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segunda-feira, 16 de novembro de 2015

Uma linha



O céu está perturbadoramente azul-tranquilo, na carteira agitam-se as palavras aquecidas entre páginas apertadas do caderno a par com o metal das chaves e a sujidade do dinheiro, cada passo, cada corrida misturam o horizonte e nem mesmo assim a aproximação ao alto que parece tão limpo e tão fácil de alcançar se chega mais perto e bafeja de fresco o que arde em combustão lenta e silenciosa nos pensamentos rubro-cinza.Teimosamente, o dia há-de continuar apostado nessa cor, desinteressado que a noite já se tenha posto nas palavras do peito - as ditas, as escritas e as de consumo pela labareda sem se ver - e quando enjoado da monocromia quiser trocar com a noite de profundo, há-de haver no peito uma vontade de perturbação de azul-claro, a limpidez do desejo de ser dia de novo, de correr e escrever nas páginas palavras que saram queimaduras, chegar a casa quando o coração se aquieta na linha que separa as duas metades do céu e do homem.

domingo, 15 de novembro de 2015

Vidros



 
Basta uma palavra, uma sugestão nas palavras que se arredam na ponta da língua como sopro invisível, uma suspensão do discurso à espera que o outro adivinhe no receio da materialização do verbo e o cristal do momento parte-se, nada mais se escuta para além dos cacos, dos gestos sem som a prenderem o braço e os olhos muito abertos a pedirem calma, contenção na atitude, palavras e mais palavras que se enrolam como fios muito finos fabricando um casulo de miséria e ira, sob os pés os cortes sangrentos do saber a dilacerarem canelas, abdómen, peito até enfraquecerem a garganta e nada se poder responder.
Basta.
Agarram-se os pedaços caídos das reticências, cacos de cristal adivinhados e como todos os vidros, todas as palavras que contam veneno, não passam de coisa quebrada, defeituosa. De uma aresta faz-se uma arma.
 
 

sábado, 14 de novembro de 2015

[Desres]Guardo[s]



 
Dobro-me sobre as várias camadas de tempo que me cresceram de dentro até a pele se estender no hoje, resguardos de memoráveis ignorâncias em que a perfeição se sustinha na crença do bem, no alcance da mudança pela evolução do belo, pelo amor, pelos amores, um continuado achamento de que a conquista era possível pela palavra, honras calcinadas que deixaram fendas a um outro crescer permitindo um invólucro encouraçado mas ainda ligado a infantis e doces juras de princesas e dragões, sendo este revelado afinal como a coragem, personificações que passaram a duvidas, sombras, condicionais vingativas ao próprio na revelação da pequenez do homem, a decepção e o desencantamento, quantas poesias a filtrarem a verdade ou desta só a primeira como álcool dormente a dobrar o corpo para resguardar a dor e esquecer o que se foi, a perfeição de nada saber, dobro-me em vénia ao fundo dessa leitura e acho as outras que me trouxeram até aqui, quase selada, receios que me levem as estórias que tenho guardadas para olhar em dias de chamar a esperança.
 
 

sexta-feira, 13 de novembro de 2015

Je suis Paris




mon coeur est avec vous mes amies
pas de place a la peur


 
 
 

quinta-feira, 12 de novembro de 2015

Pequenos pontos


 
 
Procurava os números na ordem sequencial e unia por linhas os pequenos pontos que os assinalavam, aos poucos a imagem aparecia descobrindo um rosto, uma casa ou um animal. Era um passatempo que figurava ao lado das palavras cruzadas nos jornais diários, deixavam-me entretida de caneta no bico a deslizar de algarismo em algarismo até chegar ao último e sentir-me grande a par com quem completava as quadrículas do cruzadismo. Sorría triunfante na tarefa, no boneco à vista.
Tenho tentado seguir os pontos imaginários que me ligam entre os que me ocupam a maior parte das horas do meu dia e de uma forma ou outra, perco-me nos números por não os achar ou por não existirem, pelas pontes que não consigo construír para a meio andar até eles, uma derrocada antes da edificação total na simples palavra ausente ou na cacofonia, ou porque a exigência das minhas linhas cada vez mais finas, cada vez mais fortes se enferrujam na sensibilidade de não querer entregar a surpresa, o triunfo de forma fácil, magoada talvez, porque a importância de ser pequena ou grande deixou de ser importante e tudo é tão mais importante quando a imagem é nítida sobre o que sou, mesmo que toscamente unida em pontos.
 
 

quarta-feira, 11 de novembro de 2015

Magusto (dos desprezíveis)




Acontece que em dia de castanhas toma lá uma pera, pumba! mesmo no meio da tromba! Taruz, uma para assar que é como o povo diz, nem sabes de que terra és, a tradição aqui mesmo com provérbios não vale de nada, ou já valeu, ou melhor, valeu enquanto não houve outro que se chegasse pois já nada é mesmo o que parece e até as castanhas em dia de Magusto se estalam em assadores conectados a electricidades melhores que abanões a força de braço, sirva-se enquanto houve barro e este parecia porcelana, agora o que está a dar é desconfiar e desprezar, menosprezar, fazer pequenino e até destroçar em cores pardacentas até esvanecerem na memória do branco o que antes serviu a palete de cor tão precisa quando nada mais se conhecia. Porque se precisava. E servía. E até, vá lá, vá lá, confesse-se, apreciava. Pelo chão, uma mão-cheia de cascas de ingratidão. E como os ouriços picam, afastam-nos com as biqueiras...

terça-feira, 10 de novembro de 2015

Desencontro [com a morte]




Não sei porquê. Mas esperei ficar sozinha para abrir a gaveta, tirar a pasta castanha, soltar os elásticos e pegar nas folhas. De novo. Com rapidez, não fosse entrar alguém e ver-me a ler, um flagrante que não pretendía explicar, tanto mais porque nem sequer tinha que dar explicações, casa minha, escritos meus, mas aí é que a coisa fica difícil e mentir é que não sei, não é meu, alguém abusivamente imitou a minha caligrafia e pôs-se no meu corpo, coisas de dentro como roupa intima que só o próprio mexe e usa e mesmo sem dizer nada já se sabe que não é para mais ninguém andar a bisbilhotar. Uma, duas páginas, os olhos a apetecerem devorarem todas as letras mas também com vontade de se demorarem para entender pormenores, aonde é que eu andei neste tempo e quem fui que não me recordo, como se fosse mulher num corpo que não se apercebeu que não teve tempo de crescer à vista do mundo e incapaz no volume, rompeu-se, vazou-se, morreu-se.
Não me encontro em página alguma na minha morte. Guardo as folhas à pressa, ouço passos, fecho a gaveta.

segunda-feira, 9 de novembro de 2015

Uma folha só e chega



 
Fosse pelo Verão de S.Martinho e as águas enxugadas ou por meia-dúzia que se escondeu à minha espera ou ainda por curteza de vistas, bem rapadinho, agarrei um monte de folhas.
Mas a mania das perfeições levou-me à escolha e tirando uma porque estava ratada, outra porque cheirava a podre, aquela porque estava mais verde que vermelha e enganava, na sobra ficou uma.
Afinal é quanto basta.
Porque vai-se a ver já aqui passaram tantas que se fizeram da árvore e hoje olho-a serena e é Outono como as de seus pares.
 
Ou ímpar?
 

domingo, 8 de novembro de 2015

Instantâneo - Episódio doze



A esperteza do café instantâneo não reside absolutamente na preguiça da sua rapidez. Engana o olfacto, pisca a visão e consola nos mesmos tempos imediatos uma boca ávida do vicio da cafeína quando se se pretende dedicar a outras coisas mais prementes. Logicamente, a deturpação dos sentidos tem uma duração de curta vida e logo que arrefece todo o ardor do instantâneo está votado ao cano, ou seja lixo, ou noutra solução, é empreender fazer um outro o que significa que o tempo poupado é perdido a dobrar. Mas se é do falso que se fala, e do cumprimento do seu papel, honra lhe  seja feita que à custa de muitas canecas já decorei o cenário e o desmontei mais rápido que a coroa de creme teve oportunidade para se esvanecer no topo da beberagem escura. E a verdade, é que as proporções com o real não foram chamadas ao tema nem tiveram influência no correr da pena, mais verbo desenhei por entre goles de café de brincar do que chá à séria, as personagens não se incomodaram e o à-vontade da desolação no silêncio de portas a fecharem-se ou reencontros no apagar de candeeiros de mesinhas de cabeceira seguiram até ao ponto final com a minha boca na louça à procura do vácuo por já nada mais haver de beber.

sábado, 7 de novembro de 2015

Empréstimos



A certa altura aborreço-me e empurro tudo para a frente, não me apetece mais, há um certo cansaço nas costas, nos braços, nas mãos e nas letras, as folhas enchem-se à medida do cinzeiro, perdi a conta ao tempo em que aqui estou, não é dia de relógio, cheguei de noite e hei-de ir embora quando apetecer, há mais escrita no que penso e vou falando nas palavras mudas que troam no peito do que as que ficam penduradas no pingo de tinta, não me apetece mais, talvez já tenha dito tudo o que possa dizer e o resto é apenas isso, restos, bocados que ninguém quer levar, verbo de 2ª, uma rapadura que me entretém enquanto finjo que vejo alguma coisa pela janela defronte da secretária, tudo limpo para pôr cotovelos e caderno adiante é assim que escrevo, restos, aborrecimentos que ficam por descrever o que me vai por dentro, nunca gostei de escrever sobre diários e no entanto tenho um diário desde que soube desenhar as primeiras letras, como é irónica a vida, devia escrever sobre mim se me emprestassem o meu corpo. De novo.
 
 

sexta-feira, 6 de novembro de 2015

Pequenos e grandes



Perfiladas como um cordão branco, sentinelas, o nevoeiro não deixa alcançar mais que prédios, a queda para o traçado das ruas, elas esperam, não há rio que se veja e donde se diga que elas vieram dele, que é meu, dentre este regimento aprumado confunde-me a faladora e não a distingo.
A uma ordem sai uma e depois outra e vão-se todas.
Rompe o sol.
As gaivotas tão bem comportadas de há momentos brincam no ar, soltam gritos gargalejados da liberdade permitida, sigo-as até entontecer nas voltas afastando os restos de fiapos do nevoeiro, dois pardais vêm debicar coisas invisíveis no chão acimentado do terraço, dois montinhos de penas numa poça de sol, cumprimento-os e esvoaçam para outra distância.
Persigo a vontade de meter conversa, novos diálogos, destes nunca houve oportunidade mas a tentativa leva-os de vez como um risco rápido a cortar uma folha, não de mim que fogem mas do bando terrível que em regresso aterra ao espaço que tomou como seu, avanço e encaram-me de asas abertas.
Agora entendo o silêncio dos pardais.
Encosto os joelhos ao muro e deixo o sol tomar-me, o rio cega como uma folha-prata.
 
 

quinta-feira, 5 de novembro de 2015

Bagagem dos sentires



As viagens, é mesmo disso que vou sentir mais falta. Mas não das viagens trajecto, passeio, visitas, protocolos, todo aquele emaranhado de cortesias repetido das apresentações, saudações, vou sentir a falta da proximidade do tom de voz, do cheiro, das gargalhadas, dos tiques de sobrolho quando nervosos, das confissões na predilecção de certa rua ou do fechar de olhos por segundos ao deliciarem-se no chocolate quente para logo retomarem a postura, do corado das faces ao serem apanhados no prazer do fumo às escondidas, no aperto de mão franco da despedida e renovação do encontro, nos erros dos idiomas praticados no simples agradar, na discussão inteligente dos projectos. Saudades de gente inteligente com emoções. A rir porque discordamos.
Tenho malas cheias destas viagens.
Farei outras talvez. Ou não. Não com estes isso é certo, os nossos rumos separam-se sem tristeza com o tanto de ganho e um abraço a desejar boa viagem.
 
 

quarta-feira, 4 de novembro de 2015

Travessias do Rio - 4


 
Cruzo os braços ao peito, traço as pernas, vejo o farol a distanciar-se, onde será que param aquelas fotografias que o meu pai tirou a mim e à minha mãe no Cacilheiro, eu a apontar na direcção de Lisboa, choramingona, a interrogação nos olhos da minha mãe a prender-me o vestido debruçada na amurada, mechas de cabelo a entrançar-se louro-escuro pela brisa, lembro-me que era Verão e o barco balouçava aberto e sem janelas, oleados enrolados a deixar as pingas do rio refrescar o corte do avanço no rumo ao outro lado, onde estarão as fotografias que não sei, do farol só um risco a prumo e ninguém vê nada aqui, podiam aparecer sereias ou baleias que era o mesmo de sempre, aponto ao homem que dorme ao meu lado o chapéu de chuva que desliza e vai caír, acorda no ruído da queda mas não me ouviu, fotografias a preto e branco, todos eles à minha vista e não sabem onde estão.
 
 
 
in Travessias do Rio, Outubro 2015

terça-feira, 3 de novembro de 2015

Terça de chuva



Fugiram todos, basta um pingo de água e desaparecem, só se sabe deles no piscar dos faróis e farolins, luzes amareladas e vermelhas faísquentas, linhas cromadas infindáveis e ruidosas repletas de uma fúria apressada para engolir o que o precede e depois o outro e assim sucessivamente, fogem todos, querem correr mas não têm como porque vão todos ao mesmo, a cidade transformou-se numa buzina gigante ensurdecedora que nem sequer deixar escutar a chuva a bater na calçada, caminho sem som, o que penso deixa de ser meu pela violação dos sentidos, posso não ser eu sem o saber e terem-me levado confinada para o resguardo do que molha, afinal o chapéu de chuva apertado nos gomos de pano a nada servirá se viajar como cajado, peso-morto, mão-morta, ando mais rápido que qualquer motor e recuperada no que é meu pelo trovão que estala exibo a copa do chapéu a proteger os olhos da inveja do que lhes vejo, cidade lavada, fujo, basta um pingo de água e o medo da alma vir-lhes ao de cima.

segunda-feira, 2 de novembro de 2015

Palavras faladas


 
Era como se esboroasse uma fruta conhecida do palato mas na novidade da entrega à boca por dedos alheios, a sede se acalmasse no sumarento, o consolo no doce.
 
Bocados de texto. Era assim que os dizia, não na continuidade como haviam sido construídos como uma teia que se vai montando para a firmeza da sustentação, mas a beleza do inevitável derrube parecia exactamente residir nessas reticências da voz, falava-os e depois calava e depois seguia para outros mais adiante ou anteriores, uma ansiedade nas palavras vestidas de novos sentidos colando pontos finais onde não existiam antes.
 
Ou então era apenas a voz. A sonoridade da tinta permanente azul-china a mostrar a sua fragilidade, pequenas rachas e lascas que se abriam em sulcos mais fundos quando o tom se tornava mais cavo a dizer substantivos que ganhavam qualidade na forma como eram ditos, quase soletrados alguns no intuito de magoar o ouvido.
 
Eu ouvia. E comía as minhas palavras escritas lidas por ele, novas como se não tivessem de mim sido, uma fruta conhecida mas amadurecida em outras latitudes.

domingo, 1 de novembro de 2015

A flor, a árvore, 2007-2015



A árvore ainda tem lembrança de ter sido flor, ainda guarda (alguma) ingenuidade, ainda cresce (mais) na invisibilidade das raízes do que na altura da sua aparente robustez.
 
Apenas só mais um Ano, e tantas folhas já caíram, outras lhe rebentaram e muitas nem passaram de um mero pormenor, quiçá um defeito da casca, nada que se lhe prestasse atenção. Mesmo assim, tudo nela me fez ver, aprender, abrir os olhos à minha reduzida sabedoria de escriba e duvidar, parar e ouvir, ver o que o mundo tinha de simples para na medida das letras minhas conhecidas eu soubesse contar.
 
A árvore a ensinar. Mas também a salvação quando não se consegue dizer, revoltas, verdades da verdade contada em faz-de-conta no verbo construído como muros libertadores de um casulo a esconder a feiura. O sossego, o silêncio, cartas escondidas em troncos mágicos como estórias infantis, só mais uma, só mais um Ano.
 
Até apetecer ter letras e saber aprender como uma flor, depois escrever árvore.