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terça-feira, 30 de setembro de 2014

Cotovelos



 
Alguém me escrevia hoje que tinha pendurado um sonho, pareceu-me uma coisa inesperada, um prego rombo martelado com uma pedra na emergência da situação, e os dedos feridos na pressa de terminar a tarefa e seguir caminho mancharam a parede tingida de cal muito branca e rugosa. Furou-se o papel do sonho, um fio de vermelho a anunciar eu estive aqui e tenho um sonho, espera que eu volto, não te deixes romper nem roubar, espera-me, se o vento vier balouça de mansinho mas adoça-te à parede, eu volto para te agarrar.
Li as palavras duas, três vezes, amparei o rosto às palmas das mãos e  pousei os cotovelos sobre os joelhos.
Procurei pelos meus sonhos e achei logo ali muitos, uns quantos de igual pendurados, com marcas de feridas a sarar de tanto tempo havia passado, outros caídos e rasgados sem préstimo de leitura, ainda um e outro que deixaram de ser, soprei-os.
Li as palavras de novo e pensei que a vida não pode interromper o sonho pois ser capaz de a sonhar já é um tanto, outro universo.
 
 

segunda-feira, 29 de setembro de 2014

C782 - Amizades




Ordeiramente, em fila, respeitosamente, com salvação alguns, outros de sorriso incluído, vai-se ouvindo um som idêntico a um relógio de ponto à entrada de uma fábrica, validam-se pontualidades, há quem saiba os horários na ponta da língua e tire disputas com o funcionário sobre um minuto de atraso ou de avanço, vamos lá a ver, arrancar antes da hora? Depois?
Já no assento e agarrados à pega do banco da frente para evitar ser catapultados, trocam-se experiências sobre motoristas rigorosos e horários desregrados, curva e contracurva, metade do diálogo perde-se no soluço dos buracos e no pedido das repetições porque nada se entende e no final de dez minutos de trajecto a gritaria é tanta à mistura com os motores da viatura que se pressente estar à assistir aos Canhões de Navarone ao vivo.
O entusiasmo da clientela gera o desagrado de uns quantos mas o fascínio de outros, apetites de quem deseja partilhar as suas próprias informações. E daqui nascem novos conhecimentos.
No dia seguinte encontram-se, cumprimentam-se, sorriso aqui, aceno ali, junta uma palavrinha, uma concordância, confessam o mesmo infortúnio e em menos de um fósforo fazem-se amizades por anos.
O destino escolhe caminhos estranhos sem dúvida.



(in As fantásticas aventuras do C782, Agosto 2014)

domingo, 28 de setembro de 2014

Fds, Planaltos, Retiros&Outras Cousas do Evitar para os Demais


 
Enfartada da coisa do mundo, confessadamente, dos homens igualmente na mesma medida e acrescento-lhe a minha pessoa que tomara eu pudesse arrumá-la no armário a mais os seus remoeres de profissão que não despegam, inferno, obsessão de sombra perseguidora, resolvi ignorar-me e entrar em clima de greve.
Quem quiser comer que coma, que faça por isso, hoje eu cozinheira não venho, nem para mim, levo à boca pão que alguém há-de ter socado e amassado, cozido e vendido e de bebida, água, nem que seja do alto.
Engomadeira, mulher-a-dias e afins nem pensar até porque - dizem- é dia santo, podía fazer-me mal e como não sou crente e até sou do contra - dizem- só porque me apetece, hoje não me apetece.
Assim estou despachada destas materialidades em que sempre me tropeço, encalho-me no desgosto de as fazer mas obrigo-me na tarefa porque se as não cumprir ralho-me mais do que as ignorando. Mas hoje é diferente, que estou surda a argumentos.
Não tenho horas, empatei os ponteiros no número 12 vai para uma série de tempo e apertei a goela ao pêndulo sem lhe dar hipótese de me retorquir badaladas a anunciar perdidos minutos de espera, não quero saber, despojo-me da minha civilidade e fecho os olhos.
Escuto-me.
Primeiro só ouço a semana que passou. Difícil. Ainda. E ainda. A veia do pescoço lateja forte num compasso certo. Faço música ao ritmo do batimento do coração, vem-me à memória uma voz a cantar que não sei de quem é, sinto-me num topo de uma montanha, alto, azul, a veia do pescoço lateja vagarosa, certa.
Há vezes em que é preciso fugir para poder regressar.
 
 

sábado, 27 de setembro de 2014

Chegar aqui (à árvore)


 
 
A correr cheguei à árvore, quase sem fôlego, uma pressa de a abraçar e de lhe sentir o campo húmido das chuvas recentes, essa honestidade pura e sossegada que me pacifica, lava de pecados, condena sem contemplação os erros que cometi, o tronco rugoso a magoar a pele do rosto abraçada e as mãos envoltas sem tamanho, saudades, confissões, murmúrios, o silêncio.
Um melro tão negro como a noite chega para conversar, um bico amarelo tagarela que se aproxima saliente e desavergonhado, as folhas da árvore tombam-lhe no carvão das costas e contrariado vai-se.
Rio. E depois já não.
Gostava que a árvore me contasse uma história para eu adormecer como nos contos de histórias.
E eu era pequena, pequena de pequenina de precisar dar a mão para subir e descer e não sentía saudades de ninguém porque tinha todos ao meu redor e ninguém me fazia falta. Nem mesmo a árvore porque árvores eram desenhos que eu fazia em folhas de papel que me davam para eu estar feliz.
Talvez tenha fechado os olhos por segundos, adormecido, sonhado com pássaros, um melro quiçá, há quem explique o significado dos sonhos, eu cheguei à árvore é o que me chega para ver o azul do céu.
 
 
 

sexta-feira, 26 de setembro de 2014

A notícia



Avassaladora, foi como chegou, uma pancada na nuca à traição que faz vergar e desorienta, só se vê o chão como horizonte e o mundo conhecido é uma dor imensa que alastra como água em papel mata-borrão. Derrubou, quis erguer-me rápido para reagir mas o sangue não sei para onde tinha ido que das veias e do meu comando só ouvia o coração a extinguir-se  seco num deserto a mirrar, descompassado e eu sem lágrimas de vontade de as gritar que não saíam, a voz, a voz, e a mão na nuca sangrenta de um sangue ausente, a confusão de não acreditar e acreditar no momento, feridas injustas que saram só para ninguém as ver e nem um ai, um grito a pedir ajuda que não há voz em tanta areia que me desenterre e ponha a direito a olhar de frente, fiquei assim, estou assim, dobrada e silenciada pela notícia recebida.
 
Ninguém deu por nada.
Talvez uma palidez passageira, um suspiro.
 
Nem podiam...As Árvores não gritam.
 
 

quinta-feira, 25 de setembro de 2014

Olhar com Vista sobre o Rio (16)



 
Acinzentas-te para meu agrado ou são meus olhos ainda da tristeza do dia que se deslavam aos poucos tingindo-te as águas, camaleónicas vontades nossas ó Tejo, grande Rio, grande mágoa que trago por dentro, embala-me fados, desencanta-me este gosto das decadências e manda-me azul, embarca-me em trovoadas e dá-me um medo de verdade que me acorde à poesia...
 
De amante que te sou ouves, afinal sempre.
 
No risco curvo das pestanas auguro a tua veia de pintor, uma paleta colorida de arco-íris agua-se na lágrima que enxugo.
O marinheiro de olhos azuis sorri-me.
 
Leva-me para casa Rio.



(in Olhar com Vista sobre o Rio, 2012)

quarta-feira, 24 de setembro de 2014

O livro negro dos homens (doze)



 
Aprende-se rápido a má intenção ou a fuga ou o desvio ou o confronto com a verdade, tudo o que seja olhos nos olhos e a sonoridade clara das palavras na aceitação da responsabilidade ser minha.
Deles.
E minha, claro. Que a tenho tido muitas vezes ao longo desta vida e que nas vezes que a tenho enfrentado, houve umas quantas que me agarraram pelos braços e evitaram que eu dissesse as palavras, nada de ruído e situações embaraçosas, melhor deixar assim, até pode ser que ninguém note.
E eu? Não noto?
Acaso cá por dentro o meu todo continuará o mesmo todo se não disser que a culpa é minha e pedir perdão? E pedir outra oportunidade para emendar o torto a meu custo pois se de mim foi que tudo se estragou?
Não.
Talvez porque no troco esperam que eu não exija o mesmo. Que eu esqueça que me doeu e que quero justiça, quero reparo.
Se calhar é por isso que sou vingativa. Mas o gosto não me sabe bem.


(Lx., 05-04-2010)

terça-feira, 23 de setembro de 2014

O céu da boca (Palavras Reencontradas) 3



Afinal é tudo tão simples.
Era tão simples.
Tão simples que se tornava difícil. Sempre foi essa a fórmula mágica de dizer tudo o que me compunha e o que ainda sou, mostrar o que sou, dizer o que sou não o que os outros vêem porque dos outros todos me acham complexa, vá lá saber-se porquê, um infinito entrelaçado que não se acha ponta para começar a dobar. Das palavras só encontro as que me aparecem no céu da boca e me chegam aos lábios, coisa simples, onomatopeias do sentir, seja dor seja gargalhada, mas é assim, não há pesquisas para achar sinónimos e rodar cabeças para os calcanhares, respirar quando a vírgula pede e inalar pausa no ponto, segue.
Fecharam-me. Dedicaram-me estilos e até hermetismos como caixas higiénicas, e eu só a querer dizer o que quería dizer e nada mais, ligações do coração para a boca e desta para a mão com o apoio da caneta antes que se varressem de vez, algumas foram-se mesmo, outras voltaram, muitas nunca as esqueci não sei porquê, não houve marca para as recordar como uma data que se assinale. Lembro-as, recito-as em solilóquios surdos a embaterem de frente com outros escritos e tudo me parece simples.
Sou eu.
É o que eu quero dizer, nada mais.
Espero que queimem tudo quando morrer, há-de ser difícil para os outros.
 
 
 
(in O céu da boca (Palavras Reencontradas), Janeiro 2014)

segunda-feira, 22 de setembro de 2014

Antigamente



 
Primeiro as mãos apertadas uma na outra como se se ajudassem ao alivio da força na fraqueza de uma dor à dor outra a esquecer, depois cerradas como maçãs, já indivíduos solitários e ainda assim, o ruído, as vozes altas a ferirem e a incomodarem os pensares. As mãos em palma como na oração. Junto ao rosto, encostadas às faces, às têmporas, à testa, à vez a pedirem por dentro por favor ao barulho para ir para longe, embora e nunca mais voltar que o sossego de dizer as palavras no silêncio é tão preciso.
Olhar e pedir e nem assim nesta clemência a percebem.
Pede pela boca, pelos lábios baixos que deixam caír palavras pequenas, quase mudas que lhe perguntam duas vezes o que diz.
Dantes achava que tinha ruído na sua vida quando as notas de música subíam alto pelas paredes e batíam no tecto e se atiravam pelos ouvidos e as palavras disparavam acompanhadas marés de sentimentos que a fazíam dançar até escrever com o corpo todo. Achava-se condenada.
Só agora percebe como era livre.
Só agora percebe como é solitário este mundo barulhento em que não sabe dançar.
 
 

domingo, 21 de setembro de 2014

Portas & Janelas - Esboço nº 10



Ah! Adivinhar! Sabe-se lá! Perdi a conta ao tempo e às estações passadas, às chuvadas enxutas no corpo arrepiado de gola atirada ao pêlo do pescoço ou à procura de uma sombra na parede fronteiriça a reflectir a cal cega do Estio sem perdão, só para não perder um fio da voz que do alto se esgueirava muito colorida como se fossem moedas de prata a silvar na calçada fresca.
 
Eu cá em baixo. Disfarçado de qualquer coisa menos de ouvinte fiel, admirador, apaixonado, um devoto que se tornou quando uma tarde ao passar ouvi uma gargalhada que me fez rir, atrasar o passo, erguer o olhar e ver o entreaberto de duas portadas a convidar ao chamamento, à espera, ao aguardo de uma mulher bela a guarnecer o varandim forjado nas mãos calejadas e agradecer o trabalho duro pela expectativa do fantástico.
 
Habituei-me a esperar. Aprendi a gostar de esperar. O desejo da espera entre o som da voz dela e o silêncio ou o que não entendo e será a resposta dada. E de novo a sonoridade, a gargalhada, até o choro - que pelo tempo fora, já lho escutei - interrupções de vida iguais às portadas que vejo cá de baixo, entreabertas.
 
Mas fascínio mesmo, é não a saber, deixá-la cantada na minha lembrança enquanto me encosto na parede escondida e lhe sinto o vibrato da porta a fechar.
 
 
 
(in Portas & Janelas, Dezembro-2013)

Todas as fotografias da Colecção Portas & Janelas são da autoria de Eduardo Jorge Silva

sábado, 20 de setembro de 2014

Universos



 
Que não venham agora e nada me digam, um único som por favor, escuto-me! Ouço-me nas palavras que alimento e engulo na deglutinação saborosa de uma correnteza infindável que jorra, torneira invisível que mão milagreira resolveu rodar e deixar aberta, páro-me a respirar apenas para compor vírgula aqui e além evitando asfixias mal comparadas com uma tisica que tal como eu, prostrada, ainda, eu, eu que nada sou destas coisas de ficar imóvel e tão semelhante a uma estátua hoje até gosto, não venham e não falem, não me digam nada, não apareçam, não peçam coisas, não perguntem que tenho ou que não tenho, não tenho nada não vêem?, só tenho palavras na língua a escorregarem bem e sem pausas nem solavancos de hesitação de coisa certa, fico-me assim, sossegada neste sentir prazeiroso até perder o tino do horizonte e chegar uma dormência e achar no acordar que sonhei, um ruído desperto que me faça engolir alguma palavra esquecida na garganta e perdão, perdão porque as não escrevi no momento e agora é tempo de acordar.
 
 

sexta-feira, 19 de setembro de 2014

4/4 de Lua à espera de ti



 
Ando nesta ânsia de te querer ouvir e não te acho, por mais que faça por te recordar na gargalhada ou no humor de lâmina afiada, pensamentos que costumam resultar como isca para buscar quem está longe não te aproximas.
Quartos de luz apagada que não adormecem ninguém, são temores que se escondem na mão trémula que levanta o lençol desmaiado que acoberta o monstro agrilhoado por baixo do leito, pronto para o grito do pânico a embranquecer paredes na negritude da lua esquecida, fecho os olhos, mas lá voltas tu ao meu pensar e a minha vontade de te querer ouvir deixa a preocupação enrugar a noite, onde andas que a saudade cava caminhos.
 
 

quinta-feira, 18 de setembro de 2014

Sol de Setembro



 
Apesar de ser outra ainda sería a mesma, contudo não reconhecível à vista desarmada dos olhos, nessa forma desprovida de lentes capazes tão só de captar o que se apresenta, ainda a mesma sob a pele e até a pele tão semelhante, arrepiada, cada poro a afinar-se para sentir mais ou mais sentindo estreitando-se frágil na memória da que se vía por dentro. Ver-se e reflectir-se abraçada nos sons ressoados do silêncio sem necessidade de os haver, mas a imposição muda que grita para dizer no segundo. Gravar. Gravou. Guardou. Desperta-lhe o presente essa vivência arrecadada de perfumes de corpos silenciosos tocados como instrumentos de ressoar no infinito, ouve-lhes os acordes, repete cada sílaba do diálogo que não disse, metade seu, do outro lado podê-lo-ia ter escrito, nada ao acaso se as bocas se beijaram e disseram tudo, ainda se lembra, até das paragens para respirar devagar, mesmo sendo outra havia ar que lhe sumía porque o peito guardava tudo para a de agora, oxigénios que lhe rareiam hoje quando, sentada aproveitando o sol setembrino do final do dia, revisita o passado. 
 
 


quarta-feira, 17 de setembro de 2014

Campo de Palavras (15)



Falei do que sei e do que sinto e gostaram e até quiseram mais e depois partilharam igualmente dos saberes deles o que me deu gosto profundo a mim, não havia olhos nem saliva bastante para tal agrado, o que provocou uma avalanche de palavras e de imagens em cadeia repercutindo-se como ecos cada vez mais e mais audíveis em todo o lado.
E já somos tantos e com tanto campo arado que já ninguém sabe quem deixou caír a primeira semente.
Alimentamo-nos.

terça-feira, 16 de setembro de 2014

Eterno



Sem palavras. Mesmo as engolidas, especialmente e superiormente as engolidas no nó da garganta, ou porque nunca foram permitidas serem ditas ou porque já passou o tempo de as dizer ou porque já nada mais importa. Que importa? Ficam para dentro e cada um que as diga para si e as repita se tu soubesses, se ao menos tivesses pressentido... e um passo tão pequeno tería fechado o abismo.
 
A maravilha encantatória das telas é a observação pela vista, quedarmo-nos pelo olhar sem murmúrio e no suspiro da contemplação fixar o plasmado do que somos naquele plano.
Encontrarmo-nos ali, achatados, mas admirados para todo o sempre. Incorruptos, puros, elegantes na forma e no ser, um todo de alma e figura.
 
É isso que desejamos ao nosso sentir e ao amor. Eternizá-lo como uma obra de arte para que o mundo inteiro o admire e contemple. Intocável, belo, puro. Vedado.
 
Sem palavras suspiraram o tempo necessário da admiração ao quadro. Notaram que um restauro lhe era preciso mas não fizeram referência um ao outro sobre esse pormenor. Guardaram para si, outras obras ainda para ver. Do silêncio só os passos de ambos a falarem à vez desacertadamente.
 
 
(in Telas, 2009)

segunda-feira, 15 de setembro de 2014

C782 - Perseguições




Todos a bordo, todos entrados ou todos a monte, tudo isto significa portas fechadas, vamos embora que é uma pressa, que mesmo em Agosto isto não há pachorra para estar a pasmar e ver as modas ou as pernas às estrangeiras que a hora tão matutina já dão ao canelo de sandália e soquete e vergadas na mochila que sorriem incansavelmente, mesmo assim caminham mais rápido que nós e ainda se debatem no mapa admirando arquitecturas ou calçadas pisadas, que continuadamente são desmanteladas para depois se refazerem. (Para quê nunca ninguém percebeu, mas estamos todos acostumados a esta velha tradição, por isso cumpra-se).
Pára e arranca, pára e não anda. Anda e soluça. E depois anda e mais e mais ainda e como se lhe desse o vento de feição ganha ânimo e não quer saber de qualquer limite e livre, solta cavalos e cá vamos nós, de dedo no STOP, de voz clamada, há quem grite Chefe, outros Patrão, elas preferem Sr. Motorista ou até Ai Jesus, mas está imparável! Pintou-se-lhe um filme de James Bond e na tela imaginada debate-se pela caça ao inimigo, lado a lado, C782 contra o C728.
É a loucura, o frissom, os travões a chiar e alguns que seguem de pé a abraçarem os varões de apoio para não serem ejectados, os mais novos vibram, um passageiro generoso oferece um punho ao queixo do condutor.
Calmaria.
Pasmaceira.
Dissolvida a película, seguimos a passo de caracol.
Passam dois ciclistas que nos dizem adeus.
 
 
 
(in As fantásticas aventuras do C782, Agosto 2014)

domingo, 14 de setembro de 2014

Um ponto, uma árvore



Escuro, nem sei quantas batem no relógio dos cem anos mas podem bem ser cem horas ou hora nenhuma pois o silêncio é a hora maior que cobre tudo e nem um fio de luz se adivinha por entre as cortinas que arejam o cheiro de terra húmida e desperta o olfacto do cão curioso sentado à janela a fitar o que não vejo.
Boceja entediado, o aparo da minha caneta escuta o som das palavras desenhadas e o ritmo das linhas enchidas adormece-o fazendo deslizar enrolado junto aos meus pés traçados e frios no nu do sobrado, sinto-lhe o pelo quente e ausento-me na respiração compassada que acompanho, rosna baixo, um ponto grosso de tinta mancha letras várias que não consigo lembrar e ainda escuro lá fora, tão azul-china quanto aqui sob os meus olhos.
Pouso o dedo para enxugar excessos e da polpa para a folha e desta para a pele, transfusões de sangue ou tatuagens, escrevo, mas o que faço é desenhar no borrão que resta e em tudo semelhante a uma frondosa copa de árvore, um tronco.
Deito-me.
Sob a árvore.
O cão a meu lado vigia.
 
 

sábado, 13 de setembro de 2014

Companhias




Falam-me dos contos e dos livros e fazem-me perguntas e eu digo que sim, aparentam ter ficado com fome, querem saber, mostram interesse, que género literário, encolho os ombros e repuxo as sobrancelhas, não quero entrar nesta conversa porque já sei onde vamos parar mas insistem, não sei, é o que que acontecer no momento e depende, do humor e do estado de espirito inquirem, não, respondo eu mas arrependo-me de imediato porque me vai obrigar a falar dos que me acompanham e ninguém vai entender e sinceramente já me deixei da fase das explicações, não largam, tentam explicar-me a mim o que se passa comigo, a mim, encaro-os, prosseguem e não desarmam, solto as palavras homens e mulheres e escuto dizerem-me obsessiva, isolo o resto do discurso e só ouço obsessiva, eu estava sossegada até virem ter comigo e fazerem-me perguntas e eu é que sou obsessiva?



sexta-feira, 12 de setembro de 2014

O dia seguinte


 
Dizem que no dia seguinte as coisas são sempre melhores, que o tempo já passou e tudo parece menos mau mas é mentira, a claridade do dia projecta a acidez dos ângulos e o ferimento da luz traz a percepção exacta da profundidade dos golpes desferidos no dia anterior, só então nos apercebemos da gravidade da situação e da realidade dos objectos, da crueza das palavras a ressoarem de novo colocadas na boca dos actores, estes a tomarem conta do guião e mandarem à fava o autor, rasgando folhas ou até mesmo engolindo-as e mastigando-as com raiva suprema, entre passadas largas no palco dominando espaço abrindo ar à força do esbracejado à frente do outro.
Reviver, desarrumações do coração que se procuram no inicio, como tudo começou e por mais que se levante a língua e se trave a lágrima na ponta do dedo e na fungadela do nariz, parece ter-se perdido a bússola da noção do segundo ou apenas a idéia de que francamente falando francamente se aceita o que se ouve. Nem tanto. Nem nunca.

quinta-feira, 11 de setembro de 2014

Conhecer[me]


 
Fazer caminho, rasgar joelhos e deixar crescer pele de novo, admirá-la rosada e fina e endurecida em novas crostas de outros tombos caídos se sofrer, caminhando a crescer, conhecer outras estradas e desbravar mato em coragens achadas na surpresa do medo guardado para outra ocasião com propósito próprio que o ir para a frente na descoberta pertence a cada um por si. Querer, ter a certeza do seu poder mesmo quando as memórias plantam aconchegos que fazem devagar outros caminhos mais doces, mostram mãos que chamam para o regresso e se arrecuam em atalhos de olhos fechados em que a dor ficou trancada de castigo. Mas segue-se, vontade é preciso, lá à frente reencontros marcados sem agenda atam corpos em abraços vencedores, sempre a andar, sabermo-nos por dentro para saber indicar caminhos a outros. Um cansaço, leve, tão leve, acaricia a pele calejada de linhas, sentar e descansar um pouco, conhecer de si, embalar esse mapa junto ao peito e querer mais.
 
 

quarta-feira, 10 de setembro de 2014

Um pingo de felicidade



 
A absorvência do mundo que tomba e faz correr contrariados pés que chapinham em sandálias desprevenidas na surpresa da incredulidade, engoliu devagar a existência da minha superfície visível, uma quase paz permito-me. Chove. Chove como em tempo de água esperada a colher, chove muito, a mãos cheias de molhar de pingos a goteiras no nariz e fechar olhos para clarificar a distorção das imagens na duplicidade de vidros aquosos e escorrer por cabelos como algas que se encharcam quando a maré se presta a subir.
Embebo-me.
Transformo-me gota, que uma só é bastante para mim para tomar fôlego e soprar seiva, agarrar raízes e continuar árvore.
Do tecto um rasgo de alivio em tom de azul claro, arco-íris de sete, Rei-Sol a beliscar, eu feliz.
 
 


terça-feira, 9 de setembro de 2014

Olhar com Vista sobre o Rio (15)



 
Atravesso nos minutos em que me torno mulher, o Sol falece avermelhado no roxo da noite que o pisa lenta. Há quantas idas e vindas te navego eu sozinha, forte bastante para saltar a ponta-terra e sem receios olhar-te do alto de mão quase-toca afagar-te no amo-te...
 
Dantes haviam uns cacilheiros de amuradas abertas. Namorados e fumadores eram certos por ali. E eu. A travessia era mais demorada. Mais sinuosa e mais arriscada. E eu gostava mais, pendurava-me de cabeça para baixo e via o meu próprio cabelo a voar e muito próximo da água. Depois vinha o marinheiro e dava-me um puxão ou um raspanete.
 
Atravesso o Rio no final do dia.
Tudo está certo.


(in Olhar com Vista sobre o Rio, 2012)

segunda-feira, 8 de setembro de 2014

O céu da boca (Palavras Reencontradas) 2



[...]
 
E embora me tivesse lembrado delas não me lembrava de mim. Nem dos outros, permanentemente num cortejo quase sádico a deixarem-me em situações embaraçosas que de inicio tentava explicar, rebater, contrariar quando se riam da minha incredulidade ao ver o sorriso sarcástico a adivinhar-lhes a legenda, maluquinha, ou os mais directos a demandarem em que coisas andavam eu metida.
É na veia.
Mesmo.
Mas não me injectava antes se produziam delas como fluido sanguíneo que precisava extraír para respirar ou asfixiava por mãos invisíveis.
Às vezes andava triste e no segundo imediato estava feliz de euforia, não estava depressiva nem tinha perdido o tino, tinha palavras a mais que não sabía onde pôr, sensações que me ardiam na pele e era tudo em gigantescas vontades, não uma ou duas mas múltiplas vagas que surgíam e não me davam tempo de as colocar no papel.
Não passou.
Apenas fui aprendendo a escolher as de melhor sabor para mim. Porque muitas não eram minhas, eram pertença dos outros eus.
[...]



in O céu da boca (Palavras Reencontradas), Janeiro 2014
 


domingo, 7 de setembro de 2014

O livro negro dos homens (quatro)




A capacidade que os homens têm de prometer está directamente proporcionável à velocidade com que o dizem. Facilidades que escorregam bem e vão sempre como uma luva no remate de uma frase, fecha-se a coisa desta forma airosamente e tudo fica contente, pode-se partir, deixar a memória desgastar-se pelo sinal do tempo e acaso um resquício de factura se apresente, inventa-se outra promessa e de desculpa em desculpa, vai-se levando.
Não gosto de promessas e abomino mentiras, não peço as primeiras e não perdoo as segundas, se avançam com juras espero que as cumpram. Embora não fique na expectativa de ter de controlar o prometido, se tocam no assunto para inventar o adiamento vão levar com a palavra mentiroso e de mim crédito algum merecerão de novo.
Quem quiser vir que apareça livremente.
Porque dar sem sentido na retribuição é o melhor presente recebido. Gostar por saber gostar é ter certeza do que se quer, não é mira bem apontada nem interesse bem pesado de vendedora sabichona.
Mas que não se prometa palavras que não se tenha intenção de saber fazer gasto delas, pois corre o risco de se estar a contar com a companhia, com o usufruto de dar e o prazer da troca e tão pouco atingir o valor do verbo não o merecendo.
 
 
(Lx,28.01.2010)

sábado, 6 de setembro de 2014

Portas & Janelas - Esboço nº 9



 
Conversas, tantas, muitas palavras ditas, a maioria da tua boca, eu dizia com os olhos que por vezes sente-se que falar calado é só o que faz falta e o que te sobrava e transbordava era ninguém ouvir para além da trivialidade, calhou passar eu naquela noite e pôr-me debaixo dos candeeiros a amaldiçoar horas para pegarmos já nem me lembro em quê ou porquê, tu à janela e eu a matar o relógio.
Nunca perguntaste se eu voltaría na noite seguinte e nas outras e eu nunca te perguntei porque me havías escolhido para tais confidências, lágrimas e dor para dentro de um escuro que eu não clareava, um estranho num confessionário improvisado e eu sem dar-te castigos ou orações que te pudessem purificar, só palavras e olhos que se tocavam como mãos que se apertam fortemente.
Eu de fora e tu à janela, na tua janela.
Nunca nos tocámos.
Via as tuas mãos a acompanhar o que dizías e a convulsão engolida do choro que tentavas como homem manter fiel nas palavras que de inicio chegavam aos bocados, depois ligeiras e da última vez muito fluidas. Sentía-me bem porque estavas bem, sorrías e eras bonito quando sorrías.
Por isso resolvi surpreender-te e aparecer à tua janela à luz do dia, sem gasto dos candeeiros que o destino me parara naquele tempo.
Sorri-te para que sorrisses mas devolveste-me por entre grades que nunca havia notado, um meneio de cabeça gentil e social, fechando devagar a janela para dentro de um escuro que eu não clareava.
Olhei o relógio e entre o baço amargoso do que doía apercebi-me como o tempo se havia acabado.



(Portas & Janelas, Dezembro-2013)

Todas as fotografias da Colecção Portas & Janelas são da autoria de Eduardo Jorge Silva

sexta-feira, 5 de setembro de 2014

As conversas são como as cerejas, sobra o caroço (5)





Reunião de direcção, seis da tarde, final de semana, fim de mês, toda a gente exausta e sem conhecimento da agenda de trabalhos, marcação de improviso, sala cheia, muitos de pé, começa o Director-Geral a dissertação sobre o empenho necessário para os objectivos comuns, compromisso, transparência, somos todos uma família.
Cochichos na fila de trás [um dia destes a minha mulher põe-me as malas à porta], e o discurso prossegue enquanto o olhar do Director-Geral varre a sala, caminhando lento e com tempo, passadas largas [vá lá, vá lá, pede lá o que queres! e manda-nos embora!], empenho é o que espera, está ali para ouvir o que vai na alma, partilhar [ora bolas! eu partilhava-me era daqui pra fora! Ainda não chega?!]
E sorridente, estaca:
- Diga, diga, não guarde para si, já reparei que tem alguma coisa a acrescentar... Tudo o que é dito é importante!
- Sabe Sr. Director... Sinto que tenho dado tudo... Mas por mais que dê e me empenhe nunca é o bastante, estou sempre fora, nunca me sinto parte, parece que estou aquém da empresa, não sei se me entende Sr. Director...
- Bom. Se não se sente parte temos uma solução. Vou contactar os Recursos Humanos e mandar cortar o seu vencimento.
 

quinta-feira, 4 de setembro de 2014

Esta coisa das palavras



 
O complicado da coisa é que depois de se começar não dá para arrepiar caminho, a musculatura das palavras tem esta chateza e quem se envenenou delas bem pode contar com o peso no lombo que não há alivio que conforte o dia sombrio ou noite que estale móvel herdado sem sacudir um fio de linhas encadeado que ate pés, punhos e língua até caçados, e de olhos fitos numa memória prestes a tornar-se, lembrar ternamente que da estréia já passámos quando no estalar de dedos se nota o canto do quarto amachucado no desaparecimento do ângulo das folhas desperdiçadas do mau génio ou infortúnio da cegueira no esquecimento:
QUEM DISSE QUE EU SABÍA ESCREVER?
Desenhador de letras, depurador de caligrafias muito trabalhado, alguém disse que à força de treino a coisa vai, Ah pois é, esta coisa das palavras talvez que seja um desporto mas como todos quem nasceu para correr bem que pode ir ao fundo numa piscina e sem a respiração certa não há vírgula que consiga levar este parágrafo até ao fim sem asfixiar. Ponto.
Afinal é só um pontinho, nem instalado está, ensaia-se, testam-se capacidades.
O diabo é a palavra. Um elástico que se estica e nos estala na cara. Voraz. Capaz de comer a família inteira e a nós também.
Não sei quem escreveu isto tudo aqui acima mas estou crente que a certa altura as palavras ganham autonomia e se fazem vida. Eu leio.
 
 

quarta-feira, 3 de setembro de 2014

É tarde, tão tarde



 
Cedo. Cedo do dia e da vida, escuta-se na sombra do ressoar dos saltos na calçada enquanto os olhos apontam às biqueiras, não se lembra quando aprendeu o gosto de caminhar de braços traçados e o queixo ao peito, mas só sabe fazê-lo assim, de outra forma o desequilíbrio da vista além ou o alcance a outros olhos a baterem nos seus.
Cedo. Vai achada nos seus pensares, agarrou um fio à sorte quando um gato se tresmalhou escapado na frente do compasso marcado e lhe acelerou a respiração, lembrou-se das riscas de Tico e das mãos na perseguição, do riso a entupir-lhe a memória e dos avisos da mãe, de puxões de cabelo e castigos de cabeça baixa, do fulminante olhar zangado e do regaço dado.
Cedo. Chegou cedo ao amargo do fim. Esgravata furiosamente por outro acabar e nem nas biqueiras desesperadas encontra a emenda para arrepiar história, estaca, o som dos saltos já não a persegue, olha atrás. Ninguém. É cedo. Nem Tico, nem castigos, nem colo de mãe. É tarde para rir, esqueceu-se de o fazer e nem se lembra quando. Deve ter sido... tarde. Ou  muito cedo. Não vale a pena zangar-se, agora é tarde.
 
 
 
 

terça-feira, 2 de setembro de 2014

Jogos



 
Resolvi sentar-me de lado e observá-la,  como é possível alguém conseguir permanecer ausente e num estado absorto com outro tão perto e focado sobre ele, senti-lo a respirar e aspirar cheiros e escutar sons e pequenos gemidos, flexões de mãos, estremeções sem dar conta de nada?!
Quase um coma.
E no entanto há ali vida. Vidas, uma agitação nos olhos, de lá para cá vi sob as pálpebras os berlindes dos olhos a rebolarem sob a pele fina numa convulsão como se olhassem uma cena de que nada quisessem perder... tentei acompanhar. Rápidos, muito rápidos, para o lado onde eu dirigia os meus assim eles se movíam. Recuei suavemente. Cautelosamente e sustive a respiração. Ficaram estáticos.
Aproximei o meu rosto, o hálito quente acelerou e voltou o corropio dos olhos e as mãos abriram, devagar, os dedos esticados num movimento doce como se quisesse oferecer-me qualquer coisa.
Não percebi, toquei com o meu indicador ao de leve na polpa do dela, encolheu-se como um marisco fresco, tapei o nariz para não fazer barulho a rir e acordá-la, que susto!
Experiência!
Outra vez!
Toco de novo e ela recolhe o dígito, rio para dentro, tapo o nariz, que graça eu acho a isto, repito a dose, toco e ela agarra-me o dedo, que susto!
Segura-me a mão, o pulso, as mãos, tem os olhos abertos!
- Anda dormir que é tarde e pára com as brincadeiras, só o corpo a descansar não chega, a alma também precisa...
 
 

segunda-feira, 1 de setembro de 2014

C782 - Tell me why


 
 
Para muitos, hoje acabou-se. Logo agora que estava a ficar tão bom, foi mesmo de propósito, ele há coisas realmente, estão à espera que se retorne ao activo para que o vento abrande, se fixe a temperatura ideal do típico Estio (Ah! Memória!), escoe as horas de fila para o mergulho e zás!
E não contente com todo este infortúnio, carrega-lhe com uma segunda-feira.
[Ainda se pergunta porque é que aquela menina não quis ir à escola naquela 2ª... e vai daí, foi um tremendo sucesso que mesmo agora, metodicamente, se recorda, tell me why I don't like Mondays].
Por isso, além do amargo sentir e dos dedos apertados no calçado trocado pelos chinelos, foi um arrastar da hora útil em que depois de espremido, produção pouca houve, de olhos húmidos falou-se dos Kms. feitos, da comilança satisfeita, da reunião de amigos chegados que só se encontram uma vez ao ano, do homevideo pronto a ser degustado no telemóvel como prova do local atravessado a toda a brida, o coração acelerado, o sabor a sal nos lábios...
E o sorriso renasce enquanto se despedem esperançosos, até amanhã.
 
 
(in As fantásticas aventuras do C782, Agosto 2014)