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sexta-feira, 30 de novembro de 2007

92m: Viagem ao centro do universo


Aço nas espáduas, nos trapézios pendurar o tremor da queda, a caixa de ressonância a poluír nos décibeis inaudíveis o coração afundado no cravar até ao trespasse. Cheiram-se abraços, pescoços enroscados na transpiração nervosa do 1º minuto. Olhos: disparos, flashes, mosaicos projectados do caleidoscópio da cor, forma, abertura e fecho, tamanho. No tamanho das mãos esconde-se a mão da situação, agarra-se o pulso, sente-se o latejar da veia tresloucada, cruzam-se vontades no zoom detalhista dos gestos, grão de pele, toque, aperto, aconchego aos moldes naturalistas que o corpo provoca. Dilue-se o cenário, afugenta-se outros ruídos, cava-se na voz terrenos sentidos, cevadas que amadurecem rápidas como fumos sugados ao alto nos minutos dilatados que sobram. Nada sobeja, tudo se decalca, confirma-se a necessidade do movimento na precisão da palma aberta sobre áreas arrepiadas de confessos desejos. Gosta-se, goza-se, tira-se prazeirosamente hálitos bebidos na boca apertada, desatada na correría de dizer o verbo. Tempo: 90m. Corrige-se o ritmo cardíaco, baixa o trem de aterragem. Os dois passageiros acenam, até à próxima.

quinta-feira, 29 de novembro de 2007

Podemos?



O que eu quería mesmo era que tu chegasses a fazer de conta que nem me conheces, tentasses a conversa comigo entre desculpe, desculpe, e eu a perdoar-te num sorriso traiçoeiro que me escapou da testa franzida, um café para quebrar o gelo, senta, podes sentar e até um bocadinho mais perto, sentirmos a que cheiramos os dois, como soa o canto da sala depois de te ouvir gargalhar, brincar com os dedos a andar por cima do tampo da mesa até descobrir a tua mão, na frase reticente o toque ao de leve no braço, pende para mim, olho-te nos olhos, de que cor são os teus olhos, não sei porque mudaram agora para o tom feliz e latejante da veia que se tenta prender na tua do coração, apontar a boca à tua e a tua respirar no aroma do querer, podemos beijarmo-nos se quisermos, podemos abraçarmo-nos forte se quisermos, podemos ficar juntos se nos quisermos.

Podemos fazer isto tudo, não podemos?

Fingir que nunca nos encontrámos e que aquele instante já era nosso porque o desejámos muito.

quarta-feira, 28 de novembro de 2007

Zé Grande - História contada em dois pedaços

(continuação)

Agarrou-se ao seu ferimento, os dois metros enrolados como um bicho-de-conta, a garganta aberta para o grito que não saía. Rolou de um lado para o outro e por fim, com nitidez, o céu, já muito azul, uma bola amarela lá no alto. Ficou assim, as lágrimas a salgarem a terra, misturadas com sangue que se empapava nos torrões secos. Viu um rosto debruçado sobre o seu. Uma aura azul celeste emoldurava umas faces brancas e uma boca vermelha repetía senhor, senhor, senhor... Quando acordou estava suado nos panos que lhe servíam de cama. O pai passara perto na carroça do Manel da Rabina e estranhara o silêncio da serra. Deu com ele de olhos fixos no céu e comentou com o companheiro que era o diabo do Padre que havía voltado para o reclamar. Levaram-no de arrasto até à carroça e no meio de bostas para estrume e uma cesta de uva morangueira fizeram o transporte até casa. A mãe coseu-lhe o pé, um ponto cruzado como fazía nos buchos e nas mulheres que paríam. Revezaram-se todos até ele dar acordo de si. Ficou por três dias deitado mas só falava do trabalho inacabado, guardando para si o rosto celeste. Estava certo que era a Senhora da Candosa que o havía visitado. Mas nada dizía. Era véspera do feriado e à noite havía baile. Tudo se abalou à serra, rodearam o coreto para admirar os metais polidos e desafinados, espreitaram a quermesse, conversaram com o Padre. Zé Grande, manco mas feliz, arrastava o seu tamanho aos ressaltos. Deram-lhe uma cadeira perto da roda do baile para que não perdesse o espectáculo. O povo levantava os braços e os rolos de poeirada não incomodavam ninguém que os giros e as voltas eram a coisa mais apetecida desde o ano que passara e de infortúnio já bastava a míngua da vida e o que acontecera a Zé Grande. Foi no meio do folguedo que ele de novo a avistou. Soergueu-se mas ao impulso da sua vontade a dor no pé segurou-o. E o Padre também, que lhe deitou a mão à camisa branca de mangas muito curtas para aquele tamanho todo. - Onde pensas tu que vais? Compostura, meu rapaz! Que aquela menina é a filha do Governador e está aqui para se curar dos pulmões! Que nem te passe pela cabeça olhar para ela! Tu vê lá o que arranjas à tua familia e a nós todos! Que o Sr.Governador Civil tem sido muito amigo das gentes da Candosa! Que o Senhor o proteja por muitos e bons anos! - e elevava o indicador à testa e ao céu. Mas a menina doente dos pulmões não o estava dos olhos e era impossível não mirar obssessivamente aquele homem tão grande e tão pequeno como o vira enrolado no chão. Recordou o seu grito dias antes, ao vê-lo enorme a derrubar mato e a árvore onde acabara de fazer uma promessa, como lera num romance de amor às escondidas. E como depois sentira um medo a tomar-lhe o corpo quando vira tanto sangue e o homem parecía ter morrido. Fugira a bom correr, as faces afoguearam-se-lhe e a enfermeira que lhe perdera a trela serra abaixo ficara encantada com aquele rubor. E o seu pai, o Sr. Governador Civil também ficaría. Zé Grande continuava de pé. Olhavam um para o outro. Tudo à volta tinha desaparecido. Juntaram as mãos e dançaram. Os outros afastaram-se mas os acordes eram um veneno que lhes dava alegria e depressa esqueceram o par. Bailaram muito e Zé Grande sentía o pé a crescer, uma baba quente a arder pela perna acima. Levou-a até ao assento e murmurou que já voltaría. O barulho era muito, os risos ecoavam a serra e ela não conseguía ouvir as palavras dele. Zé Grande disparou serra baixo, uma correría feita a uma perna que tinha de poupar o pé aleijado. Já nem lhe doía. Só vía o rosto da menina, o manto azul celeste da Senhora da Candosa a enfeitá-la. Atirou com a porta de casa para trás. Ninguém. Descalçou o sapato e verteu o sangue que se havía acomodado numa pasta de terra. Não reconhceu o pé, nem tão pouco os pontos cruzados dados sabiamente pela mãe. Procurou a caixa de costura e enfiou a linha grossa e negra dos buchos na maior agulha que encontrou. Bebeu do medronho do pai, goladas fartas que lhe escorreram até ao peito e afastaram o cheiro de suor. Cerrou os dentes e enterrou a agulha com força, unindo as duas metades da carne, espremidas entre sangue e uns veios brancos que teimosamente queríam fugir ao ponto. Acabou por vazar a aguardente. Enrolou um pano ao pé e com força ajeitou o trambolho para dentro do sapato. Bateu a porta e correu serra acima. Não há árvore que o não tema nem lenhador que não lhe louve a coragem. O Zé Grande salvou a serra da Candosa, que no dia feriado apareceu um fogo que não passou de fogaréu e todos o combateram sem problemas. Graças à limpeza que o Zé Grande fizera dias antes. Todos lutaram contra o lume menos o Zé Grande que ficou retido em casa, doente e a delirar. Agora é coxo. Até dá piedade. É que naquela noite na véspera da procissão, e do fogo e do feriado, quando o Zé Grande atingiu de novo a serra, já a festa havía terminado. E a menina havía sido levada pelo Sr. Governador Civil. Para todo o sempre.


(in Verdadeiras Histórias, C.G. Janeiro/2007)

terça-feira, 27 de novembro de 2007

Zé Grande - História contada em dois pedaços

Fechou os olhos e deixou-se ir, abraçada àquele torso vestido de negro e saias como ela. Lembrou-se que talvez fosse uma dádiva, um sinal lá do alto, a bendita, a escolhida, uma outra Maria. Abriu os olhos e viu a figura do Padre novo a afastar-se do seu corpo.
No dia seguinte, o velho Pároco Ramiro voltou, restabelecido das maleitas da psoríase, curado pela visita ao Vaticano.
O novo fora-se. Para todo o sempre.
Nasceu gordo como um bácoro.
A mãe esvaiu-se alagada nos sangues, no esforço de o parir e de implorar ao Criador que a mantivesse pura e casta. A parteira já com cinco para criar, condoeu-se da orfandade daquele bastardo e como boa cristã deu-lhe o peito ainfa farto do seu mais novo.
Ele deitou as mãos cerradas ao monte de carne e agarrou-se à vida.
Nada lhe faltara: Comida, parceiros de brincadeira, trabalho, pancada no lombo, um tecto, um pai e uma mãe. Nunca se inquietara a procurar a origem das suas diferenças: o nariz fino contrastava com o amontoado arrebitado do dos seus irmãos, o cabelo liso e negro destacava-se entre as cabeças cor de palha do resto da familia, mas o que mais se distinguía era a sua desmesurada corpulência e altura no meio dos corpos largos e atarracados do resto da prole.
Ficara Zé, de seu registo civil José Machado, por todos conhecido como Zé Grande.
E como os tempos eram duros, a lavoura o sustento e oito a comer, foi-lhe dado em destino o jus ao nome que ganhara: não havía árvore que o não temesse, lenhador que o ignorasse como valente a manejar a ferramenta e os seus dois metros de altura deram-lhe a lenda de ter sido gerado pela seiva de um eucalipto.
Gostava dessa história que ouvía de si.
Sempre tinha gostado de histórias, especialmente as que sua mãe contava. Também não conhecía outras, que a escola não o tinha merecido. Somava coisas por associação, por abate de troncos, por sobras de pinheiros. E bastava.
Não quería saber de quem o tinha deitado ao mundo, nem tão pouco como morrera: essa era uma história que já lhe havíam soprado mas que nenhum interesse lhe despertava. A sua familia eram os Machado e a sua vida cortar árvores.
Ía o Agosto perto do feriado e o calor apertava cada vez mais.
Aqui e ali chegavam noticias e fumo escuro de labaredas que comíam o verde. Bombeiros, só o nome lhe conhecíam que ali ninguém chegava nem quería saber. Era cada um por si a tratar das suas coisas e com a mão esticada ao Senhor Prior ao Domingo cobrindo o rebanho, tudo se salvaría.
Zé Grande, à soleira da porta falava para dentro, para a mesa onde já todos se havíam acomodado à ceia e onde ele não cabía. Tería que esperar que dois dos seus irmãos terminassem e lhe dessem a vez.
- Pai, com as festas tão perto e o lume a vir por aí, ninguém vai ligar!
O Pai mastigava e não respondía.
- Pai, tou cá com umas ideias...
O pai continuava a mastigar, olhou-o e arrotou.
- Pai, tou capaz amanhã de roçar aquele mato lá perto da Candosa...
O pai olhava o tecto ao vazar o copo de morangueiro.
- Pai, é que a Senhora vai passar pela Candosa e tenho cá um destes medos que se ateie ao manto... e depois vai tudo pró baile, ninguém quer saber senão da bailação!
- Vai lá Zé. Mas cuida que do nosso pedaço não fique restolho, que s'o demo s'apega! Nem sei! Nem sei rapaz! - E o pai tirou o boné com a mão direita e com essa mesma mão rapou na careca orlada de um tufo ruço.
Ergueu-se, espreguiçou-se e deitou abaixo os suspensórios. Recolheu-se aos fundos da casa.
Zé Grande, animado pelo consentimento do pai, saltou como uma mola e de empurrão enxotou dois dos manos, tomando o assento ainda quente do banco corrido.
O lugar do pai ficara vago.
Comeu numa pressa e pediu à mãe que lhe fizesse a cama. Quería dormir depressa para rápido chegar à serra e limpar o caminho por onde aquele andor coberto pelo azul celeste do manto da Senhora da Candosa havería de passar.
A mãe que o conhecía como um dos seus, pois que lhe havía dado do seu leite, esticou uma coberta no chão, e depois uma outra, que mesmo em Agosto, ele há noites de sereno.
Sorría para o seu Zé Grande. Entendía o que lhe ía na alma. E até já magicava numa história inventada sobre a Senhora a aparecer-lhe quando ele andasse no mato ruim. Zé Grande deitou-se nos panos: Não havía tamanho nem espaço de cama que comportasse um homem com dois metros.
Era escuro quando pegou no machado e na foice e se abalou serra acima.
Os olhos dominavam o breu e o barulho dos ralos indicava as bermas farfalhudas de fetos e amoras silvestres. Subía, subía sempre, uma e outra vez pisando o visco que soava a sapo chamando a fêmea. Quando atingiu o cume e a vista alcançou o coreto branco, as estrelas começaram a apagar-se e um fio amarelo riscou nos cabeços dos outros montes.
Tirou a camisa e atou-a à cintura.
Puxou atrás o braço direito armado da foice amolada e num silvo decepou o matagal seco e agreste.
Um pássaro largou como um eco as asas batidas em fuga.
E durante um tempo nenhum ruído se ouvía para além do aço implacável rasgando o ar até ao restolho teimoso que ficara de outros verões. Continuou sem cansaço algum até se deparar com um eucalipto magriço e esticado, bem no meio do rumo da procissão.
Primeiro atónito - que nunca vira ali aquela árvore - e depois desafiado na sua altura - um pouco acima do seu tamanho - largou a foice e de duas mãos pegou no machado, decidido a deitar abaixo aquele poste que se lhe metera ao caminho.
Mas quando dirigía o gume afiado ao tronco esbranquiçado do eucalipto, ouviu um grito e falhou o alvo.
Malfadada machadinha que lhe fugiu ao pé esquerdo e enterrou a lâmina no peito protegido pelo cabedal ensebado da bota. Mas fina do uso, escachou-se numa fenda e deixou o pé desarmado numa ferida esbeiçada.
Caiu por terra e naquele momento nada mais havía que o seu pé, todo ele era um pé, tudo na serra era a dor que sentía.
.
(continua)

segunda-feira, 26 de novembro de 2007

Lutas

Degladiaram-se na bravura das linguas e na agilidade dos nós dos dedos, nas gravatas corrediças das pernas e no encaixe dos braços. Só os olhos cerrados calcavam a sonoridade dos corações em marcha e quando a máquina aquecida vibrou conectaram-se, desligando do mundo-terra o tubo condutor da realidade. Auto-suficiência. Regeneração dos sentidos. Apologia do ovo. Artesãos de sedas proibidas. Há no crime do acto o supremo desejo do motor em combustão. Valorosos lutadores sem palavras descerram o olhar, abrandam no espólio deixando a certeza da desforra.

domingo, 25 de novembro de 2007

sábado, 24 de novembro de 2007

Obrigado

Assim que a olhei uma sensação de bonomia e paz preencheram-me como um liquido a encher uma jarra para receber flores. Não foi só do tom afogueado à volta do astro, uma combustão lenta de quem sabe o poder que detém quando admirado. Talvez dos abetos e do recorte das chaminés que acordam para o pequeno-almoço de olhos esfregados... ou será da serena aflição do retorno a casa, da pressa do ninho morno ao alcance da janela, a vertigem do mar a picar no nariz?
Vai dormir o dia ou acorda a noite?
Porque fui eu agraciada com tanta beleza num presente enquadrado numa fotografia que disparou apenas "estou a pensar em ti"?
Obrigado. Obrigado Vida.

(Foto de A.Pastor, debruçado na janela de uma qualquer casa da Parede)

sexta-feira, 23 de novembro de 2007

«Amo-te»





Crucificaste-me a sentir,

levemente acidulada no peso das aspas que apertas na palavra.

A cada prego marcado anseio-me ao som que quero ouvir.

Apontas - peço - bates - quero - afundas - sossego.

Cravas-me o aguardo.

Avessas-me na busca,

levemente nauseada na quebra das aspas que sufocas na palavra.

Suspendes - caio - tocas - sorrio - agarras - digo.

Hesitas-me o olhar.

A cada aspa caída deslizo-me ao tom de me quereres amar.

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(in Toda a Poesia Despida, C.G. Outubro/2007)

terça-feira, 20 de novembro de 2007

A varanda-História contada em duas metades



(continuação)


Voltaram a pedir-lhe que colocasse o capacete de protecção que já, já íam começar os trabalhos de deitar "aquilo" abaixo. Uma paralisia atacava-lhe os movimentos na vontade de ver partir a história: é que aquela não era só uma história sua, era partilha de várias pessoas, de um tempo de história maior naquela rua, naquela cidade.
Ao primeiro embate da bola de ferro, nuvens de pó apagaram a visão da casa e um estrondo semelhante à trovoada seguido de outros de estilhaços de vidro fez temer quem assistía à demolição, pensando num castigo dos deuses de Olimpo. Quando a caliça assentou num véu branco e fino ele constatou feliz que a varanda permanecía intacta, só uma das colunas impedía que trespassasse a barbárie para o interior da casa e a devastasse dos seus segredos, da sua vida de vidas contida.
Sorriu sarcástico e murmurou "bem feito!".
Sentía-se de alguma forma vingado. Viu-se naquela varanda, do alto da sua adolescência, um bigode mal despontado, cabelo comprido em desalinho, um medalhão ao peito que diz "façam amor, não a guerra" que o pai já lhe recomendou que aquilo é coisa de rapariga, o punho erguido para o céu de Primavera, empoleirado no ferro forjado, a outra mão presa ao varandim descascado por ele em lascas e farpas, e os avós de dentro de casa a chamarem por ele, que isto de revoluções é coisa perigosa e tanta liberdade só vai dar mau resultado.
Gosta de declamar para os avós, mostrando o trabalho que faz com os seus companheiros, uma troupe de saltimbancos pelo País fora a mostrar o que é a alfabetização e a cultura. O avô abana a cabeça e suspira que isto é coisa de comunista... a avó gosta de cravos, sempre gostou e faz grandes jarras, manchando o salão de vermelho.
Sacudiu o pó das mangas do casaco, bateu com os pés, os olhos a arder pela saudade do avô que já se fora: lembra-o a fatiar grandes talhadas de melancia sangrenta, a dar-lhe o coração da melancia, a limpar-lhe o queixo miúdo com um lenço muito perfumado a lavanda que sempre tinha no bolso.
Atirou o olhar semi-cerrado à varanda e viu, nitida, a colcha de cetim negro a esvoaçar num dia de Abril para ver passar o avô uma última vez.
Limpou os olhos, a bola de ferro arremessada grotesca, mais uma vez à casa: esventrou-se o seu interior e água em repuxo começou a esguichar, afastando em correría os representantes da Junta e da Câmara.
Agora a avó regava com esmero os vasos de sardinheiras que por todo o ano floríam... vá-se lá saber como ela conseguía. Viu-a a acenar e a dizer-lhe para ir com cuidado, já ele homem, ela muito velha. Porém os olhos azuis continuavam a ter aquele fulgor de jovem, que ela tinha deixado em herança ao filho seu pai, mas não a ele.
Pensou que tinha pena.
Pensou que cada vez que a bola de ferro desmanchava aquela pirâmide de história, um bocado do seu coração se misturava com os torrões e a caliça e a água enferrujada dos canos.
Tirou o capacete e ignorou os gritos de aviso, dirigindo-se decidido à casa. Olhou a varanda, a pingar um choro que escorría entre as grades de ferro forjado, o mármore agora coberto de pó branco perdera a cor rosácea, nenhum vidro nas portadas das janelas, só um assobio desolador de vento que sopra por dentro da alma da casa a apossar-se.
Abriu a palma como a receber alguma coisa.
Um pau do varandim despencou e ele ágil tomou-o na mão.
Por entre os pedregulhos e destroços que minavam a rua, afastou-se, levando na biqueira dos sapatos rolos de pó que lhe embranqueceram as pernas.


(in Homens, Mulheres e Outras Coisas do Coração, C.G.-13/03/2006)

segunda-feira, 19 de novembro de 2007

A Varanda-História contada em duas metades



Deu dois largos passos atrás. Ergueu o queixo e apontou a vista ao edificio esboroado pelo tempo, um rosa salmão desbotado nas manchas de humidade bolorenta corroendo a fachada de meio até ao telhado, florões pintados com ar de fresco perdido encolhidos entre duas colunas dóricas enquadravam, apercebía-se, uma varanda de ferro forjado que havía sido majestosa e que muitos cortejos vira passar.
Os prédios contíguos havíam sido tapados com redes verdes grossas e protegidos por escoras, não fosse o impacto da gigante bola de ferro fazer perecer também os seus vizinhos. A rua fechada, sirenes, luzes rotativas, os Bombeiros, individualidades da Junta de Freguesia, um representante da Câmara, a Protecção Civil, a empresa de demolição e um guindaste e muita gente. Muita gente. Os que vivíam naquela rua e a idade permitia ainda os passos andados e os filhos dos filhos daqueles que outrora havíam tido lojas de comércio e havíam passado de geração em geração e os outros, aqueles que só vêm para apreciar o espectáculo e contar depois, a sua versão romanceada.
Trouxeram-lhe um capacete de protecção e recomendaram que se afastasse.
Ele só olhava. Sentía no peito uma pressão que o atormentava e ao mesmo tempo uma alegria que lhe parecía explodir quando olhava a varanda imponente e se vía ladeado pelos avós, num ano do meio de 60. O avô trajava de negro, camisa branca e gravata riscada, emblema da sociedade recreativa na lapela, chapéu de feltro; a avó estava muito elegante com os seus olhos azuis de safira, ataviada num vestido às bolinhas e até tinha posto o anel de pérola do seu noivado, reservado para ocasiões especiais. Ele estava eufórico, os calções de veludo azul marinho davam-lhe frio nos joelhos mas pouco importava, pois aquela bandeirinha de Portugal agitada freneticamente na sua mão dava-lhe todo o calor que precisava. Já sabía o que tinha que fazer: quando o Sr.Presidente passasse à varanda engalanada com ricas colchas de cetim ameixa, só tinha que que gritar "Viva Portugal! Viva o Sr.Presidente!". Pulava, pulava muito, tentava enfiar a cabeça entre as grades de ferro forjado mas a avó estava sempre a puxá-lo pela jaqueta e a mandá-lo ficar quieto. E o Sr.Presidente que não aparecía e as flores que cobríam o chão da rua principal estavam já a perder o viço e até o céu, de repente, se pôs escuro e o avô temeu que chovesse. Começou a impacientar-se e para passar o tempo nada melhor que tentar acertar nas cabeças dos que passavam lá em baixo, com um cuspo puxado a custo para a ponta da lingua, formado numa pinga branca e espumosa que guardava até o alvo estar na mira da sua boca. Acertou em muitas cabeças, a maior parte delas cobertas de chapéus mas também algumas completamente calvas, que fizeram os seus donos olhar para cima, para espanto da avó e um grande safanão nele, que agora o avô não estava para brincadeiras e já tinha proferido um "mau-maria" muito azedo.
Que aborrecimento! O Sr.Presidente tardava e ele, prisioneiro das boas maneiras impostas, aborrecía-se... começou a descascar o varandim de madeira com alguns furinhos aqui e ali, e naquele entretém de sacar lascas e farpas lá apareceu o homem que todos esperavam.
Foi uma festa! Ele foi o que gritou mais que todos, o que mais rápido acenou a bandeirinha mas o Sr.Presidente lá embaixo na rua florida, só levantava a mão direita e meneava a cabeça gentil como uma marioneta para as alas formadas, nunca olhou para ele, lá em cima! Isto deixou-o furioso e segregou uma grande cuspidela que embrulhou na ponta da lingua e catapultou em direcção às costas do homem!



(continua)

domingo, 18 de novembro de 2007

Cá de dentro

Na horizontal para que não caiam de si palavras, está cheia delas, plena, quase transborda. Por cada vez que o coração bater uma imagem eclode, um sentir forma-se, uma palavra tenta o escape pela comissura dos lábios, escorrendo fininho e transparente seguindo o rosto abaixo, deslizando pelo pescoço engrossando em riacho, uma pequena poça nos ossos côncavos junto ao encaixe do ombro, encheu, segue caminho desviando pelo vale ao centro dos seios e deposita-se em mar no abdómen. É no ventre que aninha as palavras. Que as aquece e protege. Que as dá a quem suporta sentir a sua força e o seu valor.

sábado, 17 de novembro de 2007

Fôlego


Quero dizer-te simplesmente sem pontos uma virgula sequer mesmo que a respiração me fuja e a voz me enfraqueça ou tu tentes calar-me com a mão suave na minha boca ou os teus lábios se apertem num shiu e até os que passam parem e escutem e depois vão contar ainda a outros que decerto juntarão mais do que aquilo que ouviram que no finito do tempo em que eu acabo de proferir estas palavras estas palavras serão cinza do que sinto pois tão vivo é o lume que me consome além-mim que temo que ao dizer-te simplesmente quanto me és sustendo o inspirar e o expirar a sufocar a combustão tu tentes falar e me digas também o que guardo precioso no silêncio que honramos.

sexta-feira, 16 de novembro de 2007

Cartas ao Poeta (VIII)

Meu Poeta,


Hoje foi dia de casulo.
Daqueles em que nos enovelamos todos, em fisico e em espirito. Olhamos para dentro de nós na tentativa de descobrir o que falhou, o que ficou esquecido. Questionamos as facturas que a vida nos apresenta e não nos conseguimos recordar que compra foi essa que efectuámos para agora aparecer uma conta exorbitante de penas e suplícios.
Hoje foi dia de passado.
De lembrar dos nossos erros, de constatar que preocuparmo-nos com ninharias é uma perda de tempo, de reavivar os nossos mortos neste tempo presente.
Hoje foi dia de calmaria.
São hoje as horas de aceitar aquilo que a vida nos oferece e tão só apreciá-la.
Afinal, até nem terei tanta queixa...
Hoje foi dia de ti.
E como me sinto maior de existires.


Daqui um aceno, onde estiveres vais vê-lo e será o meu sinal para o teu porto seguro.
Um beijo, para saberes que me fazes falta.
.
(in Cartas ao Poeta, C.G.-16/08/2005)

quinta-feira, 15 de novembro de 2007

Tua





Elasticamente

te consagro em ventre

meu

guardado veneno que me

implora

afago no solto intervalo da tua ausência

procura

meu

consolo em orvalhos sonhados

minutos tardios implorados no vestido

caído na força do contido

chão

meu

desejo, minha paixão


(in Toda a Poesia Despida, C.G.-Novembro/2007)

quarta-feira, 14 de novembro de 2007

Porquê



Por mais de uma vez perguntaram-lhe porque o fazía assim. Porquê? Porquê haver sempre tanta explosão contida de sentires, o vidro das lágrimas, punhos, nariz ao alto a farejar, sangue incolor, palpitações na garganta, premonições, um adeus, um afastar, amores impossíveis de amar?! Tão mais feliz e bonito juntar um e outro, dar as mãos, suspiros em forma de coração, beijos, sol e Primavera... sería um final a deixar todos de sorriso rasgado e dormirem descansados uma noite merecida. Ele encolhía os ombros, banalmente, na impotência da fórmula descoberta atingir no comezinho da repetição de gestos e despertá-los para o outro mundo, filtrado, coado no paralelismo que o eco tem como ressonância do que se diz, do que se faz, do que se quer. Algumas vezes tentara, em nota de rodapé, explanar a sua teoria de que todo o acto tem um reflexo em simultâneo como a imagem de um espelho e que aqueles sentires controlados por si nas suas narrativas desenvolvíam outros actos mais libertos, gritados, tão verdadeiros que só sentindo. Ninguém entendera, retiraram-lhe o mérito da idéia e chamaram-lhe demente. Adoeceu nas palavras por inscrever e perdeu-se em febres delirantes que o atiraram para a duvida da sua própria crença. Tantas vezes se perguntou porquê que a interrogação atirada ao reflexo o fez nascer de novo como mulher.

terça-feira, 13 de novembro de 2007

Quarto Poético



Para lá do vidro ninguém vê nada. Para lá dos panos que vestem de longo ninguém sabe nada. Podem adivinhar, inventar cenas de amor, tragédias em vermelho e até o escárnio do ronco. Mas não sabem.

Não imaginam que na noite de fora dás-me luz por dentro e o sol e a lua se põem e nascem quando nós queremos, a sede bebes-me da boca e no dedo passado na sobrancelha riscas a vontade do sorriso silencioso e morno como se desenhasses a criação de mim. Não sabem que não me dizes minha querida nem eu a ti porque sabemos que querer é o que nos temos nas palmas abertas de tanto dar e palavras, tantas palavras, tão pouco ruído para a tempestade que troamos.

Depois o sossego. Apenas a coisa invisivel que paira no ar, cheiros que se agarram às paredes como graffiti, assinaturas de nós, uma alma una espremida entre carne e sentido.

De lá para cá à distância da transparência do vidro da nossa janela há uma muralha intransponível que abafa mundos e só a breve brisa no nosso sono nos lembra que já há cem anos assim era.

segunda-feira, 12 de novembro de 2007

Ladrões

Melancolicamente enevoada na hora de verdes ramos dobrados à sede do murmurio de seixos chatos e ovais, abre-se o peito de quão imenso o mundo é na vista que o alcança.

Perdem-se energias, lágrimas, punhos em riste, brados surdos nos quilómetros da idade, tentativas de vã glória no ganho social, na disputa politica, dinheiro contado, minguas de riso. Furtivamente suga do homem a vida a correr. Não há espaço para olhar as nuvens, ver a lua crescer, o estalar da vaga espumosa, saber da estação das uvas e dos figos.

Por isso, à noite, quando trancarem a porta, cuidem dos ladrões.

Os do tempo.


Porque é 2ª feira e começa tudo de novo.

domingo, 11 de novembro de 2007

sábado, 10 de novembro de 2007

Gatilhos

Emito um som. Quase soprado, grave na voz para que o sintas o quanto quero. Chega-te como palavra, chegam outras a seguir, um carreiro delas que se intrusa na tua boca, ouvidos, peito - ai, atinge o coração! - um disparo certeiro, o cão solto, a mão firme encaixada na concha da outra palma, o premir suave do gatilho a expelir o verbo.
Sai em espiral, rodopiando o ar, rasgando num silvo até a vontade chegar ao alvo, derrubar defesas e escudos, corroer em estilhaços até penetrar.
Entra a palavra, alojam-se frases, inunda-te sem contra-ataque, deixas, queres, pedes, dou-te.
Não me protejo eu dos teus gatilhos disparados. Desejo-os. Sinto-os chegar e a domarem-me os pulsos fazerem-me refém do diálogo tatuado nos cinco sentidos alerta, fogo cruzado, na minha resposta a libertação, na tua pergunta a rendição... silêncio.
Carregamos armas, a munição é infinita, o esconderijo é o sermos outros...
Primes uma vez mais o gatilho.
Quero, dispara, mata-me de palavras só para mim.

sexta-feira, 9 de novembro de 2007

Os meus segredos (cinco)



Há vezes em que se sente que aquilo que recordamos, aquilo que nos dá a dor aguda da saudade, talvez tivesse sido um devaneio da nossa memória, uma alucinação da vontade tanta de dar.

Essa avidez cola-se como uma pele e digitaliza-se no olhar para além do ver.

Torna-se um membro como um braço para aquecer ou uma perna para saltar. Usamo-lo como os pulmões, inatamente, aleatoriamente... funciona em nós e independente da nossa vontade.


(in Os Meus Segredos, C.G.- 09/05/2005)

quinta-feira, 8 de novembro de 2007

Imo



Hoje fiz tudo à pressa. Quería que o dia corresse ligeiro, rápido sem paragens nem pormenores, puxões na manga do casaco a travarem a vontade de empurrar as horas numa bola gigante até chegar aqui ao meu casulo, descalçar-me e ser livre para te pensar.

Agora já te posso imaginar sem barreiras de outros olhares inquiridores nem perguntas de adivinhação, o tempo é para nós, para o conquistarmos devagarinho no detalhe da sobrancelha arqueada e na assimetria dos ombros descaídos. Gosto dos teus pequenos defeitos pois são originais sem reprodução barata, sinais que me fazem distinguir-te na turba massificada e mesmo que te digas imperfeito encontro nessa irregularidade o gosto cultivado do invulgar.

Faço-te perguntas, respondo-as eu. Por vezes até arranjo maneira de uma pequena discussão acontecer para depois na mutez forçada sentir que me vais pedir perdão, aproximares-te, tentar o toque da mão tão semelhante como o laço que se faz para prender um presente, o contacto baixo e alto e baixo outra vez dos olhos húmidos de tanto pedido.

É contudo no abraço que mais te tenho, mais te realizo. Aprecio o teu calor a aconchegar-se a mim como um molde.

Fecho os olhos, adormeço. Amanhã voltarei a apressar o dia e a esta mesma hora tenho encontro marcado com os meus pensamentos. Um dia tu apareces mesmo.

quarta-feira, 7 de novembro de 2007

A Tempestade - Parte Final

(Continuação)

Mas ela descontrolada chorava e berrava, dando-lhe palmadas nos ombros tentando afastá-lo para longe de si num espaço onde tal não era possível. E tanto repetiu o gesto que ele cansado de tanta gritaria a ameaçou de pô-la fora e deixá-la entregue à sua sorte ou à sua perícia de nadadora. Como por encanto ela quedou-se nos guinchos e desatou num pranto baixo encostado a ele, apertando-o forte com medo de perder a âncora segura. Ficaram assim, de pé, molhados, abraçados por um tempo indeterminado.De quando em vez um risco eléctrico no céu, logo seguido de um ribombar que fazía tremer a cabine telefónica: nesta alturas ela escondía o rosto no peito dele e abafava o grito do medo. Ele beijava-lhe a cabeça encharcada, os cabelos colados à testa e às maçãs do rosto e num tempo de um relâmpago aflorou-lhe a boca. Ela não o empurrou: deitou-lhe as mãos ao pescoço e pediu mais com o olhar aguado.
Ele repetiu mais uma e outra vez e depois apertou-lhe o lábio inferior entre os seus, sentindo a ponta da língua dela, quente e macia a tocar-lhe; segurou-lhe no queixo e beijou-lho, depois os olhos, o lóbulo esquerdo frio de tanta chuva e voltando à face mordiscou-lhe o nariz, puxou-lhe o beiço superior chupando-o entre os seus. Ela estava silenciosa, estranhamente calada e a fitá-lo séria.Perguntou-lhe então se iríam morrer. Ele soltou uma pequena gargalhada e disse-lhe que esperava que não, não naquela noite pelo menos. Ela mantinha a mesma expressão grave, e de olhar decidido e vontade definida, disse-lhe que quería que ele a tomasse. Ele ficou surpreendido com o pedido e durante alguns segundos não soube o que dizer. Ela não hesitou, tirou as cuecas e largou-as no chão alagado que de imediato pela força da corrente arrastou a peça de roupa pela frincha da porta para destino desconhecido. Ele não sabía o que fazer mas ela colou-se num beijo profundo à boca dele ao mesmo tempo que o tocava no peito, deslizava as mãos até às nádegas molhadas, por dentro dos bolsos das calças, correndo o fecho para baixo e descobrindo guardado aquilo que desejava.Ele retribuiu o agrado, primeiro em toques envergonhados apenas sentindo a roupa colada ao corpo dela mas quando realizou que ela estava desnuda por baixo, um fogacho pareceu tomar-lhe conta da iniciativa e pegou-lhe ao colo, passando as pernas dela pela cintura.Ela abanou as pernas e os sapatos soltaram-se, apoiou os pés no telefone público e num exercicío gímnico fez pressão com as palmas das mãos nas paredes de vidro da cabine; ele amparou-a pelas costas junto às ancas, onde a saia se enrodilhava como um trapo. Deixaram-se ir ao compasso da tempestade e quando ele pensava que o trovão se abatería por cima da sua cabeça ela atrasava o tempo entre o fulminante e a descarga, como um comando que dirigia ao sabor da intensidade da chuva.Até que ela soltou um grito prolongado, aberto e agudo, ecoante no escuro. Também ele gritou, soçobrando, quase a largá-la daquela posição instável, e ela voltou a gritar e ele novamente em uníssono com ela.Calaram-se aos poucos, o coração aos solavancos, descendo à terra, caíndo na realidade do encontro insólito. A trovoada havía desaparecido e a água agora limitava-se a uns salpicos frios. Começaram a aperceber-se do mundo para lá da cabine telefónica. Havíam carros parados com passageiros que tentavam ver dos vidros embaciados a altura das águas, pessoas que surgíam não se sabía bem de onde. Ele abriu a porta deslizante do abrigo improvisado, ela olhou-o séria e saíu descalça. Ele chamou-a mas ela não se voltou para trás nem lhe deu resposta. Ficou a pensar quem sería aquela mulher, se chegaría a casa, onde moraría... que gostaría de a encontrar de novo.Como o flash de um relâmpago veio-lhe à memória que ela não tinha cuecas e sorriu, sentindo-se feliz sem saber bem porquê. Ao longe ouviu um grito distorcido pelas buzinas de trânsito que entretanto recomeçara caótico e riu.

(in Contos da Fogueira, C.G. - 31/10/2005)

terça-feira, 6 de novembro de 2007

A Tempestade - Parte Um


Naquele dia o mundo parecía ir acabar-se em água.
O trânsito estava completamente caótico o que subsequentemente provocava a ira dos condutores, a raiva dos pedestres e a impaciência dos utilizadores dos transportes públicos.
A capital assemelhava-se mais a um parque automóvel, estático, apenas recolhendo a chuva que caía em catadupas e se transformava literalmente em mares.
Com o caír da tarde aquilo que parecía mau tornou-se péssimo: as luzes dos carros incendiavam uma visão diluviana em que o único som que se ouvía nitidamente era o das buzinas frenéticas, apertadas, batidas, castigadas nas mãos dos condutores.
Os peões corríam assustados como fantasmas negros e encharcados quando o conseguíam, pois a maioria das vezes arrastavam as pernas por poças cujo fundo era impossível adivinhar.
Parecía que uma cidade inteira se movimentava em direcção a casa sem saber bem onde esse sitio seguro ficava.
Ele tinha perdido o norte: acabou mal abrigado numa cabine telefónica sem luz que parecía ter surgido do mar como um periscópio que espreita as águas inimigas. Olhava ao seu redor apercebendo-se somente de manchas escuras, sem contorno definido, por isso quando a porta da velha cabine se abriu de rompante, o sobressalto fê-lo impulsionar e colar-se às paredes de vidro. E a mulher que entrou assustou-se tanto como ele, pois o grito que emitiu parecía um alerta para uma tragédia eminente. Ela tentou voltar a abrir a porta deslizante mas o nervosismo que a tomou toldou-lhe a precisão dos movimentos e quanto mais exercía força na pega mais a porta se vedava.
Ele tomou-lhe os ombros na esperança de a acalmar mas de novo um grito lancinante como um filme de terror.
Aos poucos ele foi-lhe dizendo, primeiro aos gritos depois gradualmente baixando o tom de voz, que nada tinha que recear, que fugíam os dois do mesmo, que a chuva é que os tinha posto naquela situação, não havía razão para ter medo.
Ela pareceu sossegar um pouco, esboçou um sorriso mal desenhado à defesa e apresentou vários argumentos válidos perante tanta violência no mundo. Ele concordou e foram fazendo conversa de circunstância sempre ao redor do temporal que lhes caía em cima.
Calaram-se e ficaram a ouvir a água violenta a martelar o metal da cabine telefónica.
Ela murmurou que provavelmente nunca saíriam dali mas o ruído era tanto que ele não entendeu. O pânico apossou-se dela e quando o estrondo bombástico do trovão eclodiu ela gritou. Ele abraçou-a e histericamente ela repetía que iríam ficar ali para todo o sempre, que ninguém os iría salvar, morreríam arrastados dentro da cabine como um barco à deriva.
Ele puxou-a mais para si e afagou-lhe os cabelos molhados, dizendo ao ouvido que tivesse calma, que ele estava ali e tomaría conta dela, que nada de mal acontecería, era só água e inundação, trovoada e barulho.

(continua)

segunda-feira, 5 de novembro de 2007

Tardes de Outono

Amena, levemente soprada num fio fino de frio que corta ao entardecer a luz filtrada, olho pelo embaciado do vidro o Outono meigo que me recorda outros outonais tempos em que o estalar das folhas de cor barrenta se envolviam em ondas junto aos tornozelos.

Meias pelo joelho. Saia de xadrez, pasta da escola às costas, cinco pedrinhas. Histórias de encantar. Corridas de gelar o nariz, lágrimas a perderem-se no cabelo, joelhos esfolados.

Tanta correría para chegar aqui a esta tarde de Outono em que os sons chegam pelo eco da memória e as vozes dos meus queridos ainda me tocam ao de leve no sopro dos segredos para vestir o casaco que agora esfria... Não tenho frio, só tenho saudade.

Do paladar das castanhas assadas, descascadas e dadas à boca a ouvir lá fora as primeiras chuvas que lavavam num cheiro bom a terra vaidosa de tanto estio atingida.

Tinjo na lembrança um gole de vinho, uma saudação a todas as boas tardes pardas e de relógio parado pelos Outonos que tenho tido. Preciso desta nostalgia bucolica de passeios pela alma dourada que o verde já se foi, um fado ouvido ao longe, o destino de todos os outonos me despirem de risos, abrandarem o bater do coração e preparar-me calma mas forte para a próxima estação.

domingo, 4 de novembro de 2007

Ler-te


Abro o livro e encontro-te por lá.
Esperas por mim, eu sei. Esperas que te lance o olhar e te siga enamorada linhas fora, abrandando o passo nas virgulas, estacando nas tuas exclamações, perdendo o folego ou dando-te a mão nos três pontinhos seguidos que tu colocas para me interromper e surpreender no que virá a seguir. Sabes como gosto de surpresas... como gosto quando me beijas ao virar da página e me dás o silêncio no começo de um novo capitulo. Aventuro-me, és irresistível, nada temo, afoito-me mar dentro ou pelejando de punhal em riste apenas por te ouvir a voz.
Se o cansaço me apanha chamas por mim, sacodes-me, agitas a minha curiosidade e durante breves parágrafos escondes-te para que eu te procure e descubra no disfarce do cenário ou nas falas por terminar, nas charadas esfingicas ou nos jograis a várias vozes em que me pões à prova o meu verdadeiro amor por ti.
Compensas-me depois: falas-me do bosque e do rio e ainda penduras lá no alto um luar prata que entrecorta ramos de árvore como rasgões nos sentidos. Fazes-me mitologia.
Não precisas dizer mais nada, escrever nada mais.
Sei onde nos encontramos, onde esperas por mim, só por mim.
Basta abrir-te livro.

sábado, 3 de novembro de 2007

Madrugadas

Rompe o sentir
Na dilatada madrugada de te querer
Vagabundeia a noite
Ainda,
Na mão em que te alcanço, desperta, morna
Do dia recatado por nascer.

Há sal na tua boca
(Adivinho pimentas)
Rasgo luzes no azul
Escuro,
Provo da aurora
Resinas dormentes,
Faço-me afluentes
Em que marejas gotas,
Nas doces tormentas.

Ergo o sol,
Lilás e rosa dormem
Agora.
Devaneio-te na memória
A glória bebida.
Mostra ao silêncio
Quanto de grito sou
Nas madrugadas vivida.


(in Poemas Ainda Mais Doidos, C.G. -Março/2007)

sexta-feira, 2 de novembro de 2007

Crónicas do Tejo (VIII)



Este céu anda diferente: namora-me e encanta-me, fazendo perder a noção do norte, da realidade.

Embarco ao Tejo, também ele todo pintado da mesma cor de cima, meio aturdida de tanta beleza sou atirada para o lado de lá... nem sequer me deram tempo de despertar, saír desta ressaca luminosa de tanta beleza.

Despejada como um destroço açoitado na tempestade tão pouco encontro a praia onde possa morrer...

(in Crónicas do Tejo, C.G.- 15/05/07)

quinta-feira, 1 de novembro de 2007

Era uma vez...

...Uma flor que se transformou em árvore.
Dava palavras.
E por cada fruto comido o sumo do verbo surgía para quem tivesse o paladar apurado. Os que tentassem roubar da árvore esta oferecía frutas brilhantes mas na primeira dentada as palavras bichadas enchíam a boca e a mão alheia largava de imediato o que não lhe era seu por direito.
Era uma vez uma árvore que se lembrava de ter sido flor.