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sexta-feira, 4 de novembro de 2016

Instantâneo - Episódio dezoito


 
 
Um gole, dois, três, meia chávena bebida e os olhos perdidos na folha branca, imaculada ausência, as palavras desfilam lentas porém certas num ritmo bom de as apanhar. Se quisesse. Por agora derreto-me por um qualquer sitio de não estar, vou bebendo sem descolar os beiços da louça a golinhos pequenos um instantâneo que será mais que isso, rápido no consumo, sinto o morno da aguadilha a descer pelas goelas e a tubagem à força de ser enganada agradou-se da miseriabilidade. Os gatos nos seus postos aguardam o inicio das manobras e nada, nem brincar com o elástico no pulso a entreter tempos de palavras que não chegam, não espero por elas ao menos, agarro-me à asa da caneca como salvação num prazer tão grande como uma página cheia a verbo fecundo. O fundo. Poupo o gole já quase frio, quisera que o cão viesse junto a mim, de cauda felpuda que não tem, não vem, penso no outro, bebo restos, afago o único gato que está. É tudo de fingir, até o café bebido rápido para não lembrar que é instantâneo.
 
 

quinta-feira, 3 de novembro de 2016

Ciências da natureza


 
 
Numa manhã, noite cerrada pela mudança de hora e enquanto esfregava as mãos surpreendido pelo frio à espera de boleia, viu um a riscar o céu amarelado pela luz artificial como um projéctil negro, um só traço a direito que desapareceu a caminho do breu. Depois, um par que ainda pipilou, notou-lhes um tom violento de vermelho nas asas quando florearam em rápidas piruetas em torno de um arvoredo, subiram, voltearam e de novo o negro, muito negro num fio único até a vista se tornar pouca e haver nada.
A seguir um silêncio de pessoa só.
E num susto toda a árvore que ombreava o candeeiro público pareceu erguer-se das suas folhas e subir aos céus como uma bola agitada e ruidosa, um alerta para o perigo eminente.
Agachou-se no medo súbito para logo se recompor, a vista ondeou ao compasso do bando que de um lado para o outro se moveu como uma massa mole mas ordenada, um desenho que tanto se alongava como se compactava até se adensar num brilho profundo de negro. Desapareceram rápido.
De novo o silêncio.
Depois o coração. Ouvia-o bater ritmadamente acelerado até que se abrandou numa quase solidão.
Um pardal saltitou por perto, debicando na noite invisibilidades enquanto um pio ou outro esmagavam o escuro.
 
 

quarta-feira, 2 de novembro de 2016

Travessias do Rio - 13



Estável, como uma plataforma de cimento, balanço algum que me recorde que é o cacilheiro, por dentro nauseio-me de mares onde se afundam à força as dores de saudade, prometo, já prometi antes de embarcar, que este hoje não passaria de uma poça de água, um rasgão de chuva esquecida à espera de sol para a levantar e desaparecer evaporada sem nunca ninguém ter dado por ela.
A freguesia segue morta como habitual a esta hora, uma criança tamborila os pés no assento e grita de dedo apontado a gaivota sentinela, o paquete de costas, o mar.
 
Qual mar?
 
Logo tu para incomodares o meu sentido de travessia a este rio que hoje, eu prometi já disse, não é mais que estrada de cimento, fecho os olhos e aperto os dentes na onda que cresce cada vez mais alto até engolir-me, é um mar sim. Desta dor maldita que não passa e finjo por não falar dela e até a mim me proibir, que não mata e não existe e há-de passar. Como a distância entre as duas margens um dia há-de acabar.
A mãe acena a cabeça sorrindo, compõe a criança no assento e repete, é o mar sim.
 
 

terça-feira, 1 de novembro de 2016

Mais um, nem sempre soma


 
Mais um dia, mais um grão, mais um pedaço de pele, um bocado de calo endurecido, mais um traço, mais um risco que se passa na palavra enganada, mais um verbo calado, mais um dia de memória, mais papéis descobertos no semblante quadrado, mais um ano, contar estórias, contar a história da árvore que não é, mais uma folha, mais um ar, inexistências que se desengelham ao tempo do querer, mais um dia e talvez uma palavra boa. Quem sabe serei de verdade.
 
 

sábado, 1 de outubro de 2016

Até ser luz



 
Uma noite levantei-me, não foi diferente das demais, corredor fora atingi paredes de mãos espalmadas segurando o frio de uma solidão que não se explica, não se fala, engole-se aos pedacinhos até encher por dentro numa verticalidade que segure o corpo todo e mantenha a direito o que os outros veêm. Andei e a custo dobrei-me para apanhar um boneco da caixa de brinquedos, nem sequer o seu favorito, uma cenoura de borracha que apertava entre dentes e sacudia furiosamente enquanto rosnava quando eu ameaçadora lha tentava retirar, um bocado qualquer de brincadeira que rocei no nariz e me fez perder a parede, as paredes a caírem.
A luz nocturna coada pelos cortinados entornou-se pela árvore defronte da janela, no escritório os meus pés, as minhas pernas muito semelhantes a ganchos escuros nascidos do tapete enrouparam-se da lembrança da cauda do gato branco que gostava de se aninhar nos cadernos onde eu escrevia, um anel macio nos tornozelos a perdoar as maldades dos passos cegos.
Tacteei a gaveta na penumbra e o caderno fechado de vários meses.
Escrevi no escuro até ser luz.
Respirei até conseguir saber fazê-lo de novo, outra vez em tantas que já senti o deixar de sentir. As letras, muito mal desenhadas, estavam lá, deitadas e tortas, deformadas de uma solidão espalmada que não se explica, engole-se aos poucos à espera, apenas à espera.


segunda-feira, 27 de junho de 2016

Sangrar


 
Porquê hoje e não no dia a seguir ou até no dia em que a faca lentamente voltou a entrar e rodou no prazer da dor torcida entre a carne estragada e o insuportável das palavras que o berro atirou para a falta, um analfabetismo profundo de trambolho que acaba com a vontade do som do grito e o que se poderia dizer do grito por gritar ficou no mesmo ruído gutural em que o choro não se chorou e o verbo desfez-se dos prazeres, enfartou-se do adiamento até amanhã, até hoje em que as veias se engrossaram de tanto entupidas por dizer.
 
Que hei-de dizer?
Não escrevo a tinta, enxaguo as páginas do que me corre e duvido que chamem sangue à vida que leva os que amo, mais um, sempre um desfalque na seiva, apetecia-me correr a pontapé essa vida indecente que me leva as minhas da minha, já tão poucas as que verdadeiramente quero, cada vez menos as dos homens, por onde sangrar mais se a revolta me morde as palavras para logo me açoitar frágil numa saudade de chamamento por quem já não pode vir.
 
Que fazer quando o verbo abana a cauda e me lambe as mãos.

domingo, 26 de junho de 2016

sexta-feira, 27 de maio de 2016

Bóris




O meu menino Bóris está muito doente e temo o pior.

quinta-feira, 26 de maio de 2016

Sem badaladas


 
Entre a véspera e agora, diferença alguma se faz, os olhos pestanejam a humidade bastante para seguirem mas o sono não dorme, o corpo não verga e a vontade de um e outro ou um ou outro se aconchegarem a ver se chega nem se quer na tentação se cogitam, avanço-me sem moléstias de contagem, mecanicamente o relógio encanta as paredes no fundo da casa a bater horas como um pássaro preso, muito bonito, mas dentro duma gaiola.
Quero lá saber, os dedos colados nas páginas brincam às mercearias, uma dose de letras bem pesada e uma dobra no cartucho para que não se vaze no grão, aparo linhas com retoques em A que se iniciam nos parágrafos muito deitados, comentários de quem me critica ao lado e encosta a orelha sem paciência para explicações de meia-tigela sobre a necessidade de me encher de coisas bonitas ao redor, para quê tanto detalhe?
E o desgraçado lá dentro a gemer, só, uma volta que fosse, até meia-volta que fosse na chave enfiada no furo e alimento bastante para gritar mais uma já lhe daría a força, mas fica-se, esganiça-se.
Termina-se na minha tinta todas as canetas. Todas as páginas e o caderno que ainda nem a meio vai. Talvez um pedaço de cansaço, um bocado de horas que não ouço.

quarta-feira, 25 de maio de 2016

Contradições



Há dias infindáveis que se desejam recortados do calendário, inexistentes, desmemoriados. Um acumulo de horas que não aproveita ao diabo porque tão pouco é do mal, é da ineficácia do tempo, do esgotante passar dos ponteiros a baterem no rosto sem que se sinta que houve vingança, vitória, um lampejo de coisa vencida, é correr sem saír do sitio e desgastar o chão até a terra nos cobrir a boca sufocando o grito de exaustão.
Há dias em que se pede o que não se diz.
Porque não se consegue aguentar mais o que se tem.
E porque só se conhece o que se tem quer-se o indesejável.

 

terça-feira, 24 de maio de 2016

Esqueço-me que é Maio

 
 
 
Acontece que nem me risca que é Maio, dias houve em que serenava os olhos dizendo-me olha o mês do coração, sabía-me bem como um desejo de final do Ano, ando tão ocupada que me distraio do que me distraía, as linhas da poesia parecem assemelhar-se a carris de combóio que atravesso a correr enquanto o dito me sopra na queda humilhante a quatro encarvoada.
Acontece que me distraio com a organização dos outros, perdi a noção de encostar o queixo à concha da mão e deixar-me a ficar a sonhar com a esperança de voltar a ver o mar em breve, que Maio é esperança de Estio amornado, paixões novas paixões que mesmo das conquistadas sempre se renovam na descoberta, outras latitudes, desorganizadamente achava-me e perdida ría de mim.
 
 

segunda-feira, 23 de maio de 2016

Não me apetece mais



Cansei, fartei-me, já nem me apetece explicar as razões porque está mal ou bem, deixou de me interessar, porque ao fim de muitas batalhas a exaustão chega, a estupidez penetra e não há consolo na paciência.
Basta de vampiros a sugarem-me a informação na necessidade de só mais uma, só desta vez. Só na vez em que o analfabetismo grassa e se elege a incompetência enaltecendo o amarelismo do jogo duplo das [in]confidências [re]passadas em míticos fóruns que se querem para diminuta audiência impoluta que não passa cavaco à rataria incapaz de assimilar a ordem superior de quem se acha tão alto que precisa de o dizer.
Não quero mais brincar, não me apetece.
Fiquem com tudo, engulam e engasguem-se.
Chega.
Já disse, fartei-me de dizer o mesmo, contar, explicar, ajudar, inspirar e até cem aguentar por mais uma década, mas não há pulmão que não estoure de tanto encher e assim, retiro-me, não brinco mais, façam vocês os vossos jogos que eu estou-me nas tintas para tudo.
Não era isto que queríam?

domingo, 22 de maio de 2016

A imperfeição



Como sempre, à madrugada junto pertences e abalo-me, uma trouxa de pouca cousa que no regresso venho carregada de mais mas aliviada do que me vinca a testa, o sobrolho. Nem sempre trago certezas às duvidas com que subo a colina que se acrescenta de cada vez maior por cada etapa que a olho erguendo a cabeça para a admirar, de repente fico tão pequena e até as perguntas que levo se assemelham a respostas que já foram prestadas, uma lição que parece não ter aprendido, então repito e o caminho alonga-se solitário.
Mas é nessa quase desolação, na sensação de desemparo, que acabo a encontrar as costas do meu peito, uma ressonância de mim mesmo nos defeitos, imperfeições, inacabada de tanto que aos poucos me construo, me conheço, me pacifico no reconhecimento da estrada que refaço ao voltar, tropeçando, caindo e erguendo-me com a minha preciosa carga que sou eu posso carregar.

sábado, 21 de maio de 2016

Tudo deles, tudo meu


 
Deixando ou não fragmentos por lá, o que de maior interessa e me constitui enquanto verdadeira chega aqui. Ao que faço das palavras. Ou o que estas se impõem azulando-se nas páginas muito brancas do meu caderno. Uma liberdade prisioneira, uma vontade obrigada, um sabor a sangue, um querer estar sem saber quando foi e como foi que o soube, aprendi que as coisas que sei não vieram pelos olhos abertos, não todas, muitas chegaram pelas frases a desenvolverem-se ligeiras sem que o custo me tomasse a mão ou o cansaço das espáduas ou o exercitar da adivinhação, escrevi-as como se nascesse na experiência ou a morte me tivesse levado de todas as vezes que a levei a enterro.
E ainda era eu. E os mais que respiravam por outros tantos poros da minha pele, falas contínuas ou perguntas sem resposta, nada a meu tempo, tudo deles e ainda era eu. Mais livre que nunca, verdadeira.

sexta-feira, 20 de maio de 2016

Separação



Corto o fio e entro noutra dimensão desejando um banho, chuva, uma água que me limpe de restos mesmo que só pensados a esquecer o que deixo nas costas, liberto-me do cordão e quase corro, urge a distância em que me afaste do que deixo até ao regresso, um partir e voltar recorrentes na sensação de liberdade e contenção repetitiva como se me perdesse punitivamente num labirinto.
Talvez que de tanto ir e fugir, fragmentos se fiquem por lá, expectantes de uma maioria que inevitavelmente aporta e se cola atraindo, unificando-se de novo, rompendo outra vez, bocados suspensos que ao final, nem todos ficam , nem todos atingem a livre intenção de deixar.

quinta-feira, 19 de maio de 2016

Traços de um tempo inventado



Esfrego entre palmas instantes de existência clandestina, todos os minutos que nos foram permitidos viver sem o relevo da invenção sujeita a parâmetros condicionados ao tempo, a fuga pelo devaneio ou o querer estar, quero-te aqui agora que te penso sem a memória doída ou amedrontada dos anos que se passaram desde a última vez que respondeste de um outro lado de um fio invisível sou eu, irreconhecível o teu tom de voz, desligo por não seres a poeira do que se solta das minhas mãos, das nossas mãos sem se tocarem, a distância sempre foi o nosso melhor aliado nesta profusão do sentir e querer e não deixar porque afinal isso era o melhor das histórias inventadas e até mentíamos tão bem quando o desejo nos aconchegava o silêncio e não estávamos.
Não estávamos.
Criávamos imagens de despedidas para justificar não estar e voltar contentes numa simplicidade quase grotesca de perdão. Quero-te aqui, mas não a carne do teu corpo, só a lembrança do que serías clandestino, traçado rápido, ágil e volátil a mudar-te o timbre, a cor dos olhos, não estás quando me respondes desse lado quem é, quem é incessantemente à minha respiração perguntada na mutez suspeita de quem sou eu, pois não sou, escrevo atrasada o que resta de ti até completar a hora, esfrego as mãos e encontro nada.
 
 

quarta-feira, 18 de maio de 2016

Conversas da Esfinge



Há um e outro diálogo que por vezes, dada a sua natureza e obviamente, os seus interlocutores, entra no campo das reticências. Nem tudo é dito até ao final da frase, nem tudo é completado para certeza de um dos que se mantém na conversa, nem tudo é afirmado ou negado para total clarificação dos participantes.
A certa altura, a conversa entra no campo das metáforas.
Quase parece perigoso dizer declaradamente o que se pretende. Insinua-se. Contorna-se. O verbo retorce-se de tal maneira que cada um fala de sua coisa e os dois - ou mais - acham que a resposta ou a pergunta é a adequada àquilo que pensam.
Na realidade, ninguém acaba a perceber nada. Subentende-se. É o chamado tira-se umas por outras, ler entre linhas.
Claro que este tipo de discurso é campo aberto a mal-entendidos, confusões, suposições directamente proporcionáveis à expectativa de cada um, o que vem invariavelmente gerar decepções, contradições, o dedo apontado do tu disseste e afinal! Lógico que outro se defende na parede da esfinge, um tipo de conversa abstracta e por enigmas, muito dado a derrotas caso a solução não seja favorável para o seu lado, eu nunca disse isso, se o entendeste assim, foi mal da tua parte.
As conversas da esfinge têm o pecaminoso paladar da exultação do sucesso, porque afinal até convencem o próprio do dom da palavra mas realmente, são conversas, e para tal são precisos mais que um e destes há sempre o arbítrio da escolha, de um tão semelhante dom ou melhor, mas sempre, sempre se mascaram num areal de palavras que escapam à certeza de uma distinta afirmação.
 
 

terça-feira, 17 de maio de 2016

Clarabóia

 
 
- Como é que te chamo?
Sería maravilhoso se tivesse tido a intenção de lhe pôr um nome, guardá-lo, não só guardá-lo na gaveta mas nos segredos como um propósito irrevelado que não se pode ou não se deve no momento trazer à luz, sabe-se, todavia mantém-se presente no pensamento como uma claraboia, verte a claridade bastante para que se permita dizer que é um cómodo a acesso a luz natural mas na verdade sem janelas.
Na verdade tería sido maravilhoso arranjar-lhe esse propósito, sacá-lo da pasta castanha sem admiração por sempre o ter sabido por lá, o nome por lá, apenas adormecido até as mãos o segurarem de novo e murmuram o nome secreto.
- Como é que te chamo?
E aí chamava, rebaptizava o que sempre soubera.
Mas não lembro, não sei tão pouco se lhe pus nome, se havia nome quando nasceu nas letras que se escreveram nas páginas agora achadas, porque só agora folheadas de novo como se o propósito fosse terem ficado secretas sem nome até agora, ou esquecidas porque assim tinha de ser.
Não sei como te chamo, leio-te e admiro-me.
- Como é que te chamas?
Não acho demais não teres nome, tão mais solene teres ficado incógnita por um tempo que nem sequer datei, adivinho até falta de intenção nesse acto, uma claraboia que apenas existiu como isso mesmo e nada mais.
Afinal, até há coisas que se escrevem que são exactamente aquilo que se escrevem e não pretendem ser outras ou significar outra coisa. Mesmo que dali a muito tempo, mesmo que não tenham nome.
E isso também tem o seu interesse.

segunda-feira, 16 de maio de 2016

Travessias do Rio - 12


 
Os estrangeiros deslumbram-se com as margens, não cessa o movimento constante de sentar, levantar, abrir janelas e vazar o tronco afora, caminhar pelo sobrado do Cacilheiro, espiolhar aqui e ali, escancarar a porta da cabine de Mestre e pretender fotografar, um falatório incessante à mistura com gargalhadas sonoras e muito apontar de dedos.
Os nativos fascinam-se com este desassossego.
Procuram assento perto, rapam do telemóvel e exibem as mensagens com termos em inglês, mostram os jogos, as fotos, disparam igualmente para as margens tão batidas e ignoradas no dia-a-dia, metem conversa num tom elevado como se os decibéis e os olhos muito abertos ajudassem à compreensão melhorada do seu vocabulário.
No tempo dos descobrimentos convivíamos todos numa miscelânea rotineira de culturas, ninguém mais estrangeiro, todos diferentes e tão semelhantes, margens do mundo a chegar e a partir.

 

domingo, 15 de maio de 2016

Sigo-a [escapatória de um tempo feliz]


 
Desta vez nem tive de lhe pegar na mão, segue-me a pouca distância em silêncio, o ruído dos passos  no caminho sob os pés cuidadosos a mastigarem cada folha, gravilhas, pequenos ramos perdidos que terão porventura servido de lápis na terra a desenhar esquemas de encontro a uma rua principal. Não falamos quando paramos. Não precisamos. Sabemos. Acocora-se de frente à escada que dá para a porta da casa, olha os vidros, brinca com um seixo agilmente entre os dedos. Fico-me estátua a observá-la, assim tão pequena, um pedaço amarrecado de gente, uma corcunda coberta de guedelhas a imitar-se de infanta num jogo de pedrinhas sem a ladainha, não vejo nada do que vê, decadências de uma casa que evito olhar porque sei onde possa levar-me. Não digo nada. Os vidros partidos reflectem mil vezes os restos de coisas que não estão vivas mas que também não estão mortas e o ar pesa-me no peito como se me dobrasse. Ela não está mais aqui. Ergo-me. Lanço a pedra à janela e quebro mais um pedaço, mais um vidro na memória, uma escadaria que subo e desço sem precisar de guia ou mapa, fui feliz aqui, sou feliz de muitas vezes que aqui retorne, nos gritos das sardinheiras encarnadas e no apelo dos meus avós ao caír da tarde para o lanche, nos mimos dos bichos dos telhados e no reflexo das bolas de sabão a subirem, sigo-me.

sábado, 14 de maio de 2016

Universo(s)



Apesar dos safanões, do encolher dos ombros quando o horizonte o deixa de ser tombando para dentro dos olhos, é aqui que volto, me sento, que grito ou nada digo no receio de afastar a que fui da que sou.

sexta-feira, 13 de maio de 2016

Um dia cresço. Talvez



Até onde poderão ir o alcance dos pensares, até que medida do tempo, um dia é-se demasiado isto ou aquilo, as permissões terminam e não há mais lugar a desculpas, engavetam-se desejos como páginas projectadas na esperança de deixarem de ser esboço. Deixa-se de ter idade para a coisa, para as coisas, parece mal ou assenta-lhe disforme ainda ter trejeitos de verde sonhar quando estes se guardam para a falta de tino ou cabeças de vento, agora vistos de tão perto assemelham-se a velhas gaiteiras, senilidades, olhos fechados ao maduro do cacho a pender para a queda, maniazinhas de quem se acha artista que deste tudo se perdoa, admira, aplaude e convida a mais no bizarro que se espera.

Sempre me deslumbrou infantilmente, a palete de cores em borrão exibida.
Sentia o mesmo quando entrava numa loja de tecidos e a multiplicidades de tons alinhados me faiscava nos olhos as palavras a descobrir.
Como se chama aquela cor?
E não sabendo, catava na natureza o que de mais próximo imitava a tintura feita no pano. Depois no verbo. Nas páginas. Até no querer que as sapatilhas poderiam entregar nos passos. Dar vermelho de sangue, branco de neve.

Terei porventura ficado travada no crescimento que as cores do pensar continuam a desenvolver o fascínio de as alimentar.
Não sou artista mas deixo ir-me sem tempo ao que o sonho ausenta do corpo.

 

quinta-feira, 12 de maio de 2016

Fios de água


 
Creio que se entrasse nesta tina gigante alguém aflito haveria de me retirar em braços, não cuidando pela minha saúde mas o recato do sitio, a compostura que se impõe no distúrbio que eu haveria de causar. Imagino. Até as pobres plantas sedentas nesse dia haveriam de arrebitar.
Navego na remada que os meus horizontes permitem [lá regressa a velha frase, eu não tenho paredes] e deslizo quebrando o ruído da queda de água interrompendo os fios contados tantas vezes que me esqueço agora quantos são, as águas são sempre novas, ninguém a impedir e todos a quererem entrar na minha nau, um gigante por cada um que pede, uma jangada por todos os que desconfio. Não quero ninguém, o sonho é meu e levo comigo quem [não] atravessou o Rio, faço desta concha de água um oceano de desejos, o Gaspar imponente à proa.
Alguém descuidado atirou uma beata à cascata, vejo-a boiar engelhada. Ninguém a punir.
Recolho da minha roupa um pelo que quero que seja dele, mas pode não ser, talvez sejam restos do meu barco que não consigo afundar.

quarta-feira, 11 de maio de 2016

Dias de mim



 
Há dias de mim em que não pareço eu. Em que o cansaço me destrói o corpo, a mente, o sentir, todos os sentires da vontade e do querer e eu só quero estar comigo mesma. Nem mesmo com os meus eus o desejo aparece com força.
 
Há dias assim, em que o casulo se reforça apertando à minha volta, os dias de mim em que o mundo se veste da minha pele e da minha língua à volta do céu do boca a empurrar palavras que por vezes prefiro não lembrar, preferia não saber pela memória revisitada das saudades dos que não tenho mais perto de mim.
 
Porque é tão verdade que dói insuportavelmente, porque ele há dias em que custa passar apenas com a lembrança, é preciso mais, é preciso que cheguem e me toquem e falem comigo fazendo ruído das vozes a dizer o meu nome e não o silêncio do meu pensar nas suas vozes imitadas na minha para não os esquecer.
 
 

terça-feira, 10 de maio de 2016

As que se merecem


 
Em que ponto da vida de cada um as palavras começam a rarear - as faladas, digo - não sei, mas era uma interrogação que me fazia porque razão as pessoas mais velhas eram tão parcas no seu dizer. A certa altura convenci-me que sería por falta de companhia, essa ausência de interlocutor deixava-os mudos, mas outros haviam que murmuravam sem ninguém para lhes responder e desses explicava-se que a idade avançada os tería tornado tontos, coitados, já sem saber de que mundo eram falavam para o ar.
Acontece que cada vez mais me apetece falar menos, explicar, retalhar ideias até do outro lado atingirem o que se passa, esgotei-me na decepção das mentiras, dos disfarces, na transformação de tirar verbo da minha boca contextualizando-o em cenários à medida de quem o molda, perdi a paciência das lutas na generalidade e deixo quem não merece na ignorância.
Mas a redução das minhas palavras não significa que me ponha a jeito, que me disponha a bel-prazer de ouvir e ser alvo e sem dor, aceite a estupidez alheia. Não o aceito mas ignoro o que me poderá desgastar sem acrescento, do outro lado nunca chegarão a ouvir.
Afinal, os antigos talvez tenham outros eus a quem murmurar sem desperdício. Uma sapiência comedida, leve como o ar.


segunda-feira, 9 de maio de 2016

Plano A


 
Metade ficou agarrado ao que hei-de encontrar, um passado e um futuro, colisões em conflito se estáticos aguardam quem dê o primeiro passo. Afinal avanço eu na semana, 2ª feira, colo o rosto ao vidro e aproximo muito a respiração à transparência do que desejo saber encontrar, planeamentos por vezes servem de muito pouco, a inspiração do plano B  surge como o herói do dia  mas a experiência e a vontade levaram-me o manto dos super salvadores, desenho um quadrado no bafo do vidro, uma grelha e tudo se resume a uma prisão.
Metade vai andando, a outra recorda-me os rabiscos de meias-caras que sempre tive o hábito de desenhar, uma confusão penso agora, mistérios achava eu, a que não se vê é o apetite da descoberta, talvez um defeito a esconder, uma fuga à grelha para tapar outras misérias de outras tantas metades. Passados em colisão à espera de passos em eternas Segundas-feiras que já se adivinhavam salvas por super-heróis com idade de reforma e males de respiração no peso de suportar o manto.
Avanço, nem metade de ontem nem outra de tanto na expectativa do achar, vou. Hoje, farei um boneco de corpo inteiro.

domingo, 8 de maio de 2016

[Parar para] Escrever



Empurrei devagar e a duas mãos caderno, caneta, a tampa a agitar-se reboluda no seio das páginas à espera do decote que a cobrisse de mais letras, hoje não, mais não, a decência pede que pare por aqui e desande, contradições de quem não anda e resta, uma réstia de decoro enquanto ainda há tinta que core no depósito a saber que as frases por se escreverem não virão no esforço do assento e na permanência do ficar, empurro devagar a vontade e caminho-me noutras linhas. Ao sol. À sombra projectada vigilante e silenciosa, incomodativa, uma cópia transferida e empurrada devagar que me conta um, dois, três, quatro passos, quantos passos, nenhum jogo de brincar, fugas impossíveis na solução, passeio as minhas frases pela aragem do dia e vejo folhas de árvores em cadernos como páginas verdes do meu caminho.

sábado, 7 de maio de 2016

Instantâneo - Episódio dezassete


 
Pediu educadamente um café, uma fatia de bolo caseiro, apontou na campânula de vidro cinzelado a escolha entre o mármore e o laranja, quería o primeiro, a ondulação dos dois tons gema de ovo-chocolate era-lhe apelativa. Esperou. Voltou a chamar e repetiu o pedido. Aguardou. Olharam-no e vieram perguntar se estava atendido, pela terceira vez disse o que pretendia, indicou com o dedo espetado o bolo mármore. E também café. Voltaram costas. Agarrou um jornal esquecido pelo balcão, folheou e encontrou as palavras cruzadas, meia-dúzia de letras inscritas nos quadradinhos e o resto por adivinhar. Levantou os olhos e observou os empregados, vigiou o seu pedido, o bolo mármore já desbastado, a máquina de café num desassossego igual à registadora. Voltou ao cruzadismo, procurou os números e a intersecção das letras. Sinónimos. Levou um susto quando alguém bateu com o suporte de metal dos guardanapos de papel na sua frente. Ajeitou-se ao banco e esticou o jornal ao balcão para ganhar espaço. Chamou outro empregado e perguntou pela demora do serviço. O empregado desapareceu sorrindo. Três letras. Trouxeram o café. Esperou pela fatia de bolo mármore. Chá escreveu. Deu um golinho a poupar a bebida até o bolo vir fazer companhia. Abreviatura leu. Tapou a chávena com a palma da mão e olhou ao redor. O bolo mármore havia desaparecido. Chamou alguém. Alguém. Bebeu o café morno até ao fim. Dobrou o jornal pela metade e deixou uma moeda em cima do balcão. Um empregado apareceu, recolheu a moeda e agradeceu a gentileza.

sexta-feira, 6 de maio de 2016

Mayo a Madrid - 6


 
Recolho os meus pertences do quarto, rapo os odores à lembrança para mais logo e já entre a euforia do contar, calar-me, hesitar entre a descrição e a revelação puxar à língua o picante adocicado que me há-de restar e que para todo o sempre direi primeiro para mim quarto de Madrid, depois só para alguém especial, quarto de hotel em Madrid sem mais explicações.
Olho ao redor e fecho os olhos a guardar cores, o lápis que usei nas noites para escrever talvez me devesse acompanhar por já ser meu mas decido deixá-lo para escrever outras estórias pela mão de outros que se hão-de deitar nesta mesma cama com saudades da sua.
 
Hoje levo saudades parvas desta.
 
Também da alegria de Madrid. De Lenita. De dios e hombres e coños. E saudades de gentes que pressinto que não vou ter por perto embora os tenha. Malditos presságios. E que vão tão bem em língua espanhola neste contraste fulminante entre a alegria ininterrupta e uma quase tendência para o drama da facada para se dominar a cena como una película de Pedro.
Fecho a porta do quarto, Buenos Días cumprimentam.
 
Arrasto a minha mala vermelha maciamente e entro em casa, como foi?
Estupendo.
 
 
Maio/2014

quinta-feira, 5 de maio de 2016

Das portas & janelas - Vol.2 - Esboço nº 6



 
As escadas vieram depois.
Do desconforto das irregularidades das pedras grandes a servirem de degrau até à porta já ninguém quer lembrar, ninguém tem vontade de ter presente o descompasso do susto, os beijos às escuras, os toques profanos de senhas combinadas como que a dizer sou eu, abre que sou eu que venho buscar-te e levar-te de vez. 
A memória tem destas coisas, lava a sujidade da consciência e deixa de depósito os contornos de uma história a contar.
Não contam que era a porta das traseiras, os fundos, o de trás, o dê a volta para que não se veja quem não tem importância.
Fomos importantes, somos importantes.
Fizemos daquela porta carne de gente, sangue de uma aldraba que se aquecia por cada vez que alguém a cingía a bater na madeira, o chamamento aos do fundo, aos da vergonha, aos que da noite iluminaram degraus, ombreira, pátio e até o padre veio para jogar uma água benta, não fosse o caso de lhes termos deixado enguiço na soleira que adentrasse e fizesse maleita ao senhorio e afinal eu só te quería bem, a minha mão a aconchegar-se à tua por perto sem ser no arranhar da porta por saudades de te ver fechá-la nos cuidados de sermos agarrados como malfeitores.
As escadas vieram depois de partirmos.
Rápido.
Mas só para compor que depois de nós é tão só uma porta. 
 
 

 
(in Das portas & janelas-Vol.2, Agosto-2015)

 
Todas as fotografias da Colecção Das portas & janelas-Vol.2 são da autoria de Eduardo Jorge Silva

quarta-feira, 4 de maio de 2016

Hoje preciso que me digas amo-te


 
Não acordei assim mas o mundo virou-se como um lacrau de pinças abertas e desprevenida ferrou-me, não sei que cousa terei feito eu que hoje todas as feiuras me alcançam e a realidade a abrir-me os olhos sem descanso de virar o rosto para o imaginado desalentou a força de procurar beleza onde a achar, por isso te peço que me ames esta noite e mo digas, repetidamente mo digas muitas vezes como se do acreditar fosse necessário ouvir-te na voz aberta de olhos nos olhos muito próximos até não sabermos se nos olhamos ou nos perdemos ou nos esquecemos quem somos ou o que fazemos sem ser respirar para dentro do peito um do outro a dar tudo o que não se consegue dizer por ser tanto e haverem tantas palavras que afinal não sabem dizer o que vai por dentro da loucura do amor que passa do amor, uma cousa simples que mata e eleva como heróis, um segundo complicado que tapa a boca e que eterniza e que se quer lembrar mas já não se consegue explicar, tudo isso e nada, nada a dizer, um dedo a deslizar pelo cabelo e a voz que ondula na mecha amo-te, repetidamente nada e tudo, irrepetíveis pedaços de nada que se agarram a sítios devorados na memória de histórias imaginadas mais bonitas, mais contadas, mais minhas, nossas, de quem as souber amar, hoje preciso que me digas amo-te porque o mundo nasceu feio.

terça-feira, 3 de maio de 2016

Travessias do Rio - 11


 
Não é um barco, é um rectângulo de plástico em tons de mimetizado azul para não incomodar tanto o meu Rio. Perturba-me entrar-lhe, sufoca-me o instante em que me põe do outro lado, mantém-me prisioneira quando baixa a rampa que lhe serve de porta e me lembra um castelo.
O catamaran que atirou com o Cacilheiro para o lado, tem vindo a levar-me e a trazer-me de mansinho, um ápice de desagrado alcatifado com as suas janelas quadradas muito perfeitas que não são de abrir, múltiplas filas de cadeiras que convidam à clientela a assistir a uma fita de cinema viva e renovada todos os dias, mas a que só se alcança meio céu, meia água, tudo o que a vista tem diante do nariz e olha lá.
Vejo-os contentes. Rápido. Moderno. Quase clinico.
 
Como me apetecia a garridez da pintura laranja vezes sem conta retocada a esconder a ferrugem dos anos e o engasgo do motor no ronco da madeira guinchada quando o cabo se esfrega esticado preso aos cais. E os Cacilheiros de dois andares, com prancha tirada à mão, e as travessias turbulentas em que o hóspede se entrelaçava à cadeira precavendo borda-fora...
 
Não é um barco, são estórias que me conto em 7 minutos.
 
 

segunda-feira, 2 de maio de 2016

O canto dos passos


 
Já procurei desenhar vários trilhos - imaginados e em vão - que me conduzam a alguns quilómetros para fora do perímetro onde se anicha a cachoeira, mas o ruído acaba por me perder do caminho inicial e serpenteio inevitavelmente repetindo-me, à volta das cadeiras desirmanadas das mesas, como um carrinho de uma pista em oito.
Já tentei também dar passos miúdos - reais e marcados - mas nem o barulho dos tacões consegue abafar a estridência do alto da água a despencar-se nesta bacia gigante, e vista de parte, direi eu mesma, depressa me internaría ou sería afastada dos demais por autismo profundo, já que o diminuto da área a percorrer limita bastante a exploração do espaço e é bom de adivinhar, de lá para cá, de cá para lá.
Resta-me assim o canto.
Cada vez mais amarrecado no empurrar das minhas costas na tentativa de fazer crescer paredes de cimento, conversas que escuto e às quais não posso fugir, não posso deixar de abanar a cabeça, nada de mim a acrescentar, a dar ou devolver, venho ao vicio dos passos esfumados e nem uma gaivota para um jogo de palavras trocadas entre beber e ter sede ou mais pobremente chover e chorar, um voo indiferente aos meus estados de corcunda e verticalidade.
Passo a perna pela frente da outra e enviuso-me.
 
 

domingo, 1 de maio de 2016

Flor ou Árvore, são palavras ao meu tempo


 
Eu que sempre escrevi em cadernos, pedaços de papel que depois entalava à laia de folhas soltas entre páginas dos primeiros já gordos e deformados, fui seduzida às malhas do virtual e a 1 de Maio de há 9 anos atrás ensaiei a Flor da Palavra à vista de quem passava. Falavam-me então, das maravilhas dos blogs e do que a as minhas palavras precisavam: Ar. Serem arejadas, perder a timidez e partilhar o que guardava nos benditos cadernos que não íam a lado algum.
Assim fiz.
Gostei.
Gostei muito. Detestei muito, decepcionei-me muito e encantei-me outro tanto. Com coisas sérias, com coisas fabricadas, com palavras sérias, com palavras copiadas, com pessoas reais e com pessoas que gostariam de existir mas nunca chegaram ao calcanhares do que puderam ser, porque simplesmente eram inventadas.
Mas eu segui. Como Árvore e com o verbo e no tempo que me apetecia porque no fundo sempre foi o que de verdadeiro aqui me trouxe e soube bem,  nem publicidade nem confissões ou qualquer outro objectivo obscuro ou clarividências que me tivessem transformado a vida.
Num passado recente, alguém se admirou deste blog ainda existir. De eu ainda nele persistir apesar de não haverem comentários aos textos publicados. Apesar - dizia, com um sorriso que entendo critico e mordaz - ser coisa de outros tempos, que ninguém liga já aos blogs.
É verdade.
Mas ligo eu.
A escrita tem destas coisas. É de modas. Cega como as modas. E eu sempre andei ao meu tempo.

sábado, 30 de abril de 2016

Linhas em branco (na noite)



Na véspera de mais um ano nesta árvore visitam-me os habituais, conversamos, não sinto enjoo, estou por aqui como gosto, enquanto gosto. Aliás, cada vez me dá mais gosto, sempre escrevi para mim e não para agrado dos demais. As vozes dos meus eus mantêm-se fiéis, mantêm-me louca e desesperada e eu não me quero de outra forma, não me saberia conhecer sem os ouvir e escrever, certo é que iria sentir-me nua ou mesmo doente, toda a minha fizeram parte do meu quotidiano, toda a minha vida os amaldiçoei nesta intranquilidade que afinal tanto desejo, tanto me fazem parte e ensinam. Donde, já desisti de saber, há perguntas que estão respondidas na sua incapacidade, basta a relevância de saber sem saber donde provém o miolo do que sei. Acompanho-os, acompanho-me, nunca estou só. É muito mais do que qualquer Árvore possa dizer, sentir.

sexta-feira, 29 de abril de 2016

Quem chegou primeiro?




Da outra vez perguntaram se eu ainda dançava e eu respondi com palavras, com os olhos, com as imagens que o furacão da memória levantou na interrogação na ponta da frase.
Agora nem perguntou nada, ouvi os acordes e ergui-me, levantei os braços e deixei o corpo ondular, os pés deslizarem como se os sapatos fossem o prolongamento das pernas o soalho me comesse a carne dos pés.
Senti-os a olharem-me, os lábios a descolarem-se na surpresa, um quase sorriso, depois as mãos atrapalhadas junto à boca a taparem a convulsão da gargalhada e depois, sim depois, a vontade de virem, a vontade de gingarem, a vontade de levantarem os braços e ondularem o corpo e rirem despenteados, os sapatos no batuque do soalho.
Puxei um, uni os meus dedos às suas mãos nervosas e abracei a minha cintura junto ao seu corpo rodando, rimos, depois mais outro e neste trio estacámos junto a uma mulher apavorada que ofereci a minha mão livre. Aceitou, riu e passados alguns segundos todos na sala ríam.
Quem chegou primeiro?
O riso ou a pergunta?

quinta-feira, 28 de abril de 2016

Dia cansado



 
Repetir não interessa, é aquele dia, e dos outros passados já pouco se aproveita de mim, levaram-me quase tudo, quase tanto de um velho pedaço com sabor de novo que ainda se iludem que possa servir como novíssimo, até eu piamente digo que aguento, só mais um, só mais uma hora, só mais dez minutos a fazerem-se de dias novos e de mim nova e de bocados apanhados sem sentir nada, cuspo em cada aresta e espero que a aderência se una forte o bastante durante o tempo da convicção da frase dita para dentro.
O dia não acaba enquanto eu não [me] acabar.
Lembro das despedidas que não fiz, de linhas que projectei serenas sem drama no adeus até breve aos que me acompanharam e sorrio amareladamente porque nem eles partiram de vez nem eu fiquei de vez, um limbo de ser à parte do que não sou, uma enteada que se suporta na refeição anual da consoada e se vê confortado mas com remorso de ver as costas, não incomoda mas estorva, nem amigo nem inimigo, o dia não se repete só porque não gosto dele.
[Apanho os meus bocados e] termino.
Amanhã há mais com gosto renovado.

quarta-feira, 27 de abril de 2016

O dia a sério ( ou depois do adeus)


 
Eis o dia seguinte, o verdadeiro, que ontem foi tudo brilho, luzes, festa e encantamento de ruídos das palmas a ensurdecerem o ritmo do coração pelo receio da mudança, o desconhecido que maravilha por ser desconhecido e pela fé no conhecido já ter a ausência da confiança, o esquecimento a pedido. O dia seguinte a pedido.
Eis o dia a sério em que o cheiro da festa nem sequer deixou rasto de fita cortada, um copo esquecido de meia bebida brindada ao futuro do dia presente, uma nódoa de creme esmagada no pedaço de bolo caído pelos queixos pendurados, tudo sério.
Vestem-se a preceito para este dia seguinte.
E a imagem que lhes tenho é de quem aguarda longamente por um encontro muito desejado e preparado com tanta atenção como no primeiro dia de Primavera com cheiro de roupa nova, sapatos brancos abertos. Esperam e esperam e uma tremenda borrasca prepara-se para caír tomando-os desprevenidos quando regressam solitários e pensativos, pingando, no dia antes da festa.
 
 

terça-feira, 26 de abril de 2016

Alberto & Cª



Faz hoje 4 meses que o Alberto se juntou à família.
Perfeitamente adaptado ao Pipoca e ao Bóris, respeitador dos espaços de cada um deles mas ainda dominador no que toca à sua ração emitindo pequenos vocalizos quando algum deles se passeia junto à gamela, é vivo, alegre, de cauda sempre agitada demonstrando um bom-humor constante. 

 

 
A energia que o anima - decerto proveniente dos seus genes Jack Russell - acaba, muitas das vezes por ser o meu desespero, já que o apetite por tecidos se mantém. É verdade que não aumentou e com o devido tom de voz atina que fez mal e encolhe-se. Até à vez seguinte.



 
Mas o seu olhar, a companhia, os saltos de alegria, os longos passeios ou os momentos em que no abraço em que me deito ao seu lado e assim ficamos, sinto o seu pequenino coração a bater tanto, valem por tudo, salvam o pior dos dias e sou de novo a pessoa mais feliz do mundo.

segunda-feira, 25 de abril de 2016

Qual 25 de Abril?



É complicado, quase difícil explicar à distância desta data toda a atmosfera, o que significa quando se verbaliza 25 de Abril, não um mero apontamento de calendário a registar mais um feriado que se deseja entale entre uma quinta e o fim de semana para aproveitar a tirada maior de ausência ao serviço ou mini-férias sabáticas mas O 25 de Abril que viciosamente uns quantos de memória ainda associam ao quebrar de um enguiço que parecia ter erguido muros a Portugal e isolado o País, só, orgulhosamente só como diría o outro de Santa Comba Dão.
Afinal tudo cai. Até ele, o primeiro e de costas que em seco não soube nadar numa terra de gente que sempre teve olhos azuis de marinheiro e peito afoito a latitudes que não se prendem a dedos esticados de comendas ou comezinhas orientações sobre castigos se não nos portássemos como a medida da trela apertava. Vai que estica e até o nariz esfolado de sangue no ar é preferível ao comer arrastado pelo chão.
Acontece que o tempo passa e a história dos homens conta-se pelos homens, enreda-se e molda-se na recordação deste contar, amaciam-se as quinas dos episódios evitando o grotesco, da susceptibilidade a ouvidos mais sensíveis cumprindo as regras politicamente correctas impostas pela ortografia do dizer no receio do amanhã fabricar homens cerceados por traumas, permitem-se esquecer dores e o tal fio de sangue a pingar a peitos em paredes de prisão inventam-se poéticos nos cravos manchados em lapelas de desfiles só lembrados a um dia, só lembrados a páginas de matéria corrida de um período a seguir a um Estado Novo já muito bolorento e caquético, papagueada na sabedoria de uma classe conjunta de geração salva por outra, outras que nebulosamente apelam a uma costela revolucionária deste dia para justificarem a resposta à pergunta sobre a liberdade.

domingo, 24 de abril de 2016

Virei aqui nesse dia



Escrevo hoje sobre este sitio para que um dia hajam mesas, cadeiras e as tias que nelas se sentam a beber o seu chá muito triste, muito brancas de memórias de sonhos que tiveram na mesma idade que eu tenho agora e nunca passaram de páginas rabiscadas por alguém tão igual quanto eu numa mesa próximo e de nariz tão apurado quanto eu para que possamos todas fazer jus ao que somos.
 
Hei-de vir nesse dia porque há-de haver a mesa que escrevi, algumas migalhas de éclairs chorados a baunilha e pó de arroz na confissão de jogos perdidos de canastas às quintas-feiras depois de não haver sol e a disfarçar a falta de outras companhias, lembrarei as tias de chás muito tristes sorrindo entre páginas do meu caderno, o chantilly azedado pelo tempo da escrita de alguém que nos olha.
 
Pago o que devo e despeço-me de alguém que imagino possa escrever sobre o que serei, as tias já foram há muito, o empregado sacode as migalhas para o chão.
 
 
(in Eu na Versailles, escritos improváveis, C.G.-Novembro/2005)

sábado, 23 de abril de 2016

Perguntas(sem resposta)



Acontece que a conversa desfiada impede o rumo das mãos, mesmo que os olhos marquem a folha e o desenho prévio das letras, das palavras e até o completo sentido das frases pontuadas e já prontas no carreiro, desdobrar atenções a partir ( quando foi que aconteceu?) de um período tornou-se impossível gerir na tagarelice misturada do caderno (hum, hum para manter a delicadeza do receptor). Do sonambulismo desta escrita nem sequer me afianço sobre a plenitude da minha ignorância de vir para a rua despida ou do disfarce de dormir para não parecer totalmente tonta e assim perdoarem a falta... Mas amarfanhado o caderno e a caneta tamborilada várias vezes como objecto de arremesso à substituição do que o inconsciente se dilata aos poucos na escalada da ansiedade eclodem num pico em que a energia se resume no solilóquio contorcido sobre a incapacidade do que aconteceu mas não sei quando. Não sou mais capaz de escrever quando estão permanentemente a falar comigo e parece que escolhem sempre os momentos em que me veem entregue ao caderno para conversar. Dantes era possível, agora não. Porquê?

sexta-feira, 22 de abril de 2016

O fim de uma casa



Mandam fechar as portas e eu fecho.
Mandam esquecer o número e eu fecho os olhos.
Há mais dias de mim crescida dentro das portas fechadas do que os vividos franqueados mesmo que portas novas se abram a casas caiadas, do reboco muita pele de mim está agarrada, muito morto chorado, risos que estalam até foguetes se envergonharem.
Mandam fechar as portas e eu fecho.
Mas lembro sempre a rua até à casa.
 
 
Fotografia de Eduardo Jorge Silva

quinta-feira, 21 de abril de 2016

Postais ilustrados


 
As plantas continuam à mercê do que possa piedosamente caír do céu, vale-lhes o cheiro da imitação a que todos chamam cascata - eu também à falta do que ainda não encontrei [fios de água, grelha de água, ruídos de água] - é provável que daqui a uns anos se resistirem até lá, se transformem em palmeira e se dobrem, verdadeiros postais que os turistas que ali vão apreciar o vicio do fumo deleitam no mirranço dos pulmões, elas todas esguias e atiradiças à bússola da água farejada e eles de fato completo e gravata lembrando quando elas eram meros arranjos ornamentais que serviam de aparo a beatas, uma admiração.
Encosto-me ao canto, é provável que daqui a uns anos já não tenha arestas de tanto nele me roçar e as minhas costas se tenham amarrecado no jeitinho de conforto, um molde piedoso que nada tem que ver com o céu mas aqui sou muito mais prisioneira que as próprias plantas definhadas na sequiosa vontade de alcançar esta bacia gigante que não mata sedes a ninguém, nem de boca, nem de nomes que lhe procuro, nem de estórias que tento inventar para enrolar o vicio, nem a incapacidade de fugir como árvore que sou.

quarta-feira, 20 de abril de 2016

(Falsa) Cura


 
Esta (falsa) noção de férias e da concepção do dolce fare niente tem muito que se lhe diga, verdadeiramente, nada de niente e de dolce é mais para poco do que para molto mas vai-se empurrando o critério da designação com a sensação de liberdade e de estou para aqui como bem me apetece e ninguém tem nada a ver com isso e depois, conforme já disse não o dizendo declaradamente dois posts abaixo, meto a calçadeira e lá empurro de pés apertados tarefas sobrantes que no dito prazo de nada se fazer ficaram a boiar na admiração de não faço, não faço e não quero saber.
Mas fiz. Em dias que o tempo já não podia evitar olhar para trás ou fingir docemente nada se passar, fiz e tão rapidamente quanto fosse o tempo acertado de as ter feito em dia útil e talvez até melhor na urgência de as deixar concluídas e perfeitas como caso fechado e sem matutação de lhes pegar na preguiça adiada, sem mais cansaço por desdobrar a vontade em acrescento de mais uma e outra coisa ou os dias a encolherem-se na grandeza do tanto por fazer.
É que acaba por ser sempre o mesmo, a mesma falsa noção de que o tempo nos controla. Mas não nos curamos.

 

terça-feira, 19 de abril de 2016

Travessias do Rio - 10



Do cais de embarque que outrora serviu ao deslize dos carros entalo os saltos altos nas grelhas ferrugentas, um acidente de percurso com diversos níveis como se desenvolvesse um jogo de computador, eu própria uma peça deste labirinto que me desvia a atenção do que é importante, o Rio diante de mim, os humores com que me recebe, a travessia que me faz, degraus desnecessários agora que o Cacilheiro grande amarrou de vez os cabos a um porto vendido, dizem uns quantos para reparação, mas o negócio vai mal e o melhor foi levá-lo para fora de vista de uma vez por todas, provavelmente para ficar preso até se afundar de tristeza.
Suspiro ao desencravar-me num repente furioso, não pelo sapato arruinado mas pela memória do Rio atravessado  nesse barco majestoso que há tanto deixei de ver e da mão da minha mãe a estrangular-me o vestido evitando a tentação do meu mergulho libertador.
Há Cacilheiros a preto e branco nos meus ais e nem mesmo as muitas vidas de um bom jogador cibernauta me salvaríam da dor que me enterra esta manhã.

segunda-feira, 18 de abril de 2016

As horas faladas [não necessariamente em palavras]




Ganho um último dia de férias e não faço nada, dou-me de bónus as horas faladas para mim em que a permissão de tarefas por fazer ficarão para outros dias, dias de dobrar ou de encaixar, uma bucha a encavalitar afazeres perdidos que afinal ninguém se perdeu, o universo roda à mesma, só eu fico de quando em vez engasgada no lembrete para logo me açoitar, perdoar, culpar pela falta de culpa, não faço nada, navego nos pensamentos de uma vida emprestada em que fosse eu se nada tivesse com que me ocupar e o tédio do próprio objecto do raciocínio chateia-me de tal forma que antes do sobrolho erguer-se já as mãos se distraíram a dar nós num bocado de cordel unindo as duas pontas, um jogo de criança entrelaçado nos dedos mas sem mais ninguém por perto para pedir que tire a aranha de fios das palmas abertas acabo por rejeitar, cruzo os braços, viajo pela janela até me arderem os olhos e num instante tudo se me leva, tudo se vai, uma ausência de achar, como se uma maré chegasse e lambesse a areia, regresso a mim tão rápido quanto o recuo das águas para se formarem em onda nova.
Ligo o som e danço.
 
 

domingo, 17 de abril de 2016

Hábitos


 
Embrulho a noite, retomo velhos hábitos de esquecer números de horas ou estas perderem a noção de quem sou e apertadas entre badaladas que já não ouço misturo-me a fantasmas aqui e ali conforme o interesse da conversa, o motivo das mãos ocupadas, o tique curioso, aos poucos escrevo, páro muito, perco-me muito, fico muito para trás destas criaturas invisíveis, não é cansaço é demasiado para um mortal querer ter a frescura da infância na memória madura e o comportamento trai-se pela velocidade com que a mudança dos sentires entre planaltos de tempo se alternam, parece que afinal sempre ouço as badaladas, eles é que ignoram e seguem com as suas conversas não fazendo caso às horas, melhor para eles que não se distraiem em linhas escritas e a fidelidade dos números deixam para mim, presa ao momento de quando terá acontecido.
 
Quando foi?
Desembrulho o dia, as cortinas permaneceram sempre estáticas deixando a noite abundar-se e agora encher-se de luz fina, só eu, um caderno, poucas linhas aproveitadas de tanto escrito sobre um hábito revisitado em que converso comigo, lá atrás, a entender-me numa rebeldia veloz de sentimentos que pareciam não caber dentro de mim. Até hoje transbordam[-nos].