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sexta-feira, 4 de novembro de 2016

Instantâneo - Episódio dezoito


 
 
Um gole, dois, três, meia chávena bebida e os olhos perdidos na folha branca, imaculada ausência, as palavras desfilam lentas porém certas num ritmo bom de as apanhar. Se quisesse. Por agora derreto-me por um qualquer sitio de não estar, vou bebendo sem descolar os beiços da louça a golinhos pequenos um instantâneo que será mais que isso, rápido no consumo, sinto o morno da aguadilha a descer pelas goelas e a tubagem à força de ser enganada agradou-se da miseriabilidade. Os gatos nos seus postos aguardam o inicio das manobras e nada, nem brincar com o elástico no pulso a entreter tempos de palavras que não chegam, não espero por elas ao menos, agarro-me à asa da caneca como salvação num prazer tão grande como uma página cheia a verbo fecundo. O fundo. Poupo o gole já quase frio, quisera que o cão viesse junto a mim, de cauda felpuda que não tem, não vem, penso no outro, bebo restos, afago o único gato que está. É tudo de fingir, até o café bebido rápido para não lembrar que é instantâneo.
 
 

quinta-feira, 3 de novembro de 2016

Ciências da natureza


 
 
Numa manhã, noite cerrada pela mudança de hora e enquanto esfregava as mãos surpreendido pelo frio à espera de boleia, viu um a riscar o céu amarelado pela luz artificial como um projéctil negro, um só traço a direito que desapareceu a caminho do breu. Depois, um par que ainda pipilou, notou-lhes um tom violento de vermelho nas asas quando florearam em rápidas piruetas em torno de um arvoredo, subiram, voltearam e de novo o negro, muito negro num fio único até a vista se tornar pouca e haver nada.
A seguir um silêncio de pessoa só.
E num susto toda a árvore que ombreava o candeeiro público pareceu erguer-se das suas folhas e subir aos céus como uma bola agitada e ruidosa, um alerta para o perigo eminente.
Agachou-se no medo súbito para logo se recompor, a vista ondeou ao compasso do bando que de um lado para o outro se moveu como uma massa mole mas ordenada, um desenho que tanto se alongava como se compactava até se adensar num brilho profundo de negro. Desapareceram rápido.
De novo o silêncio.
Depois o coração. Ouvia-o bater ritmadamente acelerado até que se abrandou numa quase solidão.
Um pardal saltitou por perto, debicando na noite invisibilidades enquanto um pio ou outro esmagavam o escuro.
 
 

quarta-feira, 2 de novembro de 2016

Travessias do Rio - 13



Estável, como uma plataforma de cimento, balanço algum que me recorde que é o cacilheiro, por dentro nauseio-me de mares onde se afundam à força as dores de saudade, prometo, já prometi antes de embarcar, que este hoje não passaria de uma poça de água, um rasgão de chuva esquecida à espera de sol para a levantar e desaparecer evaporada sem nunca ninguém ter dado por ela.
A freguesia segue morta como habitual a esta hora, uma criança tamborila os pés no assento e grita de dedo apontado a gaivota sentinela, o paquete de costas, o mar.
 
Qual mar?
 
Logo tu para incomodares o meu sentido de travessia a este rio que hoje, eu prometi já disse, não é mais que estrada de cimento, fecho os olhos e aperto os dentes na onda que cresce cada vez mais alto até engolir-me, é um mar sim. Desta dor maldita que não passa e finjo por não falar dela e até a mim me proibir, que não mata e não existe e há-de passar. Como a distância entre as duas margens um dia há-de acabar.
A mãe acena a cabeça sorrindo, compõe a criança no assento e repete, é o mar sim.
 
 

terça-feira, 1 de novembro de 2016

Mais um, nem sempre soma


 
Mais um dia, mais um grão, mais um pedaço de pele, um bocado de calo endurecido, mais um traço, mais um risco que se passa na palavra enganada, mais um verbo calado, mais um dia de memória, mais papéis descobertos no semblante quadrado, mais um ano, contar estórias, contar a história da árvore que não é, mais uma folha, mais um ar, inexistências que se desengelham ao tempo do querer, mais um dia e talvez uma palavra boa. Quem sabe serei de verdade.