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segunda-feira, 23 de dezembro de 2013

Instantâneo - Episódio piloto


 
Preparo o cenário: Tenho os cigarros, o cinzeiro falhado, a manta coberta de pelagem, o elástico no pulso, o caderno e a caneta de tinta permanente, chamei o gato mais gordo que se alastrou no regaço numa mancha alaranjarada arfante marcando o ritmo das teclas premidas ao som da memória dolorosa da imagem que vou acompanhando nos goles do café instantâneo rasgando mais um pedaço da úlcera ou das papilas gustativas no fundo do travo, não sei, que interessa, há pressa, não quis gastar tempo do tempo que ganhei quando apareceu o clarão da lembrança, aqueci água, uma colher de um granulado de terra seca, cheira a café, faz de conta que é.
As palavras vão-se despindo, eu vou tirando peças de roupa, tantas por aqui as que despojei na simplicidade de dizer o que dizer apenas sem atavios de outro contar, resta-me a pele, um pequeno golpe e sai tudo de uma vez, um fato completo sem truques de fechos complicados, botões, laços, agarra-se uma pontinha e sai, afinal são só palavras, no final é só isso que fica, é só disso que agora construo essa memória de um filme que revivo, revisitar sentires nas palavras buscadas.
Deixa-me um sabor horrível, contentou-me o engano do quente e o olfacto cego.

sábado, 9 de novembro de 2013

Crónicas de um Bazófias - 3ª


 
Pela mão da Mãe, sempre de tailleur e de saltos altos, condenadamente a enterrarem-se nos torrões que fazíam o caminho até à paragem da camioneta que nos levaríam até ao trolei e neste sempre a descer, a Ponte de Santa Clara muito branca à esquerda. À direita, eu tinha medo. Havia um morro em rocha e uma escadinha que serpenteava até ao alto onde os Pais me tinham dito haver um convento. Sentía frio quando passava por ali, só o esquecia quando atingíamos o plano e vía o bulicio da cidade. Descíamos, as montras das pastelarias piscavam-me os olhos, mas os cremes eram-me interditos. O pão de deus era-me passado para a mão, não te sujes, segura bem. Eu só quería pular, correr, ver as cores que me despertavam histórias e fantasias e o dedo a indicar perguntas, como se chama aquele mar? É um rio, Como se chama o Rio? É o Bazófias, É o quê? É o Mondego, não foi isso que tu disseste, estás a mentir e não se diz mentiras que é feio! É o Mondego, nunca te esqueças dele. Não, nunca me vou esquecer.
 
 

sexta-feira, 8 de novembro de 2013

Túnel



Até onde os extremos se tocam ou se opõem afastando-se para distâncias incapazes de serem medidas pelo senso do homem, que de frases elipticas em que estes se chegam a atingir também eu piamente cheguei a crer e agora... bem, agora nem tanto, que se o pico da alegria me é trampolim para saltos que nunca pensei, a dor é bem mais a mola que impulsiona a dimensões que nunca houvera descoberto não fosse cortada por ela.
Achar não ser capaz, pensar não ter mais força e no fundo do fundo desconhecido de nós mesmos, de mim própria que tão bem conheço [e nem tanto, afinal], uma réstia de um pó que ainda ergue e empurra e leva, limites, fragilidades, ténue luz, um fiapo. Mas vou. Quando achei e me disse não conseguir mais por achar ter derramado o sangue da alma, aquele diferente de outras veias.
O extremo da escuridão e da cegueira e da dor a diluirem-se à medida que a força recuperada no tempo entra numa aguarela de mãos, sorrisos, claridade e lembranças de ser feliz.
 
 

quinta-feira, 7 de novembro de 2013

Campo de Palavras (13)



 
A sensação de ouvir, ler, sentir, degustar nos olhos a simplicidade de duas palavras pelo desempenho de um trabalho é dos melhores presentes recebidos.
Bom trabalho. Ou apenas Muito bem.
Ser recompensado através do gesto verbal ou escrito é tão materialmente eficaz quanto uma coisa, pois a palavra torna-se a dimensão do presente imaginado e logo, muito maior do que qualquer outra gratificação comprada. Esse é o verdadeiro valor da palavra. O momento em que o reconhecimento entre géneros se dá sem expectativa de troca, oferecer o que de si se é a outrém como verdade.
Para além da banalização das palavras, do seu significado há o motivo e a intenção, fica uma memória, uma alegria, momentos de palavras boas que se repercutem em palavras boas a despontar em campo fértil.
 
 

quarta-feira, 6 de novembro de 2013

Pensar



A mim o que me apoquenta é a rotina. A normalização, a norma, o formato, o molde, o standard, a massa, o igual de todos os dias sem pensar que a diferença é a beleza do próprio pensamento no despertar que nos destaca no bloco cinzento que cumpre sem interrogação porque mandaram e se mandaram é porque é assim e se assim é assim será para tudo e para todos sem diferença, mesmo que à força e de calçadeira a acção se tenha que encaixar na vida. Repetição da repetição, nem relógio de ecos pois se o minuto passado nem do mesmo respirar se fez dos apoquentos consumidos e a mim agita, trantorna, transborda.
Pensar cansa, suspiraram-me.
Pensar gasta, ensinaram-me há pouco tempo.
Pensar ilumina, é o que sinto.
 
 

terça-feira, 5 de novembro de 2013

A estrada



 
A certa altura caminha-se sózinho, a mão do nosso lado está lá, aquece-nos e ampara-nos mas sabemos que o carreiro é nosso e a decisão de a ele nos fazermos a nenhum outro juízo poderá ser apontado senão ao próprio, já não há desculpas para a tenrura da idade nem influências sobre estilos de vida, o estilo de vida é ser-se assim, é ter o poder da opção.
Caminhar, caminhar sempre mesmo que aparente fazê-lo às arrecuas ou num passo enviusado, a escolha solitária da estrada que parece tão nua por deserta de sinais, pistas, um simples atalho que poupe a dor das pernas na busca não se sabe bem do quê e tão profundamente se deseja no intimo o que não se explica, a felicidade, um conta-gotas que pinga para tão logo secar na lingua ávida que arfa na continuada senda da caminhada.
Cansaços, vontade de sentar e desistir e o caminho a andar numa lenta passagem a pedir o esforço da tentativa... A certa altura achamos que caminhamos sózinhos mas surpreendentemente se descobre, maravilhosamente se desperta, quase assustadoramente se reconhece pequenos nadas que nos restaram dos caminhos de outros que nos amaram. Decalcados na nossa memória como mapas. E seguimos. Porque a nossa vez de emprestarmos os mapas há-de chegar.
 
 

segunda-feira, 4 de novembro de 2013

Olhar com Vista sobre o Rio (10)




O marinheiro de olhos azuis deu-me a mão e senti-lhe o frio dos ossos da tua água penetrada pela noite que arrasta na travessia entre margens, cabos que me são cordas endurecem-lhe calos que me seguraram as palmas, tentaste a minha queda, balanços de quem está bravo, uma ira ciumenta de amante despeitado, quase arrancas sem me levares, açoites de cacilheiro e urros para dar medo a quem veste valentia.
 
Cuidado diz baixo o marinheiro de olhos azuis e o azul dos olhos é o Tejo tingido plácido, dois Rios transbordados, um que me reclama e um que me avisa, afasto-me e fico pequenina a meio de tanta água, nunca o lado de lá encolhe, é sempre ilusão achar que o que é grande possa alguma vez ter outro tamanho.


(in Olhar com Vista sobre o Rio, 2012)

domingo, 3 de novembro de 2013

Que tome conta


 
Quando se sentar no corpo, vestir o invólucro sobejando pregas e idéias caídas por não sabê-las onde arrumar e a essência do todo rumar de lá para cá alternando destino com incerteza da meta no intermeio do fio da realidade da terra plana e da terra só por si vista, em que a importância de uma visita no bater da porta terá a dimensão de um Domingo ou de um dia comum na semana a que se perdeu o nome enquanto se procura o chinelo a fazer par a um luva porque não se lembra que caminhar de pé se faz crescido quando ainda se escuta os risos da infância e se olha para trás à busca do rosto de quem nos chama pequenino, deixá-la sentar-se, repito, a velhice a sentar-se no corpo e a tomar conta.


sábado, 2 de novembro de 2013

Portas & Janelas - Esboço nº 5




Empinar cartas em V inversos ou contar a estória de ti vai dar no mesmo, tudo em meia-dúzia de palavras ou uns quantos dias que no caso não houve tempo capaz de nos segurar como também não o é nos jogos de cartas empilhadas, basta um passo apressado ou um suspiro e tudo se desmorona espalhado, um plano só sem graça nem tino e quem olha aponta dizendo na certeza que se tratam apenas de cartas de um baralho mal arrumado.
Ao alto, sempre ao alto, até na ponta dos pés tentava chegar-te e mal te debruçavas a mim, olhava-te num plano de eu pequena e tu no céu, águas furtadas próximas de um sonho onde eu fechava os olhos e nos imaginava enroscados ao frio de um Inverno por chegar e os pequenos quadrados de vidro da janela a deixarem ver a noite da tarde a escorregar devagarinho sem nos importarmos com nada.
Tudo mentira, era Verão a pino e o calor encarniçava as telhas que desforravam o cómodo e da janela só me apontavas ponteiros apressados a vestirem-me o tombo da claridade.
Um dia não voltei. E tu não me chamaste. As cartas servem para jogar, estão arrumadas numa caixa, a tua pequena janela fechada e num V derrubado, altiva e medrosamente debruçada numa estória de um só plano em telhados perfeitos de carne viva.
 
 
 

(Portas & Janelas, Agosto-2013)

Todas as fotografias da Colecção Portas & Janelas são da autoria de Eduardo Jorge Silva

sexta-feira, 1 de novembro de 2013

7 Anos de Árvore*



Saltam os dedos um a um e contam-se sete, dizem, um número de sorte, cabalístico, para mim que prefiro os pares e nem tanto de algarismos sirvo o meu mundo nem dei por aqui chegar, só notei a
árvore a crescer, foram linhas e mais linhas,  foi a vida a viver e eu dentro dela, eu e a árvore, eu e as árvores das vidas, umas a subirem e a florescerem na estação própria, umas quantas a definharem, ainda outras abatidas.
A das palavras enroupou-se no tronco e ramos em verbo mais ou menos constante consoante a vontade da luz, nunca interrompido sempre livre e idêntico à sua natureza, vir quando apetece, voltar a campo de frutos mesmo que tombados pelo chão quando a mão tem ensejo de os agarrar, apenas passar e olhar sem manifesto porque há dias de noite que a copa se cerra e os olhos só querem adivinhar contornos.
Por enquanto afago folhas nas palavras marcadas que saiem por entre dedos, não as conto, deixo-as ir como vento que penteia a Árvore, acaricia o tempo de aqui estarmos as duas.



* sem esquecer a malograda Flor da Palavra
 

quinta-feira, 31 de outubro de 2013

Mudar




Desliza nas pequenas bolinhas negras entre verniz sangue que pinga das unhas a vontade da solidão no amarrar do nó da seda, apenas faltava o lenço para esvoaçar o que resta das lembranças do que aqui hoje fica, nada mais segue, para trás são quilómetros de ruídos e palavras obscenas porque não foram ditas, também as há assim.
Mas não há malas nem outra bagagem a acartar na memória, o mais é esquecer, pé no acelerador e de mansinho, o prego a fundo deixa marcas no asfalto, uma quase pele queimada no cheiro de lastro e quando se parte por muito bonito que se vejam nos filmes outros a lembrar porque lembram bonito, à séria só lembram feio e acham coisas como areia no deserto.
Partir a ronronar e como se fosse um passeio, seda no pescoço a esvoaçar, halo de 19 para deixar no ar o rasto de que talvez haja regresso, desconfiança da confiança de que tudo está como sempre esteve, afinal quem quer ir não o diz, vai porque fala consigo mudamente, porque se olhou e corajosamente decidiu o tempo de mudar.

quarta-feira, 30 de outubro de 2013

Entre fronteiras



A grande questão é dizerem-nos que estamos no mundo de cá, que pertencemos definitivamente ao mundo de cá e sem sombra de dúvida não transpusemos a linha para o outro lado, aliás esse risco nem sequer é invisível, é tão notoriamente saliente que pode ser identificado como uma patologia, portanto, descanse-se. Tudo real, normal, saudável.
A partícula do ressalto é sabermos que o traço não está totalmente preenchido, que há um pequenino momento em que este desapareceu e consegue passar-se para o outro lado. Loucura da loucura. À custa de se dizer eu não sou doido talvez se entenda que se é o mais lunático de todos. Ou então, condescendentemente se faça a vontade, é do bom senso que não de devem contrariar os malucos.
Mas se só do próprio há a sabedoria dos dois mundos, o saltar inconstante sem passaporte em visitas mais ou menos fortuitas em que o agrado se faz do melhor dos dois e se recolhem experiências para encontrar não respostas mas mais perguntas para explicações que acordam a meio da noite no sobressalto do eu, eus, coisa sabida sem se saber, mantos que se arrastam além fronteiras?
E depois... o fascinio do perigo. Mas também o juízo do perigo. Um dia, quiçá presa entre mundos.
 
 

terça-feira, 29 de outubro de 2013

Peneirar



Aos poucos e quase sem dar conta o dorso vai-se picotando em rede fina, tão fina como um tecido musselina preparado para coar um vinho antigo e separá-lo da parte boa da borra, permitindo a quem o manipula o aroma doce e os alcoois inebriantes que perdidos do oxigénio invisivel do cómodo, se hão-de achambrar num liquido quase mastigável de tão bom se degusta.
Não do pano falo, volto às costas, estas perfuradas, uma peneira perfeita num coador tornado que aos anos se deve e à importância devida que ao tudo e aos homens e mulheres se atribuem se destes a pena valer, que vai-se a ver o tudo é pouco e os homens e mulheres nem meia-dúzia se contam, mas é quanto baste, que de ciência afinal também o coração precisa e nas precisões, depois dos filtros aplicados, as costas não ligam mais, alargam-se e defendem-se muralhando lixos e patacoadas sem interesse, a maior das vezes muito ruído irritante que é melhor ignorar.
No fundo é isso, voltar costas e não passar cartucho a quem faz barulho, deixá-los entregues ao alarido e papelão, dedico-me à musselina e ergo o meu copo a quem é importante.
A Vós!


segunda-feira, 28 de outubro de 2013

Anúncio de uma dor




Espaços.
Sem miolo sem conteúdo sem pontuação para marca dos respirares e ainda assim cheios.
Plenos do que se não vê.
Latejares de uma dor eminente que se anuncia como um tremor numa imagem que não se atinge nítida mas se pressente má. Muito má.
Não venhas.
Não chegues que não mereço e não quero.
Paralisar.
Imitar a não-existência para fingir a passagem da dor. Ao largo. Parágrafos curtos e intermitentes como soluços que se aguentam no silêncio engolido do pulsar de múltiplos corações.
Quantos somos? Quantas dores?
Espaços preenchidos a sangue pisado e invisível. Tantas quedas. Braços abertos no espaço que se rasga no grito doloroso do volume aumentado.
Calor. Frio. Suor. Frio. Tremor. Mão. Espaços.
Silêncio.
Só resta a ferida a moer...
 
 

domingo, 27 de outubro de 2013

Tento



A minha vida está cheia de mortes. Suponho que não terei a exclusividade deste estádio que bem passaría a outrém, egoísta podem dizê-lo e com propriedade, mas a minha conta já está bem recheada e não é de lamento a razão porque o digo embora lhe sinta as machadadas conforme me caiem a uso sem acerto de profissional, vão batendo no osso e carne, é preciso é atingir, não há falha, não escapo, também não me ponho a jeito que o espectáculo fúnebre põe-me a bom correr, a doença a milhas e conversa sobre estas duas cose-me a boca saíndo de fininho.
A morte já me levou os meus das veias, vários amigos do coração, homens e mulheres que nunca tendo conhecido na pele sempre moraram em mim através das palavras, pela sua música, na sua integridade, pela arte. A morte tirou-me eus de mim. Nunca mais os vi, nunca mais me visitaram. Alguns despediram-se de mim porque sabíam que ela vinha.
Os vivos sabíam que a morte chegava.
E eu não percebía.
Não a conseguía escutar. Por mais que apurasse o meu ouvido que sempre foi tão afinado não conseguía ouvir passo algum a aproximar-se. E ela veio e executou a sua tarefa.
Não consigo entender porque razão ela chega quando ainda há tanto a fazer. Por aquele que ela leva e por aquele que ela leva pelos demais.
Sinto-me como se escorregasse lentamente e por mais que tente içar-me o terreno esboroa-se à medida que os meus pés se tentam cravar. Uma mão que não chega nunca ao topo, sempre em busca de uma outra que se ponha em linha e ao alcance da minha para finalmente me arrancar do precipício.
Tento tocar, chegar, viver.
Mas às vezes sinto que a mão que espera a minha é a da morte. E não a ouço.
 
 

sábado, 26 de outubro de 2013

(o meu) Outono




Manhãs, por entre cortinas que mal encobrem a claridade que à força rompe quartos e abre olhos preguiçosos que se ajeitam ao conforto morno do instante, só mais um, e vão analisando o escorrer do tempo pelas paredes inundadas do tempo sem instante, ainda mais um, calor das memórias douradas, folhas de outros livros, outras árvores, folhas sopradas a monte quando se espevita o instante em tempo contado, levantar já, manhãs de hora no descerrar das cortinas e no flamejar das árvores de frio despidas das memórias que vão amontoando folhas em cadernos de muitas linhas de nostalgia pela preferência dos silêncios e das cores e da luz mágica que à força de romper quartos inunda morna a tranquilidade dos instantes que se fazem Outono.

 

sexta-feira, 25 de outubro de 2013

Caiu qualquer coisa


 
Embrulho tudo e faço dos anos que te conheci uma bola pequenina que me caiba nas mãos e seja pudicamente secreta, não por mistérios mas pela maneira única com que te permitiste mostrar no sorriso, nos humores.
Caiu qualquer coisa, e um estrondo estilhaçou-me a recusa das verdades, quando não as queremos empurando muito, as evidências talvez se tornem apenas estórias e esfumam-se, desaparecem, nunca existiram, caiu qualquer coisa e o ruído foi tremendo, não foi algodão dirias tu, caiu-me o coração e o som que fazía cá dentro parou-se, digo-to eu.
Dói-me este barulho do silêncio caído de te saber a ir. Ido. Na bola pequenina e amachucada entre mãos que seguro ouço distinto o teu gargalhar. Esta noite hei-de procurar por ti no azul-veludo, deverá haver uma estrela a piscar-me o olho. Será esse o tempo de ouvir de novo o coração.
 
 
(a Adriano "Menino" Jesus)

quinta-feira, 24 de outubro de 2013

Coisas antigas



São coisas antigas, hoje frescas como se novata provasse de primeira vez o seu travo amargo, nada preparada para estes balanços e sacudidelas agarro-me quase assustada quase surpreendida na realidade ou no abismo da queda que se toma antes de se adormecer. Quero dormir, e a força da intenção é tanta que não consigo, um aperto na cabeça espreme-me idéias como borbulhas que se expurgam no pus para voltarem a fechar-se em crosta de reminiscências passadas, afinal memórias, afinal recordações, o que é de primeira são recalcamentos, fundos e escondidos à espera da luz do dia. Da luz artificial da lampada do candeeiro, ligo, que horas são, apenas 3, já quatro, o sono e a insónia, o sonho e os maus pensares, dilúvios. São coisas antigas. Hei-de morrer esta madrugada para acordar cansada na vida e ainda assim, caminhar. Correr e rir. E até esquecer.
 
 

quarta-feira, 23 de outubro de 2013

Ver outros



Assim que a imagem a tingiu na claridade do reflexo um halo desenhou uma moldura fazendo todo o espaço exterior ao redor desaparecer, as vozes sumiram-se, a dela sussurrou-lhe entre os cabelos como estás bonita e sorriu e como um eco voltaram o som dos demais a repetir como estava linda, como ficava bem, uma pose quase rígida na tentativa de imortalizar a diafana contemplação de si mesma no instante da constatação, a dúvida pela vida e a certeza no segundo de toda uma mentira derrotada agora e ali à sua frente em vertical verdade, linda, não ouvira?
 
As verdades do espelho.
O mundo transposto na dimensão aquosa-sólida que exibe transparências visiveis ao reflectido, opacidades para olhos de terceiros, realidades virtuosas do lindo, realidades virtuais do distante observador, quantos mundos nesta verdade desdobrada na admiração de si próprio, em que o espelho se deixa penetrar pela imagem de narciso e catapulta os outros para o papel da respiração, materialização do espelho, objecto frio e quebrável ao estalar da fantasia.
 
Assim que a imagem antiga voltou à claridade do reflexo no espelho uma escuridão apagou-lhe os olhos, regressou ao seu tamanho, perdeu a voz que lhe sussurrara entre cabelos, só a pose rigida se manteve por não saber o que fazer perante pessoa tão triste que a si se apresentava.
 
 

terça-feira, 22 de outubro de 2013

O bater do coração (vinte)


 
 
Nunca ofereci nada a ninguém que eu própria não gostasse. Sentir-me-ía traída no gesto de dar que é um dos grandes prazeres da vida. O retorno é a observação da felicidade, do brilho dos olhos, da coloração das palavras, da falta destas, das mãos quentes nas nossas, do abraço, do silêncio. Que é sempre tão enorme e gratificante.
Escrevo para mim, por necessidade. Quantas vezes já o disse?, perdi-lhe a conta às repetições. Os que de mim saiem não são personificações de mim nem figurinhas inventadas para desempenharem este ou aquele papel numa história. São outros independentes da minha vida e carácter, com pernas para andar e solidão para moer ou companhia para amar, nada me devem, nada lhes quero. Exigem-me mãos e tempo, empresto-lhas quando me batem à porta, não lhes dou o meu nome, não os baptizem de mim porque não acodem.
Terão eles sim, as suas personagens inventadas como eu tenho minhas no tempo de ficção. É esta a nossa semelhança, é esta a nossa diferença. Como tantos que escrevem por aí fora. Para seu contento ou de outrém, que os há.
Basta-me satisfazer o que escrevo, essa é a minha mola, a minha oferta. Mas não dou o meu nome aos meus eus.
 
 


segunda-feira, 21 de outubro de 2013

Olhar com Vista sobre o Rio (9)



Vou-me chegando. Rebelas-te que nesta hora de lobo és tão fera quanto hoje chego, faminta, presa e predadora, a devolução a terra será cuspida sinto-a, uma humilhação como tantas já me fizeste e nem por isso te engano o caminho de vez no arrepio por ar que bem o merecías.
 
Queres vingança na solidão do desamparo e berras no cais o desembarque violento atirando o cacilheiro e gentes metidas dentro, tudo ao mesmo tempo, gemendo aço e madeiras, pedras e águas, lamentos e preces e eu de soslaio nem abro a boca, mareada.
 
Eu volto. Sem sorriso. Mesmo de embalos não hei-de fechar os olhos e sonhos só se for com outros, que rios conheço uns tantos, tão ferozes como tu. Bem vês... ainda aqui ando.
 
 
 
(in Olhar com Vista sobre o Rio, 2012)

domingo, 20 de outubro de 2013

43 segundos




Um tule finissimo desliza-lhe pelos dedos dos pés serpenteando como água de um ribeiro sem tino, vem puxado por mão invisivel de um sonho que vem tentando afastar à custa de se agitar molemente entre fronhas de algodão que a sufocam e cabelos longos que não sendo seus há muito aspira que lhe cresçam até meio das costas por alturas onde a curva do dorso se ergue como um monte que se adoça para arquear a roupa adivinhando nos olhos fechados a forma feminina, mas hoje o incómodo da noite escorrendo paredes onde dedos raspam papéis de miosótis que lhe irritam a insistência repetitiva do motivo em tudo assemelhando-se a labirintos de onde não consegue achar saída e até o peso das cobertas amachucando seios e receios de sufoco pela asfixia de monstros que espezinham a qualquer instante que não há meio de chegar, deixam-na exausta, confusa e desnorteada, presa em tules de mata-moscas melados e agarradiços que a levam a gritar por socorro.
 
Geme. Uma coisa fraca e distorcida.
 
Aconchega-se. Puxa as pernas a si, esconde as mãos sob o queixo e leva o polegar à boca. Suspira. Adormece.
 
 

sábado, 19 de outubro de 2013

Aprender


 
Iço velas, aproveito o vento e deixo que a mão frouxa se abra para libertar a bússola, não posso permitir-me à sabedoria de conhecer o porto onde amarro cordas, toda a sapiência é aprender. Da outra mão faço uso à força e seguro-me na madeira dos sentidos, nunca me senti tão alerta e viva como neste instante, animal que sou para quê negar a minha fome, vou roendo céu à medida que rasgo olhos para vencer medo de avançar no fio que me molha a boca e o nariz.
É tudo novo.
Tempestades que me deitam pelo fundo e que tento erguer, a quatro, de pé, em vão, de borco, aprendo que o chão me é próximo e firme. Um dia receber-me-á, um dia o céu sem pedaço comido assiste. Azul.
Enrolo velas, dedico-me a elas ajeitando-as no seu dormir e admiro o céu tão leitoso de anil brando enquanto me embalo na mansidão que o vento permite. Dou as mãos, um encaixe de concha que guarda as linhas dos meus segredos, pérola rara, o que vou aprendendo todos os dias.
 
 

sexta-feira, 18 de outubro de 2013

Poderes




Bem podem torcer o nariz, abanar a cabeça e dizer não a ver se não vem que vem, já lhe senti o cheiro e quase a toco antes de chegar a humedecer as palmas que vou cerrando no punho para me alegrar na antecipação calada e só minha do gosto que lhe tenho e lava lençóis de memória má de línguas embaraçadas em palavras escolhidas para fabricarem punhais.
Vem que vem, primeiro docemente como se pó fosse assentando em cabelos e ombros, largando estradas por onde a mão incomodada passa afastando o importúnio na veste e depois trocista, debulha-se, observando o mais rápido na fuga e resguardo. Não me movo, recebo-a de olhos fechados, de todas as vezes a primeira, de todas as vezes o punhal nas minhas costas a cravar-se pelos que correm e gritam doida.
Chove.
Um som desconsolado e lastimoso propaga-se pela água que tomba a direito, uma evidência do vai-te embora sem força para o exílio. Condenam-me, talvez a culpa seja minha que tanto a desejei.
 
 

quinta-feira, 17 de outubro de 2013

Calmarias


 
Sem dar conta do tempo que passa permite que os outros lho vejam. Parece, pois, alcançável. Ainda agora se amofinava cinzento num arroxear de nebulosa tristeza pela esquecedura do chamamento ao grupo e no entanto, goza neste instante desse saboroso quieto estar em que tudo parece imóvel e parado no ar pronto a assentar tão logo reinicie o seu ritmo sincopado. Não mudou, amadureceu-lhe a tubagem do fôlego com que se ía às coisas, quer de ira quer de paixão, calejando dores que as dores ainda lhe doem mas aguenta o descompasso, sangrando que ainda é vermelho mas o fogo serve para se aquecer quando se apaixona pela beleza, pela saudade, pelo amor.
 
 

quarta-feira, 16 de outubro de 2013

[exor]Sismo




Aproximou lenta e cuidadosamente os dedos, as palmas, silenciosamente, e à medida que nada acontecía  a coragem foi-lhe tomando os movimentos e o esquecimento descurou-lhe ágil o receio inicial para se lançar em vertigem desenfreada num desfiladeiro que parecia atingir um fim ilimitado.
É bom quando assim acontece, quando tudo se desata e livremente se despenham idéias sem observar cuidados e não atender a outros sons que não o grito libertador da adrenalina, uma explosão de sangue louco a bombear o músculo e a corar facies, filmes que passam tão rápido que os olhos os perdem no singular pestanejar dos frames como luzes que se acendem e apagam, oculto e descoberto, sim e não, polos de um só que permitem energia suficiente para iluminar um único gesto.
A escrita como exorcismo.
Abalos interiores ou fracturas que se ajustam através da palavra escorrida, corrida.
Esgotar. Serenar.
Aproximou lentamente os dedos e nas palmas sentiu que as linhas escritas se havíam infiltrado na pele por tanto lhe haverem nascido de si. Suspirou iluminando-se.



terça-feira, 15 de outubro de 2013

Ninho



 
De vez em quando volto aqui. Ao ninho que o Trilitistar fez e me ofereceu. Talvez porque fica numa ramada alta e dificil de à mão o atingirem e no descuido da vista habitual são só folhas e gravetos, de mim nem nada, tanto melhor. Sossego. Hoje precisa-se. Até por dentro, ide. Mesmo o vento e um ssss que haja de brisa levantada já me soerguem outros ruídos que precisam baixar.
Enrolo novelos de pensares como caracóis de cabelo que se encanudam nos dedos distraídos quando se mastigam por muitas vezes até o fixo das pupilas arderem até às lágrimas, mas tudo o que sinto na boca é a palavra cansaço. Não quero mais. Não quero mais trepar até este alto para me encaracolar queixo a pés, unir o meu sentir soldado como uma argola fundida sem escape, sem grito, sem vento. Quero sossego mas de paz.
Quero paz de contemplar outras árvores nos seus cocorutos como caminhos verdes que possa saltar de copa em copa ou simplesmente aninhar-me neste cesto de Tri, fechar os olhos e imaginar que tenho asas e que sou livre para voar de verdade.
Sem nunca me cansar.
 
 

segunda-feira, 14 de outubro de 2013

Click


 
Semana útil, debutante, abram-se as horas e as luzes, lá fora a madrugada ainda canta de galo mudo que é de respeito os minutos até sessenta e muitos e o importante é agora entre quatro que se fazem redondas para abrigar costumes na rotina do braço esticado para o cabide puxado até ao peito.
Hoje vais tu, diz à menina do espelho e a menina do espelho calada de cabelo em juba espreita a moldura da prata que a prende, não pode escolher, só sabe que hoje vai ela.
Vai de vestido, vai de sapatos, vai de cabelo magoado entre ganchos que suspiram entrançados nos segredos que trouxeram aos ombros do vestido guardado.
É uma figura que se vê de frente, pendurada por um cabide puxado ao peito. Vai e funciona. Como um realejo a que se deu corda para tocar pelo tempo da troca de uma moeda. Depois perde a força, o vestido ganha vincos, amarrota-se, os sapatos cambam-se, desprendem-se os ganchos, solta-se a melena, quer a menina calada à viva força ganhar voz e ser outra. Ser ela mesma.
Cerra as portas do roupeiro. Tudo arrumado.
Click.
Onomatopeias de um coração que chegou ao sitio.

 

domingo, 13 de outubro de 2013

Crónicas de um Bazófias - 2ª




A primeira vez que escrevi sobre ele foi em 2009. Contrariamente a meu hábito, rabisquei várias notas de seguida que nunca cheguei a concluír, talvez porque naquele tempo a recordação se abrisse como uma ferida, talvez porque fresca de memória não a quisesse perder, talvez porque a felicidade de reviver Coimbra me guiasse a mão nas letras, talvez porque a intenção fosse a publicação e depois a aguasse pelo caderno, talvez tudo isto seja o que eu considero agora e não tenha o menor cabimento. Os dias correram inexoráveis.
 
Certo mesmo, é que não principio nada sem levar a termo e sejam decorridos 4 anos desde a 1ª postagem sobre o Mondego, irei cumprir a intenção a que destinei as Crónicas do Bazófias naquele tempo.
 
É também e finalmente, uma questão de justiça para o Rio que me deu a felicidade primeira, que me ensinou o fado coimbrão e as repúblicas, a ira e a mansidão, a descoberta da dança e a descoberta de mim no espelho. Que me ensinou a escutar estórias de velhas lavadeiras e histórias de catedráticos.
 
Que seja eu outra vez.

 

sábado, 12 de outubro de 2013

Portas & Janelas - Esboço nº4



 
Há um momento em que o ruído deixa de o ser e se torna uma parte de si mesmo. As patas e as asas esfregadas ritmadamente provocam uma fricção aumentada à lupa ecoando como um instrumento que se agita para enganar o esmagamento do redor.
Senta-se.
Traça a perna e apoia o queixo sobre os dois braços em cruz ao peito, mãos sobre os ombros, atira a vista para o longe, perdeu-a. Quer achar o som das cigarras mas já não o encontra e também o olhar não se devolve na força do pedido porque o pensamento sufoca-se na solidão.
Abraça-se mais. Mais.
Não é justo num sitio de dois lugares só haver um ocupado e uma multidão de solidões a empurrarem-se na disputa da concorrência para justamente serem o mais importante. No peito, na alma, na essência. Havería de ser uma conversa na 1ª pessoa do plural e não um solilóquio. Cego. Afinal deixou tombar os olhos porque nada do que alcança tem interesse para contar. Contar. Rumina. O que lhe cai para dentro de novo chumba-lhe na cruz dos braços.
Ergue-se.
Há janelas que tiram o ar.



(Portas & Janelas, Agosto-2013)

Todas as fotografias da Colecção Portas & Janelas são da autoria de Eduardo Jorge Silva

sexta-feira, 11 de outubro de 2013

A verdadeira



Sou eu, apenas eu diluída em tinta grossa azul e um pouco aguada de palavras que se vão acumulando, fartas de tantos grupos silábicos, algumas invenções arranjadas a sangue para exprimirem o entendimento das dores do que está partido por dentro e não deixo ver, teimo e não deixo ver, nunca perceberíam o que arde, afinal até poderei ser outra a dizer que quero dar-me a conhecer e no entanto, a verdadeira dança, roda, rodopia de pés nús sem encontrar vidros nem bagas de carvão incandescente, tudo lhe é macio nos golpes da música interior.
Sou eu e sózinha eu que amo mais e quero mais mas não sou de ninguém e muito menos de mim própria, pois se tantos de mim roubaram as dores e deixaram a que dança de pé descalço.
 
 

quinta-feira, 10 de outubro de 2013

Campo de palavras (12)



 
Há algum tempo estive presente numa tertúlia literária onde se discutíam alguns textos de vários autores, sendo um deles de minha mão. A minha participação foi apenas como mera espectadora anónima sem qualquer intervenção no debate.
Foi assaz curioso - e apenas refiro o que toca ao que por mim foi escrito - observar a dissecação feita, camada por camada, ao texto analisado, encontrando-se uma intenção e propósitos que eu própria desconhecía. Ou seja, nunca tive esse motivo. Aliás, o que estava escrito era o que estava escrito, não quería outra coisa. A obturação do texto foi de tal forma profunda que entraram nas capacidades do seu autor, ou seja, eu.[Eu ali no meio, alegre, deixa cá ver em que é que isto vai dar]. A verdade é que rechearam e cobriram o autor de qualidades e frustrações [Eu] que se traduziram na forma e conteúdo da escrita produzida. A partir daqui as opiniões divergiram um pouco, formando-se três grupos na generalidade, o que significa que do macro partia-se para o estádio pessoal, a "minha" leitura.
Foi uma noite divertida, diferente, curiosa e enriquecedora.
Do que se escreve e do que os outros [nos] lêem. Da intenção do autor e da recepção da mensagem, da simplicidade do verbo e da complexidade das palavras como alimento digerido.Aquele que escreve e o público e como o público é o indivíduo.
 
 

quarta-feira, 9 de outubro de 2013

Maria



 
Sempre o mesmo.
Por cada vez que ali passava e fazía o redondo da escadaria na curva que a parede oferecía ao sinuoso da subida ou descida, acompanhada pelas riscas do papel de parede a destacarem os quadros com vários ilustres do clube a vista ignorava-os para se apontar apenas a um que o chamava. Não sabía porquê, nem razão havía pois era de todas a tela menor, a moldura mais simples e perguntado sobre a identidade e feito, ninguém tinha história certa para contar, muita invenção pensava, algum protegido de um importante membro que nada fez e resolveu pregar uma partida para o futuro.
Mas ainda assim a dúvida, ladrão do espírito, levava-lhe os passos parados e um dia, de novo na contemplação, um velho parou e a par sorrindo admirou com ele.
- A olhar para a Maria?
Quem era Maria? A filha do caseiro que tinha salvo um dos membros do clube de uma armadilha do couto, evitou que ficasse sem uma perna, ele eternamente grato, ela nunca quis nada em troca, ele arranjou-lhe aqui forma de o demonstrar, tela pequena e singela perto da dele, não há aqui permissão para o sexo feminino.
Sempre o mesmo.
Sempre os olhos a ficarem presos na armadilha do quadro logo na curva sinuosa que a escadaria oferece quando os passos se lhe aproximam. Desta vez um pouco mais. Mais ainda. Tão perto que Maria colou-se-lhe à pele e voltou a ser livre.



(in Telas, 2009)

terça-feira, 8 de outubro de 2013

O livro negro dos homens (oito)



Do belo. Do prazer. Que da minha visão kantiana nem todos poderão concordar, o que aceito e até me sento no prazeiroso esperar que daí cheguem conversas de debate, a cada um o seu olhar e este defendido nas palavras que souberem salivar. Não há apoquentação pela diferença, as falhas do gostar não terão propriamente a ver com uma estética antes com uma perspectiva individual. E que não se particularize com microuniversos, já que de bom-senso, qualidade, originalidade se fala e o mau será sempre mau, independente da corrente.
Mas a ignorância dos homens, a sua completa e abstracta estupidez na destruição da arte, seja ela em qualquer das suas manifestações, arreda-me da minha consciente inconsciência do deleite para o primário ataque animalesco, sinto-me roubada, tiram-me o futuro amputando passados.
Da cultura. Da arte. Do que fica do belo em história perdurará do seu autor como um povo. Do que fica destruído do belo pelos homens será o negro destes como um homem só.


(Tejo, 01-03-2010)

segunda-feira, 7 de outubro de 2013

A tontura



 
Levou-a pela mão com cuidado, os olhos fechados a pedido e o sorriso sempre a perguntar se já podía abrir, ainda não, um pouco mais e ainda mais uns degraus a subir um pé à frente do outro, tantos que parecíam levar ao céu de um ar morno e doce, cheira a açafrão e canela e a gengibre, uma tontura leve, é dos olhos tapados, um pouco mais, onde me levas tu já estou a ficar aflita, já podes.
O estalo da luz fê-la recuar, abanar, levou as mãos ao varandim, sentiu as cores a atacarem-na e a baterem-lhe no rosto como asas que se enxotam e ficam presas no cabelo, dobrou-se, o chão subiu-lhe até às pupilas e faltou-lhe o ar no imediato vazando-se como uma onda recolhida que se prepara para ganhar força para o derrube, onde estás, estou tonta e não consigo andar, cravava os dedos até se embraquecerem nos nós e vergava-se em duas pendurando o oiro do cabelo, o fundo a comer-lhe as faces no ladrilhado que se misturava ininterrupta e caleidoscopicamente entrando pela boca e nauseando entranhas, onde estás, leva-me daqui, e tudo subía e descía vertiginosamente sem lhe dar espaço de acerto, ohh é da emoção da surpresa! sem solidez de pé, as mãos suadas a escorregar no descompasso da respiração já gritada não! tira-me daqui que caio! e o riso dele ecoado como vários que rissem à vez de muitos cantos, mais, cada vez mais que se rasgavam em outros e lhe fazíam tremer pernas e tórax como a pele de um tambor rufado e das forças não restando coisa que não fosse a sua vontade, libertou as mãos e entregou-se.
Cheira a açafrão, a canela e a gengibre.
 
 
 
 

domingo, 6 de outubro de 2013

Olhar com vista sobre o Rio (8)




À medida que me empurras para o outro lado e te escondes fechando a existência da minha margem alargando medidas como se mar foras, a saudade de me deixar metade de lá aumenta, um pouso incerto por o não ver nos olhos, a essência do sentir chumbado no peito.
 
Por todo o dia hei-de procurar-te como sinal de estrada onde se regressa a casa e acha caminho, uma aflição se te encontro ainda embrumado e sem tempo de me levares - porque não me queres? - a mão em pala se o sol contigo em parcería mesmo a pino de Janeiro, cegam o sentido do Sul - o meu Norte prometido - e brincam a platinar o meu dedo apontado além.
 
Já noitinha, acendes um sorriso de luzes para me guiar - pirilampos do Tejo - fecho os olhos, sigo de frente para a minha margem, um leve dormitar, não sei se sonhei. Achei que te fechavas para ninguém saber de ti, só eu, só eu e esta saudade.
 
 
(in Olhar com vista sobre o Rio, 2012)

sábado, 5 de outubro de 2013

05/10/1965-09/01/2013



Hoje como em todos os anos dirias que querias ir ver os bichos, nada de bolos de aniversário ou soprar as velas ou estares fechado em comemorações que nunca te disseram nada, fosse a tua ou outras tradições.
Andar solto e rápido,  cantar e  rir ruidosamente, sempre dificil acompanhar-te, sempre a trepares ao ponto mais alto e mais perigoso no desafio dos mares interiores entre a revolta e o desespero.
Hoje como ontem pensei em ti.
Ouço a tua voz. A de menino a dizer que quería ir ao Jardim Zoológico. A brincarmos os dois travessos às palavras e tu a dizeres que gasolina era uma das tuas favoritas. Crescidos, a cantarmos em dueto.
Ouço a tua voz todos os dias. E chega tranquila.

 

sexta-feira, 4 de outubro de 2013

quinta-feira, 3 de outubro de 2013

A pele das palavras



Entre os passos das letras e o verbar da dança, qual dos dois ganha na medida maior não sei.
Amor primeiro, para sempre o que me inflige o coup de pied e passados tantos anos, ainda me enviuza o andar, uma insconsciência dificil de emendar, talvez até mais reparada no gesto de mãos que tantas são as vezes mo notam.
Mas tenho para mim que esse florear me chega com as palavras, uma imitação constante de agarrar a caneta e desenhar, seja o verbo seja o que vejo, tosco e a traço grosseiro que da arte de reproduzir o que os olhos registam, sou a do desenrasca, ajeito-me e nada mais. De escrever gosto, pratico porque me enche e preciso drená-lo para serenar, para aliviar passos que se acalmaram em pernas traçadas ou corridas desenfreadas, pele de palavras, sentir a palavra como a pele que me era quando bailarina. E nada fica tão fantástico como essa sensação de atravessar o papel branco como um palco que se domina a solo em que a tinta desliza no relevo das letras minúsculas e maísculas como piruetas e saltos, alternando pontuação com arabescos para agradecer no grande final com um ponto a encerrar.
 
 

quarta-feira, 2 de outubro de 2013

As conversas são como as cerejas, sobra o caroço (4)



 
Final de tarde quente, final de semana útil, final de terra à beira do rio, final de bebidas a refrescar o que resta da força nas gargantas entre amigos. Ela tira os óculos de sol, tapa os olhos com as mãos, empurra as pálpebras, esfrega, pestaneja, estica, pestaneja, cerra com força, abre até esbugalhar.
Os amigos observam calados as movimentações.
Sente-se compelida a oferecer uma legenda a tais figuras.
- Cada vez estou a ver pior. Deve ser de tantas horas no computador ou vista cansada, não sei...
Continua os exercicios.
Continuam a olhá-la sem proferir palavra.
- Convosco não acontece?
Ainda silêncio.
- Acho que estou a ficar ceguinha... sinceramente!
Um amigo bate com o copo no tampo da mesa após sorver o restinho da bebida.
- Querida, cão já tu tens, eu ofereço-te a bengala!
 
 

terça-feira, 1 de outubro de 2013

Portas & Janelas - Esboço nº3



Ah simplicidade...  Basta pintar os olhos e o universo é da cor dos olhos, uma maquilhagem a condizer com os humores do tamanho do pé ao cabelo esticado e tudo se completa descartando o absurdo das outras perguntas de como e qual a razão e a necessidade de justificação para todas as causas sendo a absoluta o querer-se.
 
A utopia é a verdadeira concepção imaginada do impossível, um materialismo criado pela forma de gente para designar coisa a que despeitados não lhe concedem mais tempo porque a alma se cansa e afinal sonhar dá trabalho, mesmo entre quatro paredes exige treino e afinco e o querer e o  inventar acabam por ser a revelação da essência da cor, do dizer, das pinceladas de outros que não tiveram tempo no tempo e regressam para sussurrar como misturar arco-íris de letras ou verbos inconjugados.
 
Aos dotados que uma janela se rasgue e sopre esse universo fantástico numa invasão de território bárbaro, surpreendente, agredindo os sentidos em manchas coloridas como se novos mundos se conquistassem num simples espreitar.
Ah simplicidade, olhar, olhar e ver.


(Portas & Janelas, Agosto-2013)

Todas as fotografias da Colecção Portas & Janelas são da autoria de Eduardo Jorge Silva

segunda-feira, 30 de setembro de 2013

Projecções



 
Fecho a porta devagar, nunca gostei de fazer barulho ao trazer a porta atrás das costas puxada pela mão deixando lá dentro um rasto de mim, uma quase eu, uma quase voz, ainda uma que fica nos abraços das mãos que apertam espáduas e se desprendem na mão que se fecha à pega de um pedaço de metal frio que tranca num trinco para calar sons, abraços, segredos, sussurros.
 
Agora vou, tenho de ir, não quero mais palavras nem que venhas seguir-me nem acenos ou coisa de fatalidade, não vou olhar para trás para saber se me olhas por isso não olhes, dói mais assim para doer menos depois, podía bater com a porta e acabava-se tudo num estrondo para se sossegar no silêncio que o come, mas a sombra que me fica, o decalque da que fui ida esperam-me quando a saudade te for leve.
 
O Outono aguarda-me.
 
 
 
 

domingo, 29 de setembro de 2013

Marcas para não esquecer



Cada ramada arrancada, cada ramo que foi levado, cada fruto comido e saboreado à sombra ou à morna claridade entrecortada da folhagem deixou marcas, cicatrizes, nódulos altos e rugosos que fazem história e me lembram momentos. Uma espécie de régua de crescimento que permite contar alturas, agora estava aqui e agora estavamos aqui e agora ríamos e aqui prometías tudo. Tantas promessas... Não gosto de promessas. Nada. Nem de juras. Nada mesmo. E quando me dizem que vão fazer qualquer coisa, seja lá ela o que for fico sempre a contar que o façam, sem promessas e sem jura. Se tiverem intenção de o não fazer, apenas o dizer para me agradar, não façam. Agrada-me mais que o não digam, assim com nada conto. É que a árvore mesmo sem ramos e folhas continua a crescer e do meio para o alto sempre despontam novos ramos e com verde folhagem que destes em própria altura, haverão de despontar em flor e fruto e saciar-me. Nunca me comprometi com a árvore mas nunca lhe disse adeus.
 
 

sábado, 28 de setembro de 2013

Replicare



Propago-me como ecos gritados em montanhas à espera de um retorno que se espera sejam vozes verdadeiras de gémeos perdidos que nunca se verão e no entanto sabem-se por aí porque se escutam, querem-se numa dúvida convencida dita e repetida à força que acaba por ser história e depois lenda porque se devolveram no som escutado, uma partida torpe, a voz que vai e regressa em menor escala.
Não há outros escondidos, procuro-me na identidade libertada, autorizações àparte que de mim não a precisam e nem a demandam, tomam rumo pela montanha, conheço-os mas não são mais de mim.
Já não precisam do original, são eles o verbo tão primeiro e sejam o grito ou o eco, a graciosidade com que o fazem ilude-me na voz a replicação do que ouço, quem chamou quem, quem sou eu aqui, a do topo do monte de mãos em concha ou a devolução resumida até se apagar e o silêncio encher-me a garganta.
 
 

sexta-feira, 27 de setembro de 2013

Mayday




Cá vou eu, preparem-se, espero que estejam prontos a receber-me e a prestar-me auxilio, vou nas últimas, um fio de sopro atirou-me na esperança de me saber quase perto, preciso-vos na urgência de quem nada mais tem, larguei tudo o que me pesava e atrasava na corrida e segui descalça para rápido vos tocar à certeza do real, quente e palpável, de distância comi muito e empanturrei sentidos o mais nos olhos e na lembrança do dia que agora chega, quero abraços, quero apertos, quero chão do mesmo chão e loucura de não saber dizer, boca cheia de palavras que se atafulham de vontades de ser a primeira a saír e se revela no silêncio parado e suspenso. Cheguei, estou entre os meus.
 
 
 

quinta-feira, 26 de setembro de 2013

Não sou do contra mas gosto de chuva



 
Antes de se ver já se sente, fareja-se, imagina-se o som estalado quando pisa a terra e chega forte. Veio mansa. Tímida. Quase como um pó que incomoda e se sacode deixando um rasto molhado na palma da mão aos tolos que pensam que a sua quase invisibilidade é apenas um estado passageiro que lhes atraiçoou um pedaço do dia.
Eu quero-a e peço-a, condenada pelos demais que me ostracizam pelo gosto invulgar e me imaginam em corridas fortuitas de jornal à cabeça e queixume pendurado nos lábios mal ela desponta, já disse, quero-a, agora que venha à séria e liberte o cheiro da minha recordação no solo quente e alcoólico que racha aos primeiros pingos e depois se empapa em lamas escorregadias.
Intermitente nas chapadas de vento, dá-se a ver e afasta-se, toca-me e seca, um tira-gosto que me acelera o apetite e dá espaço ao verbo.
Hoje há música, hoje danço.
 
 

quarta-feira, 25 de setembro de 2013

Achados



Tinha serventia mais de adorno do que do substantivo a que fora criada e a verdade é que no dia a que dera assento não lhe cuidaram a fragilidade e partiram-lhe um dos pinos das costas. Deixaram-na a um dos cantos, sitio habitual de estar, na diagonal como enfeite a fazer contorno entre o cadeirão de orelhas, robusto e alargado e o móvel de cerejeira, altivo e encerado. Mantinha uma pequena almofada de veludo macio ao alto a encobrir-lhe a mazela, e à distância era uma bonita cadeira de torneados, lacada e dourada que não perturbava a decoração e dava sempre jeito para uma visita que não se esperava quando os lugares estavam ocupados.
Na realidade, quando tal acontecia todos se precipitavam a gritar Nessa Cadeira Não!, mas não se explicava mais além e só entre quatro paredes se refería a tal objecto como a cadeira velha, a cadeira partida, ou em dias de contemplação como a cadeira de palhinha ou a cadeira lacada. Não mencionavam sequer que o encosto tinha sido partido numa festa de comemoração dos 18 anos do rapaz da familia. Que mesmo de pino quebrado tinha servido de assento a uma noiva para várias poses de retrato. Que naquele canto se sentaram de rosto entre as mãos, à vez, filhos que não voltaram a ver os pais. E finalmente um antiquário que apontou Tiffany e a levou para sempre.
 
Nessa noite em que foi despejar o lixo e viu uma Tiffany ao lado do contentor, apurou a vista e levou os dedos aos pinos do encosto. Quase sorriu. Quase ouviu palmas e gargalhadas e um filme rápido passou-lhe trazendo à pouca luz dos candeeiros da rua uma iluminação da memória que julgava apagada.
Procurou a cicatriz no sitio partido. Nada achou.
 
 

terça-feira, 24 de setembro de 2013

O bater do coração (dezanove)



 
Gosto do sabor da surpresa. O descobrir sem suspeitar que me preparo para o fazer, não haver indícios que me encaminhem à adivinhação ou ao mais leve faro sobre. Já falei aqui sobre os bónus da vida, os que de quando em vez me calham em sorte. Essas surpresas e esses bilhetes premiados são a mesma coisa. Nada de materializável ou complicado, a maioria das vezes só eu as encontro especiais, para os outros serão banalidades ou até algum desvario acrescentado de minha pessoa.
Porém, as surpresas maiores e melhores são aquelas que estão misturadas ao alcance da vista imediata, mimetizada, uma camuflagem dificil de desatinar quando os olhos e o ouvido não quer ver e escutar.
E se se quiser ouve-se, aos poucos, depois melhor e cada vez mais distintamente um compasso diferente do ritmo comum do coração escutar-se-á.
E a clareira abre-se mágica, brotando uma árvore imensa de fruta fresca.
 
 

segunda-feira, 23 de setembro de 2013

A outra que vá



 
Não custa, levanta-se bem, alerta e sem remelas embora de bico fechado e sem rodeios na direcção, tudo em ângulos muito direitos, as costas muito direitas, só se adoça para os bichos, a paciência foge-lhe para um saco que há-de transportar como carrego a mais na bolsa a destoar dos sapatos, nunca na regra da moda, figurinos só os seus e ai de quem a contrarie pela manhã. Cinzento, negro, fosco, baço, opacidades de mundos impenetráveis que se recusa explicar pela falta de mistério e essa já é explicação que chegue.
Não custa, segue por dizer que não segue e no tempo da batalha já chegou, sentou, coloriu os olhos, a boca, o tom de voz, os trejeitos de si e de outros que imita para ter vontade de rir sem ter vontade de estar, inventa vontades e vai esquecendo o que custa. Se é para estar, então que se ocupe espaço, que se alastre como um pingo de tinta a empapar um mata-borrão rosa, uma mancha larga e gorda que incomoda e não se esquece. É-se.
Custa regressar e encontrar quem mandou ir. Colar a de dentro à de fora, entrar pela derme de quem sabe estar à espera para suportar peso e segredos e lixo e chocalhos e enganar-se no semblante da representação. Dormir dentro e acordar partindo sem ter a chance de olhar para trás e acenar até logo a nós mesmos.