Todos os textos são originais e propriedade exclusiva do autor, Gasolina (C.G.) in Árvore das Palavras. Não são permitidas cópias ou transcrições no todo ou/e em partes do seu conteúdo ou outras menções sem expressa autorização do proprietário.

sábado, 30 de abril de 2016

Linhas em branco (na noite)



Na véspera de mais um ano nesta árvore visitam-me os habituais, conversamos, não sinto enjoo, estou por aqui como gosto, enquanto gosto. Aliás, cada vez me dá mais gosto, sempre escrevi para mim e não para agrado dos demais. As vozes dos meus eus mantêm-se fiéis, mantêm-me louca e desesperada e eu não me quero de outra forma, não me saberia conhecer sem os ouvir e escrever, certo é que iria sentir-me nua ou mesmo doente, toda a minha fizeram parte do meu quotidiano, toda a minha vida os amaldiçoei nesta intranquilidade que afinal tanto desejo, tanto me fazem parte e ensinam. Donde, já desisti de saber, há perguntas que estão respondidas na sua incapacidade, basta a relevância de saber sem saber donde provém o miolo do que sei. Acompanho-os, acompanho-me, nunca estou só. É muito mais do que qualquer Árvore possa dizer, sentir.

sexta-feira, 29 de abril de 2016

Quem chegou primeiro?




Da outra vez perguntaram se eu ainda dançava e eu respondi com palavras, com os olhos, com as imagens que o furacão da memória levantou na interrogação na ponta da frase.
Agora nem perguntou nada, ouvi os acordes e ergui-me, levantei os braços e deixei o corpo ondular, os pés deslizarem como se os sapatos fossem o prolongamento das pernas o soalho me comesse a carne dos pés.
Senti-os a olharem-me, os lábios a descolarem-se na surpresa, um quase sorriso, depois as mãos atrapalhadas junto à boca a taparem a convulsão da gargalhada e depois, sim depois, a vontade de virem, a vontade de gingarem, a vontade de levantarem os braços e ondularem o corpo e rirem despenteados, os sapatos no batuque do soalho.
Puxei um, uni os meus dedos às suas mãos nervosas e abracei a minha cintura junto ao seu corpo rodando, rimos, depois mais outro e neste trio estacámos junto a uma mulher apavorada que ofereci a minha mão livre. Aceitou, riu e passados alguns segundos todos na sala ríam.
Quem chegou primeiro?
O riso ou a pergunta?

quinta-feira, 28 de abril de 2016

Dia cansado



 
Repetir não interessa, é aquele dia, e dos outros passados já pouco se aproveita de mim, levaram-me quase tudo, quase tanto de um velho pedaço com sabor de novo que ainda se iludem que possa servir como novíssimo, até eu piamente digo que aguento, só mais um, só mais uma hora, só mais dez minutos a fazerem-se de dias novos e de mim nova e de bocados apanhados sem sentir nada, cuspo em cada aresta e espero que a aderência se una forte o bastante durante o tempo da convicção da frase dita para dentro.
O dia não acaba enquanto eu não [me] acabar.
Lembro das despedidas que não fiz, de linhas que projectei serenas sem drama no adeus até breve aos que me acompanharam e sorrio amareladamente porque nem eles partiram de vez nem eu fiquei de vez, um limbo de ser à parte do que não sou, uma enteada que se suporta na refeição anual da consoada e se vê confortado mas com remorso de ver as costas, não incomoda mas estorva, nem amigo nem inimigo, o dia não se repete só porque não gosto dele.
[Apanho os meus bocados e] termino.
Amanhã há mais com gosto renovado.

quarta-feira, 27 de abril de 2016

O dia a sério ( ou depois do adeus)


 
Eis o dia seguinte, o verdadeiro, que ontem foi tudo brilho, luzes, festa e encantamento de ruídos das palmas a ensurdecerem o ritmo do coração pelo receio da mudança, o desconhecido que maravilha por ser desconhecido e pela fé no conhecido já ter a ausência da confiança, o esquecimento a pedido. O dia seguinte a pedido.
Eis o dia a sério em que o cheiro da festa nem sequer deixou rasto de fita cortada, um copo esquecido de meia bebida brindada ao futuro do dia presente, uma nódoa de creme esmagada no pedaço de bolo caído pelos queixos pendurados, tudo sério.
Vestem-se a preceito para este dia seguinte.
E a imagem que lhes tenho é de quem aguarda longamente por um encontro muito desejado e preparado com tanta atenção como no primeiro dia de Primavera com cheiro de roupa nova, sapatos brancos abertos. Esperam e esperam e uma tremenda borrasca prepara-se para caír tomando-os desprevenidos quando regressam solitários e pensativos, pingando, no dia antes da festa.
 
 

terça-feira, 26 de abril de 2016

Alberto & Cª



Faz hoje 4 meses que o Alberto se juntou à família.
Perfeitamente adaptado ao Pipoca e ao Bóris, respeitador dos espaços de cada um deles mas ainda dominador no que toca à sua ração emitindo pequenos vocalizos quando algum deles se passeia junto à gamela, é vivo, alegre, de cauda sempre agitada demonstrando um bom-humor constante. 

 

 
A energia que o anima - decerto proveniente dos seus genes Jack Russell - acaba, muitas das vezes por ser o meu desespero, já que o apetite por tecidos se mantém. É verdade que não aumentou e com o devido tom de voz atina que fez mal e encolhe-se. Até à vez seguinte.



 
Mas o seu olhar, a companhia, os saltos de alegria, os longos passeios ou os momentos em que no abraço em que me deito ao seu lado e assim ficamos, sinto o seu pequenino coração a bater tanto, valem por tudo, salvam o pior dos dias e sou de novo a pessoa mais feliz do mundo.

segunda-feira, 25 de abril de 2016

Qual 25 de Abril?



É complicado, quase difícil explicar à distância desta data toda a atmosfera, o que significa quando se verbaliza 25 de Abril, não um mero apontamento de calendário a registar mais um feriado que se deseja entale entre uma quinta e o fim de semana para aproveitar a tirada maior de ausência ao serviço ou mini-férias sabáticas mas O 25 de Abril que viciosamente uns quantos de memória ainda associam ao quebrar de um enguiço que parecia ter erguido muros a Portugal e isolado o País, só, orgulhosamente só como diría o outro de Santa Comba Dão.
Afinal tudo cai. Até ele, o primeiro e de costas que em seco não soube nadar numa terra de gente que sempre teve olhos azuis de marinheiro e peito afoito a latitudes que não se prendem a dedos esticados de comendas ou comezinhas orientações sobre castigos se não nos portássemos como a medida da trela apertava. Vai que estica e até o nariz esfolado de sangue no ar é preferível ao comer arrastado pelo chão.
Acontece que o tempo passa e a história dos homens conta-se pelos homens, enreda-se e molda-se na recordação deste contar, amaciam-se as quinas dos episódios evitando o grotesco, da susceptibilidade a ouvidos mais sensíveis cumprindo as regras politicamente correctas impostas pela ortografia do dizer no receio do amanhã fabricar homens cerceados por traumas, permitem-se esquecer dores e o tal fio de sangue a pingar a peitos em paredes de prisão inventam-se poéticos nos cravos manchados em lapelas de desfiles só lembrados a um dia, só lembrados a páginas de matéria corrida de um período a seguir a um Estado Novo já muito bolorento e caquético, papagueada na sabedoria de uma classe conjunta de geração salva por outra, outras que nebulosamente apelam a uma costela revolucionária deste dia para justificarem a resposta à pergunta sobre a liberdade.

domingo, 24 de abril de 2016

Virei aqui nesse dia



Escrevo hoje sobre este sitio para que um dia hajam mesas, cadeiras e as tias que nelas se sentam a beber o seu chá muito triste, muito brancas de memórias de sonhos que tiveram na mesma idade que eu tenho agora e nunca passaram de páginas rabiscadas por alguém tão igual quanto eu numa mesa próximo e de nariz tão apurado quanto eu para que possamos todas fazer jus ao que somos.
 
Hei-de vir nesse dia porque há-de haver a mesa que escrevi, algumas migalhas de éclairs chorados a baunilha e pó de arroz na confissão de jogos perdidos de canastas às quintas-feiras depois de não haver sol e a disfarçar a falta de outras companhias, lembrarei as tias de chás muito tristes sorrindo entre páginas do meu caderno, o chantilly azedado pelo tempo da escrita de alguém que nos olha.
 
Pago o que devo e despeço-me de alguém que imagino possa escrever sobre o que serei, as tias já foram há muito, o empregado sacode as migalhas para o chão.
 
 
(in Eu na Versailles, escritos improváveis, C.G.-Novembro/2005)

sábado, 23 de abril de 2016

Perguntas(sem resposta)



Acontece que a conversa desfiada impede o rumo das mãos, mesmo que os olhos marquem a folha e o desenho prévio das letras, das palavras e até o completo sentido das frases pontuadas e já prontas no carreiro, desdobrar atenções a partir ( quando foi que aconteceu?) de um período tornou-se impossível gerir na tagarelice misturada do caderno (hum, hum para manter a delicadeza do receptor). Do sonambulismo desta escrita nem sequer me afianço sobre a plenitude da minha ignorância de vir para a rua despida ou do disfarce de dormir para não parecer totalmente tonta e assim perdoarem a falta... Mas amarfanhado o caderno e a caneta tamborilada várias vezes como objecto de arremesso à substituição do que o inconsciente se dilata aos poucos na escalada da ansiedade eclodem num pico em que a energia se resume no solilóquio contorcido sobre a incapacidade do que aconteceu mas não sei quando. Não sou mais capaz de escrever quando estão permanentemente a falar comigo e parece que escolhem sempre os momentos em que me veem entregue ao caderno para conversar. Dantes era possível, agora não. Porquê?

sexta-feira, 22 de abril de 2016

O fim de uma casa



Mandam fechar as portas e eu fecho.
Mandam esquecer o número e eu fecho os olhos.
Há mais dias de mim crescida dentro das portas fechadas do que os vividos franqueados mesmo que portas novas se abram a casas caiadas, do reboco muita pele de mim está agarrada, muito morto chorado, risos que estalam até foguetes se envergonharem.
Mandam fechar as portas e eu fecho.
Mas lembro sempre a rua até à casa.
 
 
Fotografia de Eduardo Jorge Silva

quinta-feira, 21 de abril de 2016

Postais ilustrados


 
As plantas continuam à mercê do que possa piedosamente caír do céu, vale-lhes o cheiro da imitação a que todos chamam cascata - eu também à falta do que ainda não encontrei [fios de água, grelha de água, ruídos de água] - é provável que daqui a uns anos se resistirem até lá, se transformem em palmeira e se dobrem, verdadeiros postais que os turistas que ali vão apreciar o vicio do fumo deleitam no mirranço dos pulmões, elas todas esguias e atiradiças à bússola da água farejada e eles de fato completo e gravata lembrando quando elas eram meros arranjos ornamentais que serviam de aparo a beatas, uma admiração.
Encosto-me ao canto, é provável que daqui a uns anos já não tenha arestas de tanto nele me roçar e as minhas costas se tenham amarrecado no jeitinho de conforto, um molde piedoso que nada tem que ver com o céu mas aqui sou muito mais prisioneira que as próprias plantas definhadas na sequiosa vontade de alcançar esta bacia gigante que não mata sedes a ninguém, nem de boca, nem de nomes que lhe procuro, nem de estórias que tento inventar para enrolar o vicio, nem a incapacidade de fugir como árvore que sou.

quarta-feira, 20 de abril de 2016

(Falsa) Cura


 
Esta (falsa) noção de férias e da concepção do dolce fare niente tem muito que se lhe diga, verdadeiramente, nada de niente e de dolce é mais para poco do que para molto mas vai-se empurrando o critério da designação com a sensação de liberdade e de estou para aqui como bem me apetece e ninguém tem nada a ver com isso e depois, conforme já disse não o dizendo declaradamente dois posts abaixo, meto a calçadeira e lá empurro de pés apertados tarefas sobrantes que no dito prazo de nada se fazer ficaram a boiar na admiração de não faço, não faço e não quero saber.
Mas fiz. Em dias que o tempo já não podia evitar olhar para trás ou fingir docemente nada se passar, fiz e tão rapidamente quanto fosse o tempo acertado de as ter feito em dia útil e talvez até melhor na urgência de as deixar concluídas e perfeitas como caso fechado e sem matutação de lhes pegar na preguiça adiada, sem mais cansaço por desdobrar a vontade em acrescento de mais uma e outra coisa ou os dias a encolherem-se na grandeza do tanto por fazer.
É que acaba por ser sempre o mesmo, a mesma falsa noção de que o tempo nos controla. Mas não nos curamos.

 

terça-feira, 19 de abril de 2016

Travessias do Rio - 10



Do cais de embarque que outrora serviu ao deslize dos carros entalo os saltos altos nas grelhas ferrugentas, um acidente de percurso com diversos níveis como se desenvolvesse um jogo de computador, eu própria uma peça deste labirinto que me desvia a atenção do que é importante, o Rio diante de mim, os humores com que me recebe, a travessia que me faz, degraus desnecessários agora que o Cacilheiro grande amarrou de vez os cabos a um porto vendido, dizem uns quantos para reparação, mas o negócio vai mal e o melhor foi levá-lo para fora de vista de uma vez por todas, provavelmente para ficar preso até se afundar de tristeza.
Suspiro ao desencravar-me num repente furioso, não pelo sapato arruinado mas pela memória do Rio atravessado  nesse barco majestoso que há tanto deixei de ver e da mão da minha mãe a estrangular-me o vestido evitando a tentação do meu mergulho libertador.
Há Cacilheiros a preto e branco nos meus ais e nem mesmo as muitas vidas de um bom jogador cibernauta me salvaríam da dor que me enterra esta manhã.

segunda-feira, 18 de abril de 2016

As horas faladas [não necessariamente em palavras]




Ganho um último dia de férias e não faço nada, dou-me de bónus as horas faladas para mim em que a permissão de tarefas por fazer ficarão para outros dias, dias de dobrar ou de encaixar, uma bucha a encavalitar afazeres perdidos que afinal ninguém se perdeu, o universo roda à mesma, só eu fico de quando em vez engasgada no lembrete para logo me açoitar, perdoar, culpar pela falta de culpa, não faço nada, navego nos pensamentos de uma vida emprestada em que fosse eu se nada tivesse com que me ocupar e o tédio do próprio objecto do raciocínio chateia-me de tal forma que antes do sobrolho erguer-se já as mãos se distraíram a dar nós num bocado de cordel unindo as duas pontas, um jogo de criança entrelaçado nos dedos mas sem mais ninguém por perto para pedir que tire a aranha de fios das palmas abertas acabo por rejeitar, cruzo os braços, viajo pela janela até me arderem os olhos e num instante tudo se me leva, tudo se vai, uma ausência de achar, como se uma maré chegasse e lambesse a areia, regresso a mim tão rápido quanto o recuo das águas para se formarem em onda nova.
Ligo o som e danço.
 
 

domingo, 17 de abril de 2016

Hábitos


 
Embrulho a noite, retomo velhos hábitos de esquecer números de horas ou estas perderem a noção de quem sou e apertadas entre badaladas que já não ouço misturo-me a fantasmas aqui e ali conforme o interesse da conversa, o motivo das mãos ocupadas, o tique curioso, aos poucos escrevo, páro muito, perco-me muito, fico muito para trás destas criaturas invisíveis, não é cansaço é demasiado para um mortal querer ter a frescura da infância na memória madura e o comportamento trai-se pela velocidade com que a mudança dos sentires entre planaltos de tempo se alternam, parece que afinal sempre ouço as badaladas, eles é que ignoram e seguem com as suas conversas não fazendo caso às horas, melhor para eles que não se distraiem em linhas escritas e a fidelidade dos números deixam para mim, presa ao momento de quando terá acontecido.
 
Quando foi?
Desembrulho o dia, as cortinas permaneceram sempre estáticas deixando a noite abundar-se e agora encher-se de luz fina, só eu, um caderno, poucas linhas aproveitadas de tanto escrito sobre um hábito revisitado em que converso comigo, lá atrás, a entender-me numa rebeldia veloz de sentimentos que pareciam não caber dentro de mim. Até hoje transbordam[-nos].

sábado, 16 de abril de 2016

Poder gostar


 
É no fim da rua, na porta ao lado, nas páginas escritas em três minutos, no desconhecido que se senta ao lado que moram as verdadeiras obras de arte, porque de surpresas e rasgos de luz a vida grita sem que nos apercebamos de quanto oxigénio é preciso nessa rara quantidade para que ainda haja alavanca para seguir e sentir na genuína concepção do que é ser.
Porque não basta respirar e cumprir, rir e chorar, tem também de se experimentar o gozo da descoberta, do cativar, do enamoramento por ideias, o calor do prazer ao encontrar coisas tão simples e banais como um banho de mar, um afago num cão, uma conversa com um estranho, o conquistar da flor finalmente a nascer.
Afinal tudo o que parece tão distante e belo, quase inatingível, acaba a maior das vezes, distanciado por nós mesmos, pela nossa incapacidade de o querer ou ver ou sequer, poeticamente o olharmos, porque finalmente tudo é tão normal e vulgar, que dos nossos olhos a vontade da arte está apenas a um espaço de pestanejar, ouvir, poder gostar.

sexta-feira, 15 de abril de 2016

Nada é para sempre



 
Dos nós do tronco rugoso, áspero e imperfeito podem-se notar as camadas do tempo, ainda assim há a frescura do saber que houve dias de Abril em que as folhas a despontarem-se chamavam outras, vigorosamente, uma força que se agarrava à madeira como que a negar Invernos irremediáveis, tardios ou no seu lugar, sempre haveriam de molhar e apertar no arrepio do frio até finalmente caírem.
Nada é para sempre.
Nem mesmo o lembrar. Até este tem o tom dourado das folhas encarquilhadas e estaladiças, tombadas e levadas ao sabor de ventanias, depois arrumadas a um monte de canto, nada é para sempre, o Abril perfeito desta árvore doutros tempos não será o mesmo de agora, tão rachada de vincos e carreiros de formigas, hospedeiro de um e outro cogumelo preguiçoso que veio passar uma temporada e depois se vai, o silêncio da solidão aparente ou a ruidosa multidão nas raízes encontra-lhe o antes e após, as promessas de costas encostadas e a invisibilidade de uma estaca de pau.

quinta-feira, 14 de abril de 2016

O céu da boca (Palavras Reencontradas) 15



[...]
 
A simplicidade da escrita é também o eco do aparo na folha, o arranhar das solidões não a solidão do que escreve mas o que volta atrás e duvida e se reflecte e se encontra na descoberta e de novo tantas vezes na redutora incapacidade de não saber ou saber se já terá acontecido, é também a satisfação egoísta de um pedaço ou a partilha de páginas no desprendimento do que foi seu.
Eram tudo prazeres.
Dores.
Uma semelhança de outra vida, protegida entre capas duras e arrumada depois da caneta enroscada na sua tampa. Não interessa se de vidas inventadas ou recontadas de ouvidas, ou até confissões disfarçadas de vozes de outros, mal o tempo da tinta manchar o papel a outros pertence, do céu da boca as palavras conhecem mais infernos que a Bíblia possa dizer na dicotomia do bem e mal, afinal quem escreve está só e morre e nasce muitas vezes, essa é a mais simples das verdades.
 
[...]
 
(in O céu da boca (Palavras Reencontradas), Outubro 2014)

quarta-feira, 13 de abril de 2016

O livro negro dos homens (vinte e quatro)



O desamor do que já foi muito apetecido é culpa dos tombos, cobiça e reveses que outros tantos desamados - ou simplesmente no prazer da recusa de deixarem alcançar, que os há sim - causam aos primeiros. Andam assim todos a enganarem-se uns aos outros.
Os que querem, lutam e se esfolam acabam num cansaço angustiante, depois dormência, depois desinteresse, por vezes o tal desamor que os passa para o outro lado e de carrasco rápido se satisfazem no apetite enganado do se não tive não terás também, engrossando a fileira dos que sem entendimento sempre se acharam no direito de negar a entrada à felicidade simples dos demais.
Caricato, e até pernicioso como sendo todos homens e querendo todos o mesmo fundamentalizam-se a envenenar o tempo da colheita, um gosto acre que deposita a não conquista de outrem na boca própria de quem nada conseguiu.


Lx., Maio-2012

terça-feira, 12 de abril de 2016

A memória (derretida)




Recordo-me perfeitamente daquela que era eu neste dia, vejo-a tão distintamente que me permito falar dela como se não fosse eu, essas coisas de vaidade, convencimento, derrubaram-se pela sensatez com que o tempo foi puíndo as impressões levianas. E afinal nem tanto. Serviram de para-choques, um resguardo desbastado que às tantas calejou, fundiu, encravou-se.

Recordo-me dos passados ou do que a trapaça do lembrar diz que é do ontem, deste mesmo dia e da forma como me ria que ainda sendo a minha aparenta ser de outra qualquer rapariga, hoje mesmo ninguém me dirige a palavra sem ser por Minha Senhora, tirando um ou outro amigo especialíssimo e em tom jocoso, Oh rapariga que te ris sem te rires.
 
Recordo-me claramente de chorar neste dia porque estava imensamente feliz e outros faziam de igual e havia um nó na minha garganta que não me deixava engolir tamanho sentir. E embora tenha presente tão sentidamente essa abundância falo de mim lá naquele dia como uma história inesquecível de alguém que conheci.

segunda-feira, 11 de abril de 2016

O refugio [dos dias]



Corro até lá e deste alto tudo parece melhor, não porque a distância míope me veja mas porque a largueza da amplidão abarca a possibilidade das coisas dificeis de imaginar tão nitidas, tão capazes de serem minhas pelo tempo da mão escolher ser o momento de poder ter ou largar ou enfeitar ou só e apenas aplacar sobre a outra mão vontades de bater sobre planos para os achatar.
Daqui tudo é melhor, daqui do refúgio das histórias simples.
Onde tudo começa por Era uma vez e segue o caminho dos sentidos sem precisar de atalhos para desviar de uma perna esticada a preparar rasteiras, um campo imenso aberto aos olhos onde a história se bebe em goladas sorvedas na sua simplicidade e por isso mesmo, dificil, estranha-se, enruga-se a testa da sua beleza sem complicações que não outra a que se vê, escuta, imagina e se admira de como então, lá nesse tempo já se fabricavam lugares tão altos que ainda hoje servem para salvar o dia.

 

domingo, 10 de abril de 2016

Contemplações (num Domingo de chuva)


 
Aceleram. Impacientam-se e aceleram na espera, depois apitam os cinco minutos de demasia como se não bastasse o contratempo da chuva, vigiam o para-brisas alisado a tempos certos pela escova mecânica que não apressa a chegada dos restantes, apitam duas vezes rápido.
Olho-os pela janela e não consigo achar razão para tamanha fúria nem pressa nem descontento nem vontade de se encafuarem num carro para rodarem meia dúzia de quilómetros, o passeio de Domingo, o meu ficar de Domingo, esta chuva ao Domingo tão incapaz de satisfazer os planos da semana, esta água de Domingo que me consola num dia que me apoquenta, este transtorno de uns que é a panaceia de outros, equilíbrio.
Finalmente completam-se no transporte, gesticulam, arrancam, o lugar desocupado do carro deixa uma marca seca de cor contrastante, um rectângulo que rapidamente a chuva vem pintar de cinzento escuro fazendo esquecer toda a impaciência dos momentos atrás. Um vento eriçou a água de lado que parece lavar toda a rua num silêncio onde apenas se ouvem os varandins a cantar desordenadamente.
Bafejo o vidro e desenho um coração.

sábado, 9 de abril de 2016

Hora animal


 
Lá pelas doze hei-de ter vontade de recolher-me, dormir, quieta e sozinha ninguém vir à perturbação das perguntas ou inquietar-se se padeço de maleita para pedir leito, por agora estou viva e bem desperta enquanto o resto descansa, dizem todos na hora de dormir, porque se determinou que esta é que era essa hora certa. Cumpro o que o corpo me pede. Quando posso. Mal posso, nos outros dias contrario a vontade da fuga ao canto, ao encolher, ao despertar pelo tempo da caça e contemplação de novo em solitário na hora do lobo, erma mas vigilante até o escuro me abrigar para o passeio, de novo dormir e antes das luzes forçarem ao dia já estarei desperta para o reconhecimento do que rodeia o meu mundo. Sempre foi assim desde menina. Sempre foi assim que a dificuldade dos meus tempos se alinharam com os dos outros, tropeços corrigidos consigo um dia ou outro deixar que o corpo satisfaça o horário animal mas como toda a besta, domestiquei-me, contrariei-me para entrar no sistema. Lá pelas doze hei-de sentir frio e vontade de me encolher a um canto, por agora vigio o silêncio da casa, das páginas onde corro livre e acho outros na mesma hora que eu.
 
 

sexta-feira, 8 de abril de 2016

Ainda danças?


 
Ainda.
Quando a noite profunda azula e os pés se amaciam sem chão nas voltas coreografadas até à exaustão perfeita em que o toque faz parte de um qualquer corpo que seja par, danço, danço todas as vezes em que recordo o que não tive o tempo de dançar e outras tantas o tempo certo de o fazer na respiração ofegante da exaltação ou só porque vi outros a dançar dancei, danço de todas as vezes em que a musica me belisca no conhecimento de a ter desenhado em passos ou porque sentada a água da memória marulha sons que me perguntam se eu danço ou nos desenhos tontos de riscos do pensamento livre as fitas das sapatilhas atrapalham-me as folhas emaranhando-se na caneta até as palavras dançarem todas sobre bailarinas que sofrem dos cheiros de palco, pez, palmas e flores recebidas em abraços ou fingimentos de não ter dor, pergunta-me se ainda danço.
Ainda.
Mas não digo nada a ninguém.

quinta-feira, 7 de abril de 2016

Lutar


 
Lutar por um objectivo, defender uma opinião ou levar uma idéia adiante, exigir justiça ou até a reposição desta, demanda esforço, muito pelejar, desânimo e de novo alento, uma energia que se renova e se escoa consoante os estádios de avanço ou retrocesso até se alcançar ou declaradamente  não se conseguir firmar o que se pretende.
Porque - verdade - nem tudo - verdade - na maioria, depende do nosso querer, e não basta ter o poder de querer para ser tarefa iniciada, pois tantas vezes essa vontade parece estar contra nós.
Não há tempo para este tipo de batalhas mas a capacidade de as aguentar mina o coração, as perspectivas sobre os outros, a nossa própria visão perante os outros quer descascando camadas de defesas quer couraçando no temor da fragilidade.
E depois os desiludidos, extenuados de tanta injustiça e luta, cansados, desistentes pela revolta do autismo abandonam tudo, dizem nada mais importar, encolhem ombros a respostas de sim ou não sem afectos, como um jogo de corda puxada a toda a força entre equipas opostas, uma mais poderosa que vai ganhando terreno sobre a outra comida no resvalar do pó, dos sapatos escorregados pelo arrasto. Tudo parece derrotado até os vencidos largaram subitamente a corda e deixarem o outro extremo caír de rabo.

quarta-feira, 6 de abril de 2016

Instantâneo - Episódio dezasseis



 
À tua! Elevo a chávena e cristã fosse eu poderia dizer-se que benzía o momento à figura de meio-corpo reflectida no vidro destapado dos cortinados afastados dramaticamente no drapeado negligé, cada uma de nós silenciosa a beber o instantâneo do silêncio e a devorar a solenidade do cenário com a certificação de um gato, talvez dois, um para cada tranquilos ao estilo inglês com o relógio de fundo difuso a repicar uma meia-dúzia de horas que não interessa contar, depois o ingrato desconcerto da realidade quando se toma nota das cartas a enviar com noticias que se ajeitam da melhor forma a uma delicada caligrafia evitando o óbvio, como dizer, como não dizer, como não escrever, olhamo-nos na cumplicidade obrigada de missões, temos vontade de nos darmos a mão e fazer recuo de cena, voltar a um gole de principio e erguer a chávena, À tua! Mas é tudo uma farsa de igual à caneca que me ocupa a mão, a outra presa na caneta suspensa. Vejo defronte a minha imagem projectada nos vidros da janela, comida a meio pelo tampo da secretária onde o gato branco se aquece à luz do candeeiro e o outro no regaço, mais laranja que amarelo, preguiça-me a vontade de me erguer para dar corda ao relógio centenário que perdeu as horas desde véspera. O instantâneo esquecido no monólogo do meu reflexo está frio, passa o cão arrastando as cortinas de lado emitindo vocalizos a uma noite que vai escoando.

terça-feira, 5 de abril de 2016

Camas


 
Chegam e deitam-se, dizem algumas palavras enquanto tiram a roupa mas sem desculpa para se justificarem no à-vontade, procuram a pele e por vezes o entrelaçar dos dedos das mãos, o toque roçado dos pés, adormecem tranquilos e sem perturbação na chegada de novos ou no regresso de conhecidos dos outros, os que sazonalmente têm o apetite da volta ou só a pretensão de serem vistos e se acharem de novo no círculo, deitam-se ou não como hóspedes desta cama gigante ou de tamanho a contento de tantos quantos os parceiros chegados, todos eles nús de pele despida, deles coberta estarei eu das suas respirações, tantas vezes ofegante do calor próximo me queimar demasiado outras tantas a proximidade não ser a quanto baste para me lembrar a vida, toda eu nua deles, eu nua em mim acordo para me virar no toque de nada os ver. Toda essa roupa espalhada, despida na ligeireza do pudor das mãos só a acho nas linhas, aqui durmo sozinha.

 

segunda-feira, 4 de abril de 2016

Travessias do Rio - 9



Ao mudar a hora mais se encolheu a freguesia deste barco, enrijecem as remelas como protecções ao que os olhos temem adiante ver, sempre no erro de um mar que não existe, sempre acrescentando o superlativo de uma tragédia que receiam mas quase anseiam como actores e narradores, invenção que hão-de acrescentar como a maré a subir.
Não vêm nada, nem mesmo as janelas ainda de escuro pintadas lhes serviria de cousa alguma, entontecem-se da luz do Cacilheiro como borboletas atraídas, lá fora é o tempo da água a escorrer-lhes na impotência do domínio do que não seguram e a beleza do que não pretendem no momento sempre ocupados no contar das correrias, lá fora é só o tempo a que escaparam de si e dos seus pensamentos como casacos fortes junto ao pescoço, pesados e quentes e nem a hora rodada às avessas trouxe a lucidez de um riacho, um fiozinho marulhado em que manobram de sopro o jornal dobrado em barco de papel.

domingo, 3 de abril de 2016

Das portas & janelas - Vol.2 - Esboço nº 5



Nunca foi lá essas coisas, é verdade, passava até despercebida, muito alta, pequena demais para que alguém se prestasse ao incómodo de revirar e atirar a vista ao alto, ninguém esperaria um rasgão numa parede, não é assim? Pois é como lhe digo, nunca chamou a atenção, depois a cor que a ladeava, sabe também importa c'os diabos! Mas nada apelativa, nem branco, nem amarelo, nem rosa, um caiado a ir-se para o desmaiado que lembrava o frontispício de um hospital e o gentio passava de cabeça baixa, está-se a ver! Mais uma razão para ninguém a mirar! Mas é como lhe digo, ele há coisas assim na vida: Há-de perguntar-me então, porque faço eu tamanho rodeio à volta de uma janelinha insignificante, não é assim?! Pois aqui é que a história se anima! Veja bem, eu era um mafarrico nesse tempo, rapazola de boa vida, fisga no bolso, olho bom na mira e a toleima dos tempos era apostar quem acertava nas vidraças! Ele realmente! Espere, espere, que isto não fica por aqui! Apontei à janelita e tinha tudo enquadrado, estiquei o elástico, puxei o cotovelo atrás... mas não fui capaz! Se o amigo a visse nesse tempo... Apareceu-me à janela a rapariga mais bonita que eu já tinha visto na minha vida! Palavra! Fiquei pasmo a olhar para o que vi amigo! Sabe o que descobri? Que as janelas não interessam nada, nadinha mesmo! Mas são as pessoas que as fazem interessantes e por isso, agora perco-me de amores por todas as janelas que vejo! Nunca se sabe quando irão aparecer! Quem irá aparecer!?


(in Das portas & janelas-Vol.2, Julho-2015)

 
Todas as fotografias da Colecção Das portas & janelas-Vol.2 são da autoria de Eduardo Jorge Silva

sábado, 2 de abril de 2016

Caimbras [da memória]

 
 
Puxo os ténis às escuras e piso os sapatos largados de véspera num acto de desprezo, atirados como último resquício de uma semana a esquecer, esqueço-me do que é andar calçada e regresso à nativa forma de sentir a terra, despojada de outros quereres que não sejam os gatos, o cão, os livros, nada saber de ruídos de aparelhos ou pequenas luzes que piscam no alerta da substituição da lembrança.
Aperto os atacadores e sigo com o Alberto em passo certo e rápido, o ar frio da manhã é agradável e a ausência de trânsito traz a natureza para perto em cheiros e sons.
Não há pressa.
Ele demora-se a cheirar os troncos das árvores, eu a descobrir onde os pássaros moram, ele a farejar o último cão no canteiro de flores, eu a apreciar os botões ainda fechados mas muito coloridos à espera do calor.
Corremos, nem sei quem mais feliz.
Mas uma maldita caimbra  estanca-me a alegria e depois de esfregar o gémeo dorido sigo de bicos de pés, no habitual uso dos músculos como se de saltos estivesse calçada. Aos poucos vou apoiando toda a base sobre o terreno e a caminhada lá prossegue, mais lenta, azedada pelo contratempo, vou marcando o chão da mesma forma que calquei os sapatos esquecidos, à bruta e contrafeita, uma caimbra na memória racha-me a musculatura do passado e as sapatilhas de ponta arrumadas, batem-me no rosto com a violência de um golpe de ar gelado, queimando a pele pelo revés que as coincidências encontram.
Regresso. As flores apanhadas por um raio de sol abrem-se magnificas.

sexta-feira, 1 de abril de 2016

Resistência


 
Encaixo-me no ângulo do quadrado, escolhi esta diagonal para distorcer dimensões e para que o espaço aumente na vista que tenho para além do topo, deste o céu cambia nos humores da chuva ou do sol ou do não sei o que me apetece e pardacenta-se  numa mancha impossível de determinar cores, coisa que já me aborreceu como assunto porque o ruído da queda de água não permite estados de alma capazes de se deitaram à poética e também, verdade, porque não me apetece.
Neste bocado estarei de igual para com a tela do céu, não sabemos como estar, como apresentar-nos, como dizer, vimos pardos para que não nos notem ou apontem ou façam perguntas repetidas de como gostamos de estar aqui e aqui é muito melhor, ou porque pinga ou de azul engana de frio ou sem decisão confunde a todos.
Empurro-me contra o canto da parede, aqui não há caminhos de fuga onde possa evitar outros e matar o cigarro tranquila, a resistência é não escapar mesmo que a virtualidade das dimensões me entortem os olhos até espremer o tecto ao lado oposto e aproximá-lo das mãos para finalmente, descobrir de que cores o céu se esconde.