das palavras que se usam para contar tolices tão pueris como as coisas tão importantes que me são para escrever tudo isto.
 
 

sexta-feira, 20 de setembro de 2013

Porquê o Rio



 
No inicio foram as Cartas ao Poeta. Depois, as Crónicas do Tejo. Sem interregno, um Olhar com vista sobre o Rio. O que virá a seguir não sei. Esta tanta de água que me fulmina o coração e aquieta a dor, apazigua os desencontros do olhar entre margens da vida tida e da que se sonha, é mais que ponte, é mais que fronteira liquida entre dois pedaços de terra feita pela mão do homem montada em betão e correria, travessia de lá para cá, ida e regresso a casa.
É a minha paixão, são as minhas viagens ao passado no avanço do cacilheiro guiado pela gaivota desesperada que plana até assentar poiso sobre o relógio nunca certo de outro lado.
São 7 minutos que entram nas veias como uma droga injectada, viciosamente, porque são vida, seja a que se sente latejar, seja a que volta em ondas de calor ardido na memória ou a que se anseia por acontecer no balanço do encosto do barco macio ao cais.
Não sou original nesta paixão. Mas vou continuar a senti-la, e porque é a minha a mais ninguém lhe é dado escrevê-la neste sentir.
 
 

quinta-feira, 19 de setembro de 2013

Outros rios



Luz em doses certas, filtrada em manchas que se espalham vagarosamente e se unem umas às outras criando imaginações de figuras imponentes que me levam ao silêncio respeitoso e admirável do rio tranquilo que desliza no seu tempo, azul, cinza, azul, intercâmbio de saudades.
 
Enamoro-me.
 
Não me tenta seduzir, a sua simplicidade é a rudeza sinuosa contornando margens e adivinhando o novo encanto a cada curva feita e a cada descompasso do peito batido quando os olhos abertos querem fechar-se guardando fotogramas do que egoísta [também tu, afinal...] sorve do céu, da luz manchada em doses escoadas na generosidade de se oferecer por existir enquanto vai colorindo águas a azul, cinza, azul-dou-me, cinza-tens-me.


(Porto, Rio Douro, 16.11.2012)

quarta-feira, 18 de setembro de 2013

O culto da dor




Brilha ensanguentado o fio da saliva pendente no sorriso da invenção da ausência.
Ensaia-se o impossível, executa-se o inimaginável, domina-se o absurdo. A competição atinge o indolor. Ou quanto mais violento mais eficaz, mais etéreo, mais os deuses interessados, acharão na vista  um rasto de luz que os conduza a este depósito de carne humana onde alguns se destacam na leveza do movimento alongado e tocados, a mão estendida, os elevem no salto merecido do ângulo para além da linha desenhada recta no espaço vazio, uma curva que se não espera no contrasenso do fisico.
A dinâmica e o fisico. E a dor. E o culto.
E o sangue que ferve em deuses que clamam por mais ou a dor insuportável que vicia por se ser mais que essa mesma dor e já não ser dor ou o sangue que é uma saliva a mais por ferverem deuses por dentro numa competição de ser o melhor de si mesmo ou o absurdo de se ser imortal numa carne impossível.

terça-feira, 17 de setembro de 2013

A minha Árvore



 
Às vezes quando chego aqui, à Árvore, apercebo-me dos anos passados. Depois sento-me nalgum tronco ou até mesmo na terra a sentir a caruma e rápido esqueço o tempo na passagem das letras, minhas e dos viajantes, os que pararam para conversar e alimentar boca de alma e boca de coração e os que de passagem perguntaram caminho e eu indiquei.
Há tanto verde à volta, tenros de redor e outros robustos como fortificações que se foram erguendo como sete anos de lenda em estórias de principio era uma vez. Aqui são todas as vezes que eu queira e eu quero porque gosto assim.
Sinto-me bem ser dona de mim aqui, afastar os demais de mim e deixar a Árvore tecer este escudo para me proteger numa calmaria onde ouço os outros chamarem o meu nome num jogo de cabra-cega só para me agarrarem. Eu vejo-os, eu árvore aqui, só eles não me reconhecem.
Às vezes apetece-me chamá-los daqui, confundi-los, cansá-los como a mim me exigem de mãos e atenta para que lhes faça as vontades e os siga no capricho das vozes de mando... mas não o faço. Deito-me, espero que a Árvore gentil afaste as ramadas e me mostre azul, alguma seiva e me sossegue segredando que ainda tenho tempo.

segunda-feira, 16 de setembro de 2013

Alucinações de uma vida paralela (12 e último)



 
Quem fez o corte foi um cirurgião. Louco. De mãos alcóolicas viciadas na morte. Sem palavras proferidas, só o gutural do esforço enquanto se aprimorou a ir dividindo e separando, puxando quando a lâmina romba sem serventia atrapalhava mais. Não coseu, desleixou. O que havía a sarar que unisse se fosse de natureza tal, o que não voltou ao lugar, andou de vez, caiu, ganhou forma própria e cabeça. Um mundo. Amputado e clonados. Destes últimos, perfeitissimos, o aleijado esmola, ensinaram-lhe a escrever.
 
 

domingo, 15 de setembro de 2013

Um pouco de Truffaut



 
Entrou e sentou-se. Pernas de viés, saia travada. Um corropio de gente a esta hora, nenhum empregado a prestar-me atenção e eu só preciso de um olhar para lhe fazer sinal para um café, nem é preciso abeirar-se de mim, basta um relance, entretenho a minha transparência nas letras. Veste-se de vermelho-sangue, acende um cigarro, vem o empregado e admoesta, não é permitido fumar. Peço o meu café. Continuo: Tem longas pestanas negras, suponho que postiças, que intimidaram o empregado e o puseram ao largo pelo bafo soprado. Toda a gente a observa e comenta, creio que vão chamar a gerência para a pôr fora. Talvez agora o café me seja servido. Dirige-me um sorriso, correspondo, é bonita, pergunta-me o que escrevo, se sou escritora, rio, traço algumas linhas a ver se tenho sorte. Passa o empregado e ameaça com o peso da multa caso não apague o cigarro. Meto-me, traga-me um café e a senhora não fuma mais, sorrimos as duas.
Delicio-me.
Um fio de fumo fino ainda persistente azula trémulo com a passagem das gentes.
A mulher de saia travada ergue-se como uma papoila. 
Segreda-me que apenas veio para ganhar uma aposta com uma amiga sobre fumar um cigarro em pleno Domingo num café cheio de gente, nada mais. E eu?
Isto. E aponto a chávena vazia. Ela aponta os papéis. Pode ler. Senta-se. Agradece. Nunca ninguém escreveu sobre mim, diz em tom baixo.
 
 

sábado, 14 de setembro de 2013

A palavra madura



Não sei em que ponto sucedeu mas a certa altura, uma e outra palavra - decerto importantes - tombaram no meu regaço. Assim, reboladas como fruta que amadureceu dourada e só pesando na árvore como estorvo resolveu libertar-se do seu corpo preso e fazer-se a uma outra dimensão na terra onde as perspectivas cá de baixo miradas para o topo, têm uma cor e relevo como renovadas.

São as mesmas palavras, a mesma fruta saborosa que já se sabía ser, mas agora trincada fecha-se os olhos na prova consumada da certeza do seu gosto, a redutora confirmação.

São palavras que há algum tempo não recordava, vá lá saber-se porquê, talvez adormecidas para só agora terem razão de maduras voltarem a oferecer-se num tempo útil de serem devidamente apreciadas pelo seu valor de me trazerem ao presente uma felicidade passada para perfeitas eu as consumir.

Pois que quanto mais o tempo rápido avança para o amanhã, mais tranquilas me chegam as memórias aquietando o dia num equilibrio de acerto renovado no alimento da dádiva da palavra amadurecida.
 
 

sexta-feira, 13 de setembro de 2013

Portas & Janelas - Esboço nº 2



Sei lá o que me deu! É daquelas coisas em que nos levantamos a ter a certeza que temos de o fazer porque se não o fizermos alguma coisa vai ficar em falta na nossa vida e eu já pouco tenho a perder, entendes?! por isso meti pés a caminho, fiz-me à rua, está tudo tão diferente... mas assim que cheguei próximo veio-me aquele cheiro fechado e até de mãos esticadas e olhos cerrados eu chegaría lá por tantas vezes ter corrido aqueles passeios e desenhado a malha na cinza do asfalto, a pé-coxinho, quantas casas? e rodava e acertava no pulo de pernas afastadas sem pisar marca de giz e ágil no elástico, safava-me a alcunha de girafa...
 
Acho que nunca a vi tão velha, tão honesta.
 
Se agarrar um pedaço da fachada caída e acertar na janela alguém virá acudir-me. Alguém virá de dentro e no sorriso dirá entra, entra, há pão quente.
 
É esse o cheiro fechado na minha memória, não são bolorentos os momentos só porque os outros a veem velha e esboroada de beleza e na vidraça o pó dos anos risca teias desabitadas sem braços nem peitos nem vozes que se estendem a chamar por nós, a janela abre-me a casa, um coração mais que uma porta porque é dela que lembro o som do meu nome a pedir para entrar e subir.
 
Mastigo lágrimas, engulo saudades. Não me fazem mal, sei lá o que me deu...



(Portas & Janelas, Agosto-2013)

Todas as fotografias da Colecção Portas & Janelas são da autoria de Eduardo Jorge Silva

quinta-feira, 12 de setembro de 2013

Olhar com vista sobre o Rio (7)



 
Ouvi o marinheiro dizer que hoje há calor mas não precisava de o ter escutado, já te conheço o tule branco sobre a polpa da água, um disfarçe muito teu para os de fora e rio-me por dentro a pensar nos estrangeiros que se façam a esta margem, fechada, desaparecida espero, engolida como nunca existida, uma ponte para o nada ou então um desenho inventado para um sitio que se podía imaginar belo e verdejante de um pedaço de terra que podía ser.
 
Podía ser que talvez um dia tivesse aqui existido ponta de lingua que falasse em apoio de água tua no ventre-terra da mulher que se deita de lado e tu serías rio e só por isso haveríam olhares para esta margem.
 
Embarco, encacilho-me, levantas o véu para os aços da ponte e descobres vaidoso a prata que te faz o reflexo do teu espelho-água.
Tiro as luvas e o cachecol, desaperto o casaco e deixo fazeres-me a travessia.
 
 
(in Olhar com vista sobre o Rio, 2012)

quarta-feira, 11 de setembro de 2013

Subir




Sempre a subir quem vem de costas para o rio, um rápido e furtivo olhar para os degraus da pensão que alojou Ricardo Reis e é deitar as mãos aos joelhos como um ciclista e arranjar força para galgar a calçada que se verticaliza ilusória e ingrata no escorraçar dos sapatos deslizantes, encerada pelos séculos competindo com o eléctrico a bufar na eminência gasta do poder do mais forte.
Com o coração a latejar nas cordas vocais e na testa atinge-se o planalto do Camões.
Como se se tratasse de uma larga travessa de comida que se oferece a um faminto. Que tem de seguir viagem. Que tem de escolher caminho entre caminhos, ora serpenteando entre estreitos de ruas iguais num Bairro Alto onde o rosto é açoitado por lençóis que ondulam em vara-paus e prostitutas de Salazar se identificam para uma tropa apontada a vergonhas ora persignando-se para queimar pecados e logo adiante, purificando ao atirar-se nos olhos sobre Lisboa-colina do Jardim de S.Pedro de Alcântara.
Mas sempre a subir como um céu que se conquista, uma curva sinuosa que lembra o ângulo de um cotovelo quando ampara a cintura numa dança.
Ao fim de uns passos lentos, a respiração entrecortada pelo ar diferente e o ritmo do colorido negro-branco da calçada como disparos de luz que abrem e fecham as pupilas, sentem-se os tímpanos a enganarem-nos, julgamo-nos iludidos pelo cansaço, o fogo nas pernas consome o discernimento da realidade.
Há música, instrumentos que desafinam, vozes que afinam e quanto mais se caminha no custo mais se aproximam os sons de uma realidade maravilhosamente perigosa, é o Conservatório.
Estamos no Princípe Real.
 
Procuro a porta vermelha lacada.
 
Entro.
 
Deixo queimar o meu abssinto até me perder no que penso.
 
Quando saír e fizer a descida a correr até aos Cais do Sodré para agarrar o último cacilheiro que me embala até casa tudo voltará a ter cor e será 2013 novamente. Por agora é só o tempo que eu desejo que seja, é só tempo dos caminhos que escrevo como os conheci nas linhas da mão ou do caderno ou dos dias e noites em que subi e desci ou até como mos contaram, que importa... é um abssinto, que arda e que reste um pouco de açúcar para provar que é verdade.
 
 

terça-feira, 10 de setembro de 2013

O livro negro dos homens (sete)



O que interessa mesmo é estar vivo por dentro, saber que se está, marimbar-se na coisa alheia da vista míope dos que se julgam mais além do que os demais só porque se veem vivos de forma diversa da minha, da tua, doutrém.
Sabem muitas coisas, muito mais do que eu, já viram num ano o que eu provavelmente nunca virei a olhar na minha vida, mas eu sei de partículas tão infímas e simples que nem a muito custo  entenderíam a sua beleza.
Não os desgosto, não os invejo, não os lamento. Diferenciamo-nos. Sei-os vivos numa dormência angustiante quando me olham e me acham viva numa dormência angustiante e ainda assim, não somos de forma alguma a imagem e o reflexo um do outro, uns dos outros. Eles não seríam capazes de viverem a minha vida nem eu de imitar a deles.
Não me lamentem nem me apontem como infeliz por ser a diferente. Diferentes são-no vocês para mim, uma imitação de vida no bater igual do coração.


(Lx.04-02-2010)

segunda-feira, 9 de setembro de 2013

A Grande




Não sei que horas são mas é muito cedo ainda nem clareou e ainda assim tenho que me despachar que tudo passa a correr e tanto a fazer logo pela manhã e sempre alguma coisa que escapa a ti não que tens tempo para ti unicamente e nada mais a cuidar que só a ti olha só se me desse agora para me encostar a ler como tu o que acontecería que dizes não tenho tempo para parar e te ouvir se quiseres segue-me e vai contando essas loucuras sempre servem para me dispor bem desde que não sejam coisa de susto ai credo que dizes tu a tiro de canhão acordar uma criança de seis anos a tiro de canhão onde é que tu vais descobrir essas coisas e eu avisei-te que não quería saber de coisa de medo e vens tu e contas-me uma dessas só tu o quê ainda há mais e achas pouco será que ouvi bem é que ficaste para tráz e espirraste e não te percebi o quê matou-lhe o amigo o quê decapitou-o quer dizer cortar mesmo a cabeça afinal eu tinha percebido já chega assim não aguento e dizias tu que era interessante sai-me da frente não quero saber de mais nada andas tu a ler essas coisas não sei para quê deve ser para me inquietares para todo o santo dia ai não é

Não.
 
É para quem quiser ler, pontuar. Usar da grande pontuação, diria Frederico II, o Grande.
 
 

domingo, 8 de setembro de 2013

Portas & Janelas - Esboço nº 1




Portas fechadas. Foi assim que sempre te conheci. De uma aparência lavada e prazeirosa, convidativa mas quando se chega perto bate-se com o nariz na porta, ninguém atende por mais que se aleije os nós dos dedos na madeira vertical à espera do retorno de pés apressados de um outro lado, uma espécie de fronteira onde nervosos tememos apresentar o passaporte por nos trocarem por algum bandido a monte. Nem o ouvido mais atento podería escutar as moscas porque desse lado não se ouve nada, está tudo fechado, tudo selado, tudo abrigado ao que um dia os homens chamaram sentir, doer, o sentimento, aquele sentimento que não se ensina e que cresce à medida da pele e ainda que esta lá pelas alturas da adolescência alta se trave, a elasticidade dos sentires dilata-se e molda-se, empola-se, ajusta-se.
 
Em ti, cristalizou-se.
 
Não de uma forma açucarada para que os reveses da vida se revelassem menos sangrentos ou quiçá, públicos, isso eu entendía, mas empederniu-se de uma estranha raíz que te toma até aos olhos e nem um fio de luz parece ser a chave para desvendar a morte que te possa ter fechado.
Não há perguntas que me satisfaçam nas respostas que me dás porque são sempre demasiado simples, demasiado objectivas, sem demasia de explicações remetendo tudo para uma fachada nobre onde se admiram portadas a uma só cor sem uso nem mistério, sem encontros furtivos numa noite entreaberta, sem crime velado.
E o que mais me surpreende é que as sabendo cerradas teimo em chamar-te baixinho.


(Portas & Janelas, Agosto-2013)

Todas as fotografias da Colecção Portas & Janelas são da autoria de Eduardo Jorge Silva

sábado, 7 de setembro de 2013

Um nada de mim



Desde criança, muito criança mesmo, que soube que quería dançar. Não havía equívocos, eu sabía. Mesmo quando as pessoas grandes me fazíam as perguntas do costume e me tentavam encantar com  fascinios sobre outras profissões mais populares entre as meninas eu abanava a cabeça e punha-me nos bicos dos pés e afirmava bailarina. Ninguém me levava a sério, todos achavam muito engraçado e batiam palmas.
Claro que cresci como todas as crianças e mantive a minha convicção. Contra a vontade dos meus pais e o rumo da minha vida desviou-se da minha vontade. Ainda assim, fiz a minha carreira académica e mantive-a a par com o meu sonho, nebuloso e esfiapado. Dei aulas de ballet, coreografei e um dia disse que aquele era o meu último dia ligado à dança.
As letras sempre viveram ao lado das sapatilhas. Escrevía porque sim e porque não, porque precisava para me sentir livre a partir de certa altura e porque a vida sabática também tinha estado intimamente ligada ao verbo.
Gostava de ter tempo para escrever, para aprender a escrever, para treinar as palavras, ensaiar o verbo.
Mas a minha actividade profissional nada tem de relacionável quer com a dança quer com a escrita.
Até alguns daqueles que de mim saiem e me usam nas mãos e tempo, independentes da minha vontade e carácter, são mais genuínos e verdadeiros às suas vocações do que eu.
Sou tudo o que não sou.
Ah! E já agora... Também não sou a da foto acima. Isso sería um verdadeiro milagre, é do Séc. XIX.
 
 

sexta-feira, 6 de setembro de 2013

O livro negro dos homens (seis)



Usam-me muitas vezes como depósito de lixo dos sentires, das raivas, das angústias, da falta do caminho procurado na diversão das setas indicadoras e hesitantes na opção certa como se eu detentora de uma bola de cristal, pudesse ver além.
Não tenho bola mas tenho fundo e este vai ficando cheio destes venenos que se empilham e revezam e me maltratam, virando-se a mim porque não fincaram os dentes no dono. Substituem-me o sangue e a energia, idos com os falantes, deixam-me o tóxico para me entreter nas noites que me querem de insónia a fio, preocupada, levantada, nervosa, mil vezes matada nas palavras ouvidas que nunca partirão de mim.
Os outros vão-se, aliviados dizem-no até, sem peso na carga da consciência, prometendo ventos e chuvas, referindo obrigado, um muito obrigado.
Não quero agradecimentos.
Só gostava que quando me lessem nos olhos o anúncio do derrube parassem. Não me sorrissem e partissem a dizer que não é nada, que eu encaro de frente porque sou eu.


(Lx. 03-02-2010)

quinta-feira, 5 de setembro de 2013

Não




Ouvi, ouvi, ouvi e não disse nada, a partir de certa altura já me tinha ido embora, nem sequer me apercebi tivesse restado alguém de meu caudal que infinitamente me acompanha e murmura para aguentar mais açoite, todos se foram e também eu.
Recobrei a noção de equilibrio quando os tímpanos estouraram na violência do piado da gaivota solitária ao descobrir o pescado pela rasa da água recolhida que se suicidou nas rochas.
O som. 
Um tiro.
Um tiro de carabina certeiro à minha espera, uma mira bem apontada à minha nuca, os cabelos sem destino embrulhados no pescoço, na venda dos olhos, um rodopio de espaço aberto que aperta e esmaga, eu sózinha, eu comigo na imensidão dos meus pensamentos, eu mar que volta atrás para roer paredes e avançar e romper e galgar, eu mar que me desfaço e desapareço sob areia perdida quando o vento a seca e levanta no assobio zangado que silva como tragédia que se olha na risca do horizonte nebuloso.
O som.
De um silêncio de não haver mar nas mãos nem nos pés entre os dedos quando a água foge de novo para o mar, só imagens que faço para fugir de açoites ao cerrar os olhos e deixar de ouvir.
Respondi Não.
Há sol, cheira a maresia, sinto-a a picar o nariz.
 
 

quarta-feira, 4 de setembro de 2013

Campo de Palavras (11)



 
Visitam-me palavras que me arrastam para sensações que julgava perdidas por não lembrar mais. É como acordar com um estalido de dedos e a realidade se debruçar numa vertigem que entontece por não se conseguir firmar os pés com a certeza do terreno. Onde se está? É agora ou isto já aconteceu? Todavía não será um déjà vu, aquele remoer de ter passado uma segunda vez pela estranheza de clonar o discurso, guiado por um ponto invisivel que num palco invisivel nos dirige a cena que intimamente sabemos que na acção assim irá terminar, sem sobressalto, sem ansiedade, apenas cumprido.
Estas palavras de agora são interruptores, acendem-me novas interpretações. Trazem-me a memória do sentir passado mas abrem-se à frescura daquilo que agora sou, carregam-me duas vezes o peso na comparação entre o velho e o novo ou o verde e o maduro. São cidades de um verbo só que se defendem dentro de si. A secularidade do castelo espreitando nas ameias palavras que vão gotejando seguras, amorosas e aprendidas para a contemporaneidade do vidro transparente e aço violento que ao redor reflectem confiança, combate.
 
 

terça-feira, 3 de setembro de 2013

Qualquer coisa tão banal como um beijo



 
Às oito da manhã com tempo para café e riso, houvesse sol ou frio, às oito porque é uma hora bonita, porque o oito deitado é o sinal do infinito tinha ele contado e lembrara-se disso nem sabía porquê, ainda mais porque ela nem sequer havía feito reparo na hora marcada, apenas acenara com o sorriso rasgado e a franja sacudida nos olhos e tinha ficado assim, às oito, num bom-dia de mãos dadas que se entrelaçavam como heras trepadeiras que precisam de muro para crescer pelo dia no vigor da folha que abre em trindade, sem muitas palavras, um código de brilhos a faíscar no olhar penetrando a essência do outro e o outro a dançar no braço levemente agitado como um baloiço empurrado, a felicidade do eu também, eu também, os dois juntos a caminhar num traçado imaginário enquanto alamedas se debruçavam em vénias para um amor às oito, porque às oito é a hora deles, e o sol e o frio é tudo invenção.
 
Os lábios unem-se demoradamente.
 
O relógio desliza o ponteiro grande e troa como se o mundo rachasse.
 
 

segunda-feira, 2 de setembro de 2013

Intervalo




[A leitura das palavras que se seguem é da inteira responsabilidade de quem a fizer e ao seu autor apenas poderá ser imputado encontrar-se sob o efeito da silly season]
 
 
A cortina húmida e cálida da noite escorreu vagarosa e densa preenchendo contornos e abrigando segredos. Aqui e além, alguns estalidos como a encerrarem ciclos no anúncio do fecho da luz e último aviso para o sossego completo, silêncio, mais um ruído que soa teimoso embrulhado na escuridão a disfarçar tons e formas de figura, coisa que mexa ou respire, um último gole de ar até o dia aparecer de novo, por ora será a sepultura deste.
 
Claridade. Um ponto de luz, apenas um ponto, um quase olho, uma esfera perfeita que encadeia e volteia e encanta e traz outras e numa estrada alumiada bafeja verdes de prata e desperta rãs que coaxam inchadas no salto desesperado da folha afundada que balança e navega deslizante no canavial de poça parada onde alfaiates incansáveis se agitam na obssessão lateral das pernas arqueadas lutando com moscas tontas que se prendem na teia invisivel de uma aranha amarela muito quieta.
 
A lesma não se assoa e a coruja branca não lhe dá perdão, voa raso e apanha no mesmo passo o mosarenho veloz, porém guloso e distraído nos milhos, pia, agita o escuro, anuncia tragédia e apontam-lhe a morte.
 
De mais certo não havería que estar, pois se a noite cansada de tanto afã chegara a hora de ir descansar e ao dia ía render. A bruma orvalhava nos verdes, os contornos desvendavam o bosque. A alvorada anunciou-se.
 
 

domingo, 1 de setembro de 2013

Olhar com vista sobre o Rio (6)


 
 
Já entrei, já cheguei, trouxe tudo o que me faz por isso olho-te, encaro-te, digo-te de frente estou aqui por mais um tempo, terás de me carregar entre margens e escutar o som do motor do meu peito.
 
Curioso, que de perto não somos assim tão assustadores, nem eu nem tu, talvez que a nossa diferença seja a semelhança de todos, uma distância que se quer pelo temor ao desconhecido. A minha loucura sempre foi isso mesmo, os mistérios do não-saber, não saber-te como encontrar pela manhã ou no regresso a casa, aprender a tua cor aos primeiros dias de Janeiro e sorrir quando te fazes chumbo só para te imitares zangado por um céu mal-humorado e eu indiferente a caras feias, desenho-te em letras bonitas porque só te vejo belo, grande.
 


 
(in Olhar com vista sobre o Rio, 2012)