Todos os textos são originais e propriedade exclusiva do autor, Gasolina (C.G.) in Árvore das Palavras. Não são permitidas cópias ou transcrições no todo ou/e em partes do seu conteúdo ou outras menções sem expressa autorização do proprietário.

quinta-feira, 30 de abril de 2015

Equilíbrios [graus de]




A sensação [falsa, falsa] de equilíbrio que a escrita me transmite, e nem sequer falo do aprumo das letras arrumadas em cima das linhas, que das carreiras dos desenhos dessas apertadas entre duas, só a recordação dos cadernos me faz sorrir na textura do papel muito fininho e dos erros suado frio na descoberta da professora e na improbabilidade do retrocesso me levavam à tradicional borracha de tinta e ao [quase sempre] furo no dito [porque será que acontecia?! eu nem sequer apagava com muita força], está proporcional à duvida sobre a qualidade da produção. A minha, bem entendido. O que está feito para trás de mim é diferente e melhor ou pior e serei hoje outra aquela que escrevo, sendo incontestável que a maturidade [enquanto ser humano unicamente] não é factor controlado? Não é retórica, é mesmo demanda, o exercício constante tem como objectivo o aperfeiçoamento para além da necessidade primária [e básica, primata em mim, respirável], mas será que o houve? É que ser suficiente é o mesmo que ser medíocre. Antes ser mau. Ou bom. Será este o meu verdadeiro equilíbrio.

quarta-feira, 29 de abril de 2015

Emaranhados[da escrita]




Não há dúvida que a chatice da escrita é que tem vida própria. Humores muito seus, a veia ou mais propriamente a falta desta, quando a folha se torna tão branca até fulminar e todas as palavras se afugentaram sem nexo, sem coesão, sem colchete que aperte um pensamento ao saber dizer.
 
A melhor boa-vontade torna-se um empecilho porque não se passa do conceito. Emperra-se à primeira palavra, segundo parágrafo, à emenda do primeiro, o que seja, espantam-se na separação entre planos, o que se busca e o que se acha, o que se escreve e como se faz escrita. E não tem tempo de acontecer e nem dia de regressar, a todos atinge com maior ou menor intensidade e sem botão de desligar da pardacenta figura em que se marasma frente ao impiedoso papel, fazemo-nos vitima e carrasco, por vezes em desculpas adiadas pela incapacidade que não conseguimos explicar. Por vezes, porque o sangue que corría nas veias secou e se fez pó. Por vezes, porque ferveu e precisa acalmar-se.
 
Mas a chatice da escrita, mesmo, é que é como o amor. É uma pedrada.

terça-feira, 28 de abril de 2015

Práticas




 
Não há dúvida que a facilidade da escrita não está só no jeitinho ( fora os génios, tomara eu) mas igualmente no treino, uma semelhança quase macabra às aulas de dança que tanta saudade me trazem (fosse eu capaz de voltar a chorar e  rios haveriam), é o gosto, prazer, a necessidade, o querer.
 
Mas é assim mesmo. Escrita escorreita, daquela que desliza pelos dedos, só mesmo a que se pratica todos os dias, com muitos erros e enganos e voltar atrás, o desespero e seguir e refazer outra e outras vezes emendar e buscar sempre novo, sempre melhor, sempre o verbo que acerta no sabor exacto ou o mais aproximado ao arrepio, ao toque, ao canto do olho nem que seja num vislumbre e sempre a certeza de que se está longe para se querer mais e melhor e doutras, sentar porque é o tempo das palavras respirarem por si porque são o bastante e nada mais delas se deve exigir ou a pirosice pinga como suor a exalar em bailarino que não trocou de maillot, quase uma conspiração.
 
Até às pontas há muito trabalho de musculatura a ser feito e não só os gémeos trabalham, o arco do pé, há a anca, a estabilidade das costas, o equilíbrio de todo o corpo, a graciosidade, o assentar sem pousar, a efemeridade dos dedos, a leveza como plumas, a aura. A caneta e o papel, as palavras e o autor, um sopro de nada.
 
Pratico todos os dias, erro muito, danço e nesses rasgos de tempo sou completamente feliz.
 
 
 
 

segunda-feira, 27 de abril de 2015

Portas & Janelas - Esboço nº 17



 
O gato era a isca, eu o ingénuo que caiu na armadilha. Um engodo tão bem disfarçado, mas tão bem disfarçado que nem ninguém suspeitaría. Porque estava à vista de todos, era simples, natural que qualquer um se encantasse pelo que visse, um gato pachorrento a dormitar no parapeito de uma janela encantadora de cortininhas de renda à moda antiga, recordações da casa da avó, quem haveria de resistir, ninguém, muito menos eu deambulante de câmara em punho preparado para os instantâneos de um amador de fim-de-semana. Soubera eu e tinha mudado de passeio, de rua, fechado os olhos...
O gato era o íman e as minhas mãos esticaram-se para o tocar, mas mal me aproximei as cortinas deslizaram por dentro e metade do rosto de uma mulher apareceu. A outra metade, encoberta pelo rendilhado deixava o mistério de querer saber e aguçava a vontade de pedir para abrir as janelas, entrar, aflorar-lhe a face, passar-lhe os dedos nos lábios e silenciar o que parecia eminente num grito ou pedido de ajuda. Eu estava ali para a salvar.
Se eu adivinhasse que quem precisava de salvação era eu...
O gato deu um salto e desapareceu.
A mão da mulher espalmou-se no vidro. As linhas da vida eram tão nítidas como se nada nos separasse, perfeitamente visíveis, tocáveis, um ligeiro embaciado a desenhar uma auréola ao redor do contorno...  Encostei a minha mão à dela, do lado de fora, fechei os olhos, não sei quanto tempo estive assim. Quando os abri já não estava, bati nos vidros, insisti, procurei a porta e chamei, veio uma senhora idosa que não soube de quem eu falava.
Tirei uma fotografia para a minha colecção e quando a revelei o gato dormitava no parapeito da janela.
 
 
 
 

(in Portas & Janelas, Junho-2014)

Todas as fotografias da Colecção Portas & Janelas são da autoria de Eduardo Jorge Silva

domingo, 26 de abril de 2015

Doses


 
Ontem a Avó faría anos. E a Nina. Doses de vida. Doses de muita felicidade para mim, para quem com elas partilhou da sua bonomia, tranquilidade.
Dos olhos tão azuis da Avó que clarificavam todas as nuvens que escureciam os meus monstruosos problemas e me diziam tão mais que a boca pequenina no seu falar tão baixo que sempre teve oh 'pariga, isso daqui a nada não é nada, e magicamente deixava de ser, simples, como o pão com manteiga que me entregava para me entreter enquanto o crochet crescia nas suas mãos ou vestidos minúsculos muito complicados para as minhas bonecas se apresentavam prontos para o meu sorriso.
Do miado curtinho e o ronronar fortíssimo que a ágil Nina saudava quando eu entrava em casa e nos meus braços me fazía esquecer a desolação e cansaços do dia, encostando o nariz húmido e frio ao meu, à minha boca, as patas abraçadas ao pescoço como um cachecol, palavras minhas de humano, sons de carinho, calor ao peito, os olhos âmbar nos meus.
Ontem.
Qualquer dia que fosse. Doses que me entraram pela boca, pela alma e que hão-de viajar comigo um dia, uma bagagem que levo porque me é, também me faz quem sou.

sábado, 25 de abril de 2015

As cores são tão vermelhas



Deixo-me estar.
Esta bolha é minha e inviolável, a dos momentos de glória em que mais ninguém penetra por muito que tentem há uma resistência nos meus olhos mesmo fechados ou até abertos que tudo me lembra, tudo me chega em vagas mas a seu tempo, sincronizadamente, para que eu possa dispôr e saborear, voltar atrás e repetir mas nunca saltar pedaços glutona, cada pormenor é um gigante e neste segundo puxado ao peito tem a enormidade que passou despercebido naquele presente passado, agora acarinhado nestas minhas mãos aconchegadas a fingirem-se de pequenas para segurarem tanto. Abertas parecem nada, deixo-me estar.
As cores são tão vermelhas como o tingido novo, lábios de papoila, vozes de pássaro ruidosas e estridentes como correrias em ruas íngremes a descer, olhos abertos, momentos de glória, trago de novo palavras repetidas que me sabem a novidades e o mentolado do meu sussurrar espevita a grandeza do que aprendi, do que tão pouco sabía, da fome que ainda tenho.
Deixo-me estar.
Lá fora a chuva cai forte, lava os contornos da recordação daquele dia e é tudo tão nítido, tão limpo como se estivesse para acontecer.


sexta-feira, 24 de abril de 2015

Verde e fresco (nas palavras)




Resolvi mostrar por palavras de outros as imagens que tinha daquele dia. Não porque as minhas palavras não fossem o bastante para dizer, mas porque desta vez era importante que não fosse eu.
Há dias e há outros dias e neste dia e até amanhã, a memória tem a brilhante capacidade de nos pregar partidas por terem sido dias fantásticos e nessa sua magia, arranjamos pormenores para os encantar ainda mais envolvendo quem nos ouça num mundo maravilhoso de um só dia, aquele que nos aconteceu.
Leram as palavras que não eram minhas porque o dia não era o meu [e eu desejei que aquele fosse um dia que eu pudesse ter vivido ao mesmo tempo que o meu dia para também eu o poder escrever], porque os sorrisos que vi por aquelas imagens fizeram-me estar com todos naquele dia e a frescura de um passado como um campo verde, tão verde como agora sentido foi como se todos o estivéssemos a ver e cheirar, de mãos dadas, uma emoção sem marca de anos que contasse quem lá esteve ou quem nunca dele soubera.

quinta-feira, 23 de abril de 2015

Aderências



Acrescenta-se umas horas à noite e é dia, um tanto que sobra para o resto ou o que falta para a travessia de uma ponte entre úteis e descanso, o que ainda tem de ser caminhado é de mais custo, este pedacinho que parece tão próximo do fim e não há meio de se conseguir ultrapassar, um Cabo das Tormentas que dilui a esperança desperdiçando a energia em agachamentos de procura, recolha, junção ao todo.
Mais um esforço, um só gesto de boa-vontade e quase lá, um pulinho de nada.
Apanham-se os bocados, fragmentos caídos de cansaço (mais um cansaço) e colam-se à figura. Nem se pensa que no salto de nada as rachas desses pedaços irão abrir, separar até nova queda, é a adrenalina que conduz o processo e que disfarça o artesão apressado.
E ainda assim a maioria das vezes resiste-se. Aguenta-se o bastante para alcançar a ponte, caminhá-la e fazer tudo de novo outra vez.
As costuras amaciadas pelo tempo de cura aderem-se, diluem-se. Como a lembrança.
Estamos prontos, somos prontos.

quarta-feira, 22 de abril de 2015

Olhar com Vista sobre o Rio (23)



Noite, dia, noite, noite, vou riscando traços no caderno à medida das travessias vencidas ou ganhas. Não sei se  por ti é prémio atingido no pé tocado ao cais.
A vontade de me voltar e adentrar-te é quase sempre, resisto, entendo tão bem estes poisos camuflados de segurança, gentes de braço ao alto a dizerem adeus que nunca sabemos a quem e do outro lado alguém a acenar para outrém que não enxergam.
 
Tenho dias que estou certa de caminhar sobre a água.
Uma leveza no outro lado é o bastante para te atravessar, nada me afundará e tão pouco os cais balouçando distraídos no mareado do teu humor me farão suspeitar de acenos na fragilidade da saudade, da cegueira da dor, dos dias e noites e outra vez noites e traços riscados em cadernos contados de estórias sobre um Rio egoísta de belo.
 
Olho-te e no final de mais um risco, manso, mancho a noite no meu dedo azul.
Até amanhã meu amor.


(in Olhar com Vista sobre o Rio, 2012)

terça-feira, 21 de abril de 2015

O livro negro dos homens (dezassete)



Verdade, verdade, as pessoas detestam-me. Nem sequer têm a grande capacidade de me odiar, esse ódio de olhos e boca de frente a frente e dizerem-mo, só na escapadela ou na oportunidade dissimulada em que por mim perguntados no esclarecimento afirmam que entendi mal, não foi nada, sorriem desconfortáveis aflitos pela fuga possível. Mas se o acaso os conforta aí estão a aproveitá-lo para dar uma ferroada encobertos ou até distorcidos por uma história contada à sua maneira.
Sei que falam mal de mim quando não estou e quando passo ao largo.
Não me preocupa o falar, mas interrogo-me sobre a origem de tal interesse.
Verdade, verdade, é que sei que me detestam porque não aguentam a verdade. Mas se perguntam... Que eu devo dizê-la de outra forma, mais bonita, menos agreste, menos caustica - ouvi.
Que querem que eu faça? Que minta? Que me cale?
Que me torne um igual aos que me detestam?
 
 
(Lx., 05-09-2010)

segunda-feira, 20 de abril de 2015

Limpo



Nada mais desagradável do que questões à Segunda-feira. Perguntas. Aquele ponto amarrecado que entoa nas cordas vocais uma dobrazinha que difere da modalidade sonora da restante frase e demarca a mesma em duas partes distintas mesmo no final, inquietando. Estremecendo para quem escuta e não pretende ser perturbado com tropeços semelhantes à exibição de cabos de guarda-chuva agitados à frente do nariz.
Querem-me comestível. Simples. Plana e achatada.
Mesmo resguardada dentro da minha casca que me revele quando solicitada não mais do que o limite. Embora não haja medida de limite e doutras vezes haja, sendo que quando eu achar que há é porque não há e a inversa também serve.
E depois de ter servido nem raspas devem restar como vestígio de comilança. Sem perguntas, limpe-se a este guardanapo. De papel.
 
 

domingo, 19 de abril de 2015

Não é uma história de amor



Nem era madrugada nem a brisa de Verão era agradável. Não havia um odor perfumado no ar que inebriasse os sentidos no silêncio envolvente fechando o mundo ao quarto resguardado de qualquer mal que pudesse atingi-los.
Na realidade, o dia já havia nascido e uma criança gritava ao longe desesperadamente. Ouviam-se ruídos de tachos e panelas a caír, depois de novo o choro da criança que não se calava, um berro de uma mulher.
Ao lado dela o homem roncava. Mesmo afastado dela sentía-lhe o cheiro da pele a precisar de banho. Ou então eram os anos a passarem, o volume da barriga dele a altear os cobertores, notava o desenho recortado no contraluz a subir e a descer à medida da respiração forte, as mãos pousadas sobre o abdómen dilatado, a boca aberta, o cheiro.
Sentiu frio. A Primavera estava fria. Ou então era a falta das mãos dele a resguardá-la à volta do peito, da cintura, nos braços como cordas entrelaçadas para não a perder. Tanto tempo. Há tanto tempo. E era tudo silêncio nesse tempo, sem falarem, sem roncos, sem crianças a gritarem e sem barulhos dum mundo que não havia para além deles.
Levantou-se.
O homem segurou-lhe o braço e puxou-a devagar. Ela soltou-se.
Ele sentiu falta da mulher que costumava prender entre os seus braços para não a perder, costumavam ficar juntos sem dizer nada. Nunca lhe disse que era ela que o resguardava de todo o mal. Tornou-se feia com os anos, a boca fechada, as mãos ocupadas a afastá-lo sempre.
Levantou-se.

É tarde.
 
 

sábado, 18 de abril de 2015

Os [outros]dias

 

 
É nisto que a diferença dos dias se destaca, a representação dos papéis se torna memorável pelo desempenho realista que confunde o que assiste, quem é quem, ou quem é verdadeiro e quem faz de conta ou voltando à primeira quem representa ou quem vive quem é, tudo dias concluíndo, a diferença entre os mesmos e a respiração para dizer frases intuídas num papel interpretado como pele vestida ou nús, também a pele respirada simultaneamente nas frases faladas ou caladas ou tão mais próxima esta que qualquer som que a língua possa estalar engasgada no arrependimento do dizer. Porque a diferença dos dias é também essa, poder enganar e recuar, apetecer não dizer, achar justo e jorrar palavras de tudo, abrir a boca e fechar a boca. Nos outros dias a luz incide e não tolera a gaguez, espera-se um desempenho impecável mesmo nas reticências a propósito. O difícil é saber quem é quem, se nos dias se na diferença destes. Mas como tudo o segredo é a alma do negócio.

sexta-feira, 17 de abril de 2015

O mesmo céu




Viajar acompanhado implica conhecer o outro e partilharem dos mesmos interesses. Não tem lógica convidar-se alguém para ir a Roma quando o outro não tem qualquer motivação para ver pedras. Esta é uma forma simplista de ver a coisa, mas realista se o tempo de viagem é curto, o dinheiro limitado e o programa está à partida desenhado pelo gosto há muito ansiado de ver determinados locais que sempre se imaginaram como seríam ao vivo.
Isto para dizer como foi apreciar a conversa entre dois amigos que se gostam mas ficaram surdos e teimosos perante o destino selecionado por um deles.
Um deles, farto de aí ir e conhecedor de todas as ruas, insistia com o outro que bom mesmo era ir assistir ao vivo a um espectáculo de music hall, sala cheia, a ambiência (e fechava os olhos desenhando floreados com um dos braços), os comentários do próprio público, imperdível!.
O outro, de olhar modesto perante a sua escolha murmurava o Museu de História Nacional e suspirava para logo ficar sem ar nenhum perante o ar critico do companheiro (não queres estar fechado numa sala de teatro e queres fechar-te num Museu?!)
Eu sorria, ría e até uma lágrima se esmigalhou de tal cena de disputa de argumentação, que era boa de verbança e do gesto não lhe ficava atrás.
Mas quando a revelação sobre a escolha da companhia surgiu, perdi o pio e um dos dois também.
É que nisto de viajar junto, ou se amam as pedras ou se fica em casa. Haja o mesmo céu!

quinta-feira, 16 de abril de 2015

Como no começo



No começo era o verbo e essa história do fruto proibido mais não é do que estória de homens e de mulheres, coisa que sempre houve entre mulheres e homens ou não fossemos dois géneros distintos e precisados para na sua oposição nos entendermos. De onde veio e como surgiu não sei e nem me interessa mas podia rasgar várias ficções no papel que cada uma delas decerto teria o seu grau de fiabilidade, com mais ou menos culpa no cartório para o homem ou para a mulher e até quiçá, para ambos, que no resultado de uma relação a balança nunca cai pesadamente só para um dos lados, mas o aproveitamento da maçã à ingenuidade do outro e por causa da dentada andarmos todos de mãos à frente dos escritos envergonhados, é que me põe de nariz torcido porque tenho cá para mim que foram as palavras sussurradas que fizeram o estrago e nada de fruta.
Foram as palavras e o poder que elas levam, transformam, consomem e fazem pagar. Enfeitiçam. E aceitam. E por causa disso, aprendemos a dizê-las bê-há-bá com cuidado, não voltemos a ingerir envenenadamente o processo e deste a memória o reverta para a inocência do verbo puro como no começo.

quarta-feira, 15 de abril de 2015

Estranhos



 
Olhou-a nos olhos e disse:
- Quanto mais próximo mais fundo.
 
Rachara-se o céu e sem começo de manso, a água tombara logo violenta e fria pondo todos a correr para um longe difícil de encontrar pela surpresa do instante e pelo susto do barulho com que viera. Ela fugiu também, levada pelas pernas de outros ou pelo mesmo instinto ou pelo mesmo descompasso que lhe acelerou o coração ou desorientações no ruído súbito do trovão, chuva, gritos e desconhecidos a que se juntou. Estava no meio de estranhos, tão próximo deles que lhes sentía o calor da pele. Uma pele com cheiro húmido. E quente. Um toldo de gentes estranhas separadas por uma cortina de água, dois mundos, três mundos: a pele quentes dos estranhos, ela e o lado de fora feito de água.
Mesmo que quisesse saír encontrava-se no miolo daquele ovo de carne humana e não quería ser notada, já lhe chegava o quente do cheiro húmido deles, decerto o dela chegava aos nariz deles também.
O céu rachou-se de novo, mas em azul aliviado. Um e outro mais corajosos enfiaram a cabeça e furaram a cortina de água menos densa e partiram. Outros também. Sem licença da passagem empurraram-na pelos ombros e pelas costas, perdeu o equilíbrio, as mãos no chão defenderam a queda. Metade do corpo com cheiro de pele quente e húmido, outro tanto no mundo da cortina de água.
Os espelhos no chão, deformados pela chuva pingada olhavam-na nos olhos.
Viu uma estranha.

terça-feira, 14 de abril de 2015

Escalada para o abismo



Várias páginas desvirginadas numa mancha azul que nem sequer se fez gozo no acto, uso o branco das folhas para me acalmar das tempestades sem tempo de apreciar a bonança e ver o sol a romper para o seguimento nas costas já escritas, saltos, nova folha, nova idéia, uma escalada para um alto até ao abismo da queda sem lembrar o que devería ser a correnteza do pensamento.
 
Cada pedaço de verbo largado ficou agarrado. Ali. Era importante no estado em que o sangue fervía naquele momento, recorrer agora é requentar ou achar que possa fazer de conta que voltei a sentir de igual o não quero ou que não posso porque os instantes únicos mesmo os do fundo são exclusivos e pretende-los revisitar sería fingir que finjo um papel de escriba.
 
Vinco as páginas violadas. Faço-as degraus. A subida torna-se mais rápida. Poderei ganhar tempo e contar verdadeiramente como é aqui no fundo sem magoar mais palavra nenhuma.

segunda-feira, 13 de abril de 2015

Não é uma fábula




Por tanto gostar de estórias, fantasias e desvios mas tanto abominar a rotina, preciso hoje de lógica, precisão, objectividade.
No fundo, talvez seja o cansaço desta Primavera que se engana ou então sou a mesma de sempre, o descontrole das borboletas onde não as vejo, poupanças, dizer o que quero, digam ao que chegam, há o suficiente de metamorfose no romper do tempo para brincar com sentidos putativos ou parecenças que pareciam mesmo mas afinal nem tanto e acabam por ser nada mesmo (lá volto eu às histórias agora com agás de inspiração nas transformações das lagartas).
Pedir é com a boca e já agora, acrescentando se faz favor, que não custa mais e torna a demanda elegante e é fazê-lo declaradamente, sem rodeios e a direito.
É que uma zebra não é um cavalo pintado às riscas e muito menos um burro de pijama, mas todos dão coices.

domingo, 12 de abril de 2015

Instantâneo - Episódio seis



Sento-me [qualquer coisa me falta, olho ao redor e à distância dos olhos parece tudo certo e no entanto denoto a ausência de qualquer coisa que não percebo o quê] abro o caderno, folheio as últimas páginas e releio uma e outra frase ao acaso, o café ficou demasiado quente, terei de esperar para o beber, há todo um ritual a cumprir, primeiro o gole [mas não é o gole que falta] e só depois como um combustível tenho o arranque para as folhas brancas que rápido se enchem [descobri!Falta a caneta!]. Levanto-me e procuro a caneta de tinta permanente. Olho várias vezes e nada vejo. O gato amarelo que é mais laranja que amarelo alastrou-se por cima do caderno, puxo a ponta do que é minha propriedade mas ele resiste, abana e permanece gordo e com os olhos em fenda ignorando-me. Vem o gato branco e negro e coloca-se debaixo do candeeiro, enxoto-o, ele abre a boca e aninha-se, ignorando-me. A luz reduzida diminui-me o campo de visão para o chão, agachei-me, procuro aí a caneta, decerto rolou, [daqui vejo o olhar critico dos clássicos na estante, condenem-me, vá!] penso nas palavras que tenho debaixo da língua e que vou murmurando como um terço que se passa entre os dedos suavemente [preciso urgentemente de beber um golinho de café...]. Mando tudo à fava, enrolo o cabelo ao alto num ninho de cucos, puxo uma folha branca solta e de lápis em punho vazo o que me sufoca. Afago o gato amarelo que é mais laranja que amarelo. Cintilam-lhe o verde dos olhos e desliza para o meu colo [a caneta debaixo dele?]. Levo a caneca de café aos lábios. Frio, horrível como todos os instantâneos sabem ser.

sábado, 11 de abril de 2015

Fio



Nem mesmo os gatos, o cão, o homem se fazem vivos neste instante, o relógio lembra-me a falência no tique-taque rompendo o silêncio que acarto aos ombros, não é cansaço de corpo, é luz de dia que chega mas que não ganha à lâmpada que hesito em desligar. Talvez me desligue e abra mão das linhas em que me seguro, uma só, um fio preso entre dois dedos para me manter agarrada ao ritmo das horas idas - quantas? - esqueci-me de contar, tique-taque diz o coração devagar, tranquilamente enquanto o dia berra a luz e a caneta despeja mais linhas onde não as há, invisibilidades como a claridade que tinge a noite esquecida - quantas? - e o relógio se abafa em palavras arranhadas entre dois dedos de conversa. Liberto-me.

sexta-feira, 10 de abril de 2015

O bater do coração (vinte e cinco)



Como qualquer criança inventei as minhas estórias e pu-las na boca das minhas bonecas, fiz chazinhos e comidinhas e servi-os na companhia de imaginários convivas que permaneceram visita do meu quarto por longos anos, muito para além da vida das bonecas, cresceram comigo, perderam-se no mundo e de quando em vez regressavam à minha memória.
 
Não sei quem sería eu hoje se o verbo não me tivesse achado. Ou ao contrário, porque as palavras embora sempre tivessem estado para mim, ali, presentes em todo o instante, eu só me encarava a sério na dança. E o uso da escrita, dos eus de mim que já não eram mais meus, mais não era do que uma espécie de cegueira ao que se passava, esse acto leviano e quase diário da escrevinhação que eu tomava como natural, encolhía os ombros e atirava para o lado, dançava.
 
Um dia acabou e ficaram as bonecas. As folhas soltas mas também os cadernos e ainda os de estrear. Regressaram as conversas de quarto de criança, já maduras, muito crescidos (quase) todos eles, trouxeram outros e outras, mas nem todos deixei entrar na minha vida. Aos poucos entendi os pés a aquietarem-se, as mãos num turbilhão, o ritmo do coração disparado como no palco.
 
Continuo sem saber a resposta à minha própria pergunta. Talvez não deva saber, basta o bater do coração para a fazer esquecer.

quinta-feira, 9 de abril de 2015

Branco



Branco como a neve, quase a cegar, depois os olhos habituaram-se tal como se adaptam à escuridão e aos poucos tudo se molda, os contornos, o miolo, tudo, era tão branco e puro e leve como penas.
Tecidos brancos e suaves, gaze, tule, seda, alguns brilhantes, outros transparentes, um e outro tinham o toque da passagem e faziam o pequeno ruído das pregas e folhos a ajeitarem-se entre eles como apertados entre mãos que não os deixam pisar e cuidam que se rocem entre saias como um beijo discreto que já passou.
A cor da pele corava mais o branco. Era mais luz. Eram mais elas. Muitas. E os olhos, primeiro quase cegos e tão brancos quanto o nívea de inicio, fizeram-se água na multidão de tantas vestidas de branco como cisnes desprevenidos.
Ainda as vejo nos meus sonhos.


quarta-feira, 8 de abril de 2015

Descosturar




Quando a evidência fura os tímpanos. Os olhos. Quando as palavras se tornam um objecto de arremesso, letal, ou nem tanto, tão mais perfurante numa dor contínua em que o sofrimento se pretende que massacre, estrague a carne e não faça esquecer por um momento que a alma só sente se a esta acompanhar a ferida do corpo. Quando as palavras contrariam o que se vê e a realidade é clara porque não há sombras a mistificar nem enganos de sons que tivessem perturbado vocalizos para que o receptor, perturbado, encriptasse códigos onde mensagens - a mensagem - cristalinamente se fluidificassem em trambolhos aglomerados de verbo, o que é isso, nada disso, faz-se o pino. Todavia, os pés não entenderão melhor o que se escuta ou a visão por terra não terá alcance suficiente para a perspectiva das palavras perante o ângulo das evidências. E no entanto não são mentiras, são desvios, manipulações, são costuras rasgadas entre a palavra e o seu uso, entre o verbo e para o que serve, entre matar e afirmar que se ressuscita.
 
 

terça-feira, 7 de abril de 2015

Três tempos de um só homem



Depois da notícia. Depois dos ouvidos não entenderem o zumbido que selam as palavras e num rasgo as pupilas dilatarem-se para na fracção seguinte encolheram à claridade que o cérebro engole e pontapeia o corpo todo, hirto, alerta, frio e logo gélido e logo suado, escaldado, um torpor que isola toda a dor, força, mil forças, pedra, monumento, isolamento.
 
Depois consigo só. O reviver, remoer, regurgitar e vomitar entranhas que se esconderam em coração, finalmente corações, perguntar porquê, desejar chorar e chorar e falar para dentro e ouvir respostas profundas que nada dizem porque nada trazem aos quês dos porquês nem abafam soluços que se desejam mas não saiem e só amargam a interrogação porque não arrependem, porque tudo o que fez foi certo, justo, medido, cumprido.
 
Depois da notícia. Falamos.

segunda-feira, 6 de abril de 2015

Se eu pudesse


 
Apetece-me dizer mas não me apetece escrever porque tudo me martiriza no verbo a chapada de luz que me devolve ao ler na sua verdade tão crua, que a partir deste instante, bastar-me-á ler as primeiras palavras para todo o resto do sempre se tornar memorável este dia  como o dia em que me apeteceu apagá-lo. O dia.
 
Porque a vida tem destes dias, não um só, que se preferem não os ter, embora se queiram todos e mais um sempre, em que metaforicamente aspira-se a uma amnésia saltando os de desgosto, os de não escrever, mesmo que tenha de se dizer para ter a certeza que existiram e fazê-los crer aos outros e de seguida, muito rápido, de olhos fechados, racha-se a lembrança e o ser, finge-se a existência e nem somos nós, foi a outro que aconteceu. O dia.
 
Mas como nunca conseguirei apagar o dia e destas primeiras palavras já a memória não se livra, sempre as poderei voltar a escrever,  tantas vezes quantas a força da mão até cansada se aquietar para no gozo da página e no convencimento do meu poder se resolverem no simples rasgar das folhas.


domingo, 5 de abril de 2015

Estás aí?



Depois não te queixes, eu avisei. Esses longos momentos de contemplação ao vazio, nada adiante, um agitar de mãos rápido e nem o pestanejar te dás ao trabalho, é típico, é sinal que não estás cá, estás mas não estás, já deves ter ido há muito pois nem o som já ouves quando digo eu bem te disse, eu avisei que ía acontecer, onde estás agora? Eu estalo os dedos e nenhum reflexo, sopro-te na ponta do nariz, mil caretas, já devías ter mostrado a dentuça no desmontar das gargalhadas e na legenda disparada do pára lá com isso idiota que pareces um palhaço mas nada, um fiozinho de saliva que demonstre que estás a disfarçar desta vez, onde estás? Já foste e ainda não voltaste, quando regressares vens tagarela, a falar pelos cotovelos e por horas, sempre o mesmo assunto, hás-de perseguir-me casa fora até ao armário se preciso for e bater na porta se não te deixar entrar e nem assim te calarás, sei nessa altura que já não és tu, ou se ainda és virás com outro ou outra, e até já aconteceu voltares com mais de dois. E os tiques. As afectações. A mudança do tom de voz, lembro-me de uma vez teres regressado a coxear, outras coisas que nem vou dizer porque faço por não lembrar de tão irritantes, que ódio! Depois não te queixes, eu avisei. Quando vais começar a escrever? Talvez meta férias de mim.
 
 

sábado, 4 de abril de 2015

O céu da boca (Palavras Reencontradas) 8



[...]

A fazê-lo na quantidade que o faço outra coisa não faria, diziam e eu negava.
É certo que o faço em grandes doses mas não serei diferente dos demais e como os outros acontece-me tudo ao que os outros sucede, menos vontade, só vontade, insónias, desespero e brancas totais.
E também aquela coisa que não deixa sossegar sem ser verdadeiramente um incómodo porque afinal continua a ser fruto original, mas a interrogação volta não volta paira, balança, interrompe o fluxo, é a repetição da escrita.
Será que à força de se marcar um estilo, ter uma assinatura própria quanto ao verbo, não nos repetimos nas palavras e nestas o conforto de uma bengala que ampara a frase que soa tão perfeita para desenhar o que se sente, o rosto físico do personagem, a salvação dos pontos finais formatando um modelo interior que nos caiba e agrada. Que tem de se gostar primeiro para crer que outros irão apreciar.
Palavras reencontradas ou palavras recicladas no sentido de alma nova.
Questiono-me.
[...]


(in O céu da boca (Palavras Reencontradas), Abril 2014)

sexta-feira, 3 de abril de 2015

Ganhaste!



Por acaso não serías tu, não?
A bater-me à porta dos sonhos fazendo-te dessa maneira ouvir especial, como sempre especial é a tua chegada, mas tal não sería preciso, que sempre sou eu quem te chama, até quando o tempo se esquece de ti no tempo e desesperada te faço já morto sem alto e sem cruz e te busco de joelhos na terra, unhas encardidas na escavação descabelada do teu rosto de gargalhadas no susto achar, típico retrato teu, acaso serías tu que esta noite senti o vento na cara, o bojo quente do cavalo, já suado, já corrido, a disputa de quem chega primeiro no ganhar da coisa mais doida, talvez o ânimo do teu sorrir ou a tua voz a chamar-me rapariga oh rapariga, partidas para que eu perca o rumo e as forças na rédea, assim acordo, assim perco-te... E lá disparas tu até te deixar de ver. De novo.

quinta-feira, 2 de abril de 2015

Lá e aqui



Ainda não havia muito calor àquela hora da manhã, os pássaros, barulhentos, entretinham-se na árvore fronteiriça na lida diária e ela gostava de observar os ramos agitados pelo pousar de lá para cá pelo frenético do movimento [ Abri o caderno, os pés ainda mornos do saír da cama gostam do sentir da madeira, daqui a pouco esquecidos desse momento hão-de arrefecer, só a mão encostada à caneta e a ela, talvez uns passos atrás dela observando-a, sintamos o calor de Verão, aqui neste cómodo puxo o xaile ao ombro esquerdo].
As duas mãos abriram as janelas trazendo o cálido do ar da rua para dentro do quarto, o som dos pássaros e vozes difusas de pessoas que também tinham as janelas abertas, uma brisa soprou-lhe os cabelos para o rosto, enfunou-lhe a camisa de dormir de cambraia, fez levantar as cortinas como dois fantasmas que se alongaram pelo cómodo até jazerem moles de novo junto aos vidros [A luz do candeeiro fabrica sombras nos móveis, imobilidades que olho e nada vejo mas mal me concentro nas letras adivinho ataques ao meu pescoço ou o estalido traidor denuncia a aproximação para o meu sobressalto].
Apoiou-se nos cotovelos, o parapeito de mármore agradavelmente frio e macio [Há vezes que não sei o que escorrega melhor, se a tinta da caneta para o papel, se as ideias para a escrita]. Deixou escorregar o olhar para longe, para além da árvore, do chilrear da passarada, das vozes quase sumidas de outros quartos que conseguia imaginar mas não quería [Um desses quartos poderia ser este, aqui mas não agora, lá um tempo de calor, este só no tempo em que o fabrico no verbo].
E quando os olhos lhe pareciam vagos, perdidos por não acharem ponto de interesse, fechou as janelas, correu as cortinas e sentou-se a uma mesa, abrindo um caderno.

quarta-feira, 1 de abril de 2015

Estações, provérbios e mentiras



Que fazer aos dizeres dos antigos sobre o tempo, aos provérbios sobre os meses, quando tudo é inesperado e as estações viajam fora do tempo marcado a que nos habituaram e aprendemos, Março, Marçagão, manhãs de Inverno, tardes de Verão, que se apresentou velhacamente ventoso e frio ao longo de todo o dia e nem mesmo a animação de uma previsão na entrada de um Abril com sabor a pino de Verão parece consolar o desejo de calor nos braços - que ninguém se contenta com o que tem e muito menos com o que aí vem - condena-se, abanando a cabeça vagarosamente, lembrando o aprendizado, Abril águas mil.
Que fazer ao Borda d'Água, carinhosamente cortado na separação das páginas para a adivinha dos conselhos sobre o arado, plantio e colheita, signos, marés, luas ou da repetição das proverbiais achanças medidas pela observadura dos tempos pelo tempo dos homens sábios.
Mantenho as sandálias ao lado das botas de cano alto e este par ímpar faz-me lembrar que dantes o 1º Abril era o dia das mentiras. Parece que já ninguém liga a isso.