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domingo, 30 de novembro de 2014

Aconchego



 
Mal a oportunidade se achou corri, corri muito, o matagal de silvas e outras ervas altas a abrirem-se para me atalharem caminho às pernas, o pensamento mais rápido, um a puxar pelo outro, peso de verbo que acarto e me atrasa na chegada, por onde começar a contar tudo, tanto sem me atrapalhar ou engasgar com cuspos e pontuações ou falta de ar pela correria que agora faço para chegar à árvore, mudanças de tempo em passado e no agora, ei-la!
 
A clareira ao redor impõe respeito.
Tento suster o ímpeto da vontade de a abraçar e de lhe contar tudo mas estou ofegante, o coração acelerado e as mãos cheias de palavras que andei a engolir, nunca as escrevi por estes dias, bebia um gole de água e tomava-as como um remédio que depressa me embriagou até se tornar um veneno nas veias.
Caminho, passos lentos, o tronco forte e rugoso perto, o cheiro típico, húmido, acre e invernoso dos líquenes parasitas que vêm sugar-lhe vida e enfeitar na ausência das folhas. Toco, sinto-lhe a aspereza, encosto a face e conto-lhe da falta que me fez.
 
Aconchega-me, pede que lhe dê as palavras do meu alivio e na morna e suave doçura das páginas brancas do meu caderno a seiva invisível das raízes pinta-se em letras no todo que trago para lhe oferecer.


sábado, 29 de novembro de 2014

Entrar



A felicidade dos cheiros reconhecidos é esta coisa silenciosa que faz barulho de trovão, gargalhadas, os abraços apertados do reencontro nos que nos esperam de mãos inquietas enfiadas no sobretudo nervoso à espera dos minutos atrasados quando a mala cai no chão desembaraçada para livrar sentidos que não sejam outros que a saudade, palavras a mais, palavras a menos para dizer tanto, beijar pouco que não chega, os olhos falam mais quando se encara a cor e se murmuram contar regressos e a euforia do que se trouxe na memória.
Casa.
Os pés no tapete, afagos de passos, uma quase licença ao pedir permissão para romper a invisibilidade e transpor para o lado do que é nosso, ali é o meu lugar e no entanto quase se pede o convite.
Entra.

domingo, 23 de novembro de 2014

Bagagens



 
Deixo extraordinariamente arrastar os minutos como se não tivessem importância, não lhes dou essa dimensão, mais um bocado e já não estou aqui, outras latitudes, outras saudades, enquanto fico mascaro o tempo de inútil e deixo para a última a mala, não gosto de fazer malas, conferir se está tudo ou se esqueci algum objecto indispensável, fazer listas é impensável ou preparar com muita antecedência dá-me o gosto do adeus anunciado, não quero, prefiro o abraço apertado no momento e nada de olhar para trás, acelero os passos e fico no apuro do ouvido à espera do bater da porta e só depois cerro os olhos, abato-me.
Dantes, quando chorava, colava a língua ao céu da boca, agora nem isso, dá-me uma dor na garganta e no peito, um amargo que demora a passar e aperto nos lábios mas não digo nada, sinto uma espécie de saliva a mais que engulo, engulo e não vai para baixo.
Parto sempre mais carregada do que regresso, levo tudo o que o olhar alcançou, as mãos tocaram. Na bagagem acondiciono-os gentilmente e ao longo dos dias vou consumindo consoante o apetite dessas pequenas grandes iguarias que passo clandestina e que verdadeiramente me alimentam.
Chego magra, famélica, ávida de mãos, olhos, casa. Venho plena das fomes de outros, pedras preciosas, ouro.

sábado, 22 de novembro de 2014

Instantâneo - Episódio três


 
Vejo o liquido manchar-se na alquimia da transparência, páginas de nívea para café que se tornam azuis e assim eu me torno letras ou então de sangue se nascem outros, outras coisas que se seguram cá dentro e libertam à medida que o dia toma o escuro e o arruma dobrado como um cómodo que se limpa e se deixa pronto para o hóspede que chega.
Do consolo do gole quente depressa se esquece a mão, presa à linha do encadeamento de frases, pontos, a vírgula pendurada na asa da chávena incapacita até o instantâneo se esfriar amargo e vitrificar na realidade de um coágulo, não me lembrei mais do café, não precisei, duas mãos não chegaram para tanto apanhar, ele eram palavras e hóspedes e dia a vir e eu a mirrar e de repente eu nem estava ali, cheguei porque a isso me convidaram.
Solto o cabelo, o gato amarelo ronrona sobre o caderno, o outro no meu regaço.
 
 

sexta-feira, 21 de novembro de 2014

Eu (ainda) à espera de ti


 
Os pássaros já partiram e as árvores estão nuas, o que delas resta anda pelo chão, espezinhado ou quando vem o vento arrastam-se para um canto amontoando-se, as chuvas fortes levam as sobras. E de ti nada. Eu à espera. Acendi a luz no quarto de dormir e levantei a colcha na esperança de que te escondesses sob a cama para me pregares um susto. Em vão, nada mais que algumas caixas de cartolina feitas por ti no aborrecimento das madrugadas quando a invenção te chegava prolífera e te abandonava em iguais quantidades do mesmo enfado. Coisas de artista, dizia eu e tu sorrías. Vejo o teu sorriso quando destapo as caixas e é só isso que encontro e não me chega, sei que os pássaros se foram e que voltam mas preciso de os ver a planar naquele ruído de vida, esgravatando junto ao telhado ou discutindo na árvore perto de casa. Empurro as caixas de volta ao esconderijo que escolheste, talvez tenha sido tua intenção trazeres-me até aqui, sempre gostaste destes jogos do desejar mas o meu coração sente-se perdido no meio das folhas, arrastado, levado pela enxurrada e quem sou eu à espera, sem ele?
 
 

quinta-feira, 20 de novembro de 2014

Em vez de



Em vez de ir vou ficar. Sou até capaz de me deitar em sitio que não seja de o ser com roupa que não seja de dormir, andar descalça ao invés de castigar dedos de pés a pique em calçado pontiguado e de saltos que se encravam em pedras de calçada e tapetes de escritórios onde se bate na porta ao de leve e se encosta a orelha à espera de sinal para se entrar. E sendo assim, não entro, não levo, não carrego entre mãos papéis com linhas que consumiram a cor dos olhos que da minha era verde e fugiram para branco e depois nada e depois se tornaram riscas e depois ficaram cegos e agora podem ser a branco e negro porque tudo fica mais simples quando é uma coisa ou outra e nada mais. E por tudo isto não será quinta-feira, será outro dia de não ir, mas um que não seja véspera de lá voltar, pois aqui me deixo abandonada ao que acontecer, despreocupada em vez do que sempre me habituei em todo o redor, até feliz em vez do parecer ser.


quarta-feira, 19 de novembro de 2014

Olhar com Vista sobre o Rio (18)



Como uma droga, é noite profunda e fria de húmidas saudades da lembrança de vozes dos que me diziam para ter cuidado, saio mareada de um Rio com largueza bastante para se comportar como o engano dos que lhe chamam mar, repetidamente não és e o cais balouçado amachucando o bojo dos navios magoados que me tremem nos olhos são truques que ousas para testar a minha coragem.
 
Hesito os passos não por receio, é a bebedeira dos sentidos a agitar planos e a confundir-te se tal como os cacilheiros fantasmas no aguardo da luz do dia, também eu não serei mais um, alma perdida de um século ou dois, que interessa o tempo, águas vêm e aqui regresso, de carne ou de pensar-te.
 
 
 
(in Olhar com Vista sobre o Rio, 2012)

terça-feira, 18 de novembro de 2014

C782 - AA&RR




Cá vá disto que amanhã não há! É tudo a entrar, motor a rugir, quem está dentro segue, quem se atrasou azar, que o dono do veículo estava a olhar para o outro lado e nem reparou que lhe pediam para abrir a porta, por piedade, só mais um segundo, os bofes de fora e o antipático vai de carregar no acelerador e bem de propósito arranca a largar uma fumarada a pontos de envenenar meia centena de gente!
Facínora!
Se fosse peão, era passar-lhe por cima!
Dizem os que ficaram pendurados, que é como quem diz apeados.
Ninguém diz nada no interior da viatura, tudo animado que hoje segue-se a bom ritmo e o inicio está de feição.
Mas pensamentos não eram tidos, quando um desditoso pedestre se lembra de atravessar - e logo na passadeira! - obrigando o motorista a travar.
Todos pela inércia do movimento se catapultam para a frente, o som da surpresa em coro, o carro que seguia na traseira apita furiosamente, alguém grita cabrão, ninguém sabe a quem mas ouvem-se entrecortadamente és tu, mais buzinas, fila única que a estrada tem dois sentidos inversos e largura mínima, uns quantos pedem para abrir a porta e saír, de quem é a culpa é do carro, não, não é do peão, é do motorista que atropelou duas senhoras...
Há juízes, advogados, autores e réus.
Só não há meio de saírmos daqui.



(in As fantásticas aventuras do C782, Setembro 2014)

segunda-feira, 17 de novembro de 2014

Corpo de delito


 
Desembacio imagens à procura do nevoeiro da minha, gosto de nevoeiro, gosto de chuva, não me revigorei em dois dias de pausa, os que por trás de mim se penteiam ou de gestos me imitam mandam-me ir e fazem de conta que já me ergui, acordei, desperta no comando de ordens que ouço, vai e eu ando, faz e eu respiro, volta e eu ainda aqui.
 
Há um cansaço em mim que nem me cansa mais, habitua-me.
 
Só temo que um destes dias me ordenem que vá e quem for que siga, me leve e fique por um qualquer sitio a viver. Como explicar ao corpo que restou deitado...

domingo, 16 de novembro de 2014

A(s)da minha rua


 
Espero que nunca se lembrem de vir à minha rua cortar as árvores, a que fica dois prédios abaixo do meu tem uma pernada pendurada que costuma cumprimentar-me com um afago na cabeça, as folhas emaranhadas no cabelo a custar deixar seguir, e a que está em frente à minha casa, à janela do escritório, onde a secretária está colocada e me sento para a poder ver entre as cortinas quando páro de escrever e lhe falo, sabe-me tanto quanto o silêncio do não dizer, sabe-me por dentro, conhece-me os gritos, os abraços, tem-me as horas guardadas nas de noite de pé e nas de dia feitas em noite e ainda todas as que se querem num avesso, tem-me gratidões de oferta nos gatos arriba em upas ou alívios de perna alçada a outros tantos Gaspares e salvação de sombra, de apoio, de coio, de musa, de letras quando me fujo e escondo para me apanhar.

 

sábado, 15 de novembro de 2014

[Re]Encontros nos passos [ou nas letras]



Sentou-se ao meu lado e puxou um trago de fumo que lhe escondeu o rosto, não sei como o faz mas fá-lo de forma tão cinéfila que me prendo no instante até a nuvem tóxica se elevar e dissipar pela sala, resta um aroma a cedro ou talvez sejam avelãs tostadas, fico hesitante e perco-me na decisão olfactiva e quando apanho as palavras que me diz já nada do discurso faz sentido, sinto-me a despertar com um beliscão e no entanto tenho estado sempre de olhos abertos e bem atenta, então para onde foram os restantes sentidos que me desoriento e não sei se diga sim ou se responda não? Continua sentado e na mesma posição, leva o cigarro enrolado aos lábios, desvio o olhar mas ele está calado e sinto que espera, observando-me, que eu lhe responda.
Agarro a caneta de tinta permanente, abro o caderno e aponto ao topo da página.
Ele apaga o cigarro, sinto o calor da face dele próxima da minha, a mão dele sobre a minha, guia-me as letras sem me forçar.
Agora sei do que estava à espera que eu lhe dissesse, claro que tive saudades, muitas e não quero que parta outra vez, há noites mágicas que só ele conhece e pode contar nos sons de vida, nos passos de morte.
 
 

sexta-feira, 14 de novembro de 2014

Agendas



 
Os alertas coloridos, as mensagens de pânico, o rejubilo da desgraça, água por todo o lado, eu ilha, de chuva, de isolamento na inconsciência das tempestades que confessa aprecio e os outros fogem.
Tudo mais do mesmo.
Final de semana típico quando o estrondo do trovão espanta a cidade e o caos dirige as multidões a confluírem, entupimentos de horas, rezas silenciosas.
Fico para traz como coisa esquecida, deixo-me. Deixo de lutar contra o relógio, contra o caminho dos demais, contra o que ficou por fazer, contra o que vou encontrar por fazer. Ando pela cidade em passo vivo e quanto mais chuva cai mais leve me sinto, vão saíndo os dias da semana um a um, uma sujidade invisível que se havia pegado e fazia peso, da noite que caíu vejo dias de Verão em que andei de bicicleta até as costas me doerem e a roupa encharcada que se me colou como segunda pele tem a temperatura desses tempos de calor em que nada era mais importante do que esgotar as férias até enjoar e voltar à escola.
Atravesso o rio, há gente feliz, silenciosos observam o negrume através das vidraças salpicadas, têm um ar diferente dos restantes, noto-os. Tiro o meu caderno, sai a agenda. Várias notas completamente esborratadas, um fio de choro a azul a desmaiar-se pelo fim das páginas, nada se lê. Vejo o caderno, a ponta das folhas a desfazerem-se.
Sorrio.
Estou feliz, olho a noite chuvosa e no reflexo do vidro molhado vejo o meu rosto com a maquilhagem arruinada, o cabelo colado e não me importa nada, mesmo nada.


quinta-feira, 13 de novembro de 2014

Pedidos



Chegam de todos os lados, cem, mil, um milhão, pedidos por toda uma eternidade, cada um mais urgente que o anterior que era tão importante, não há vazão para tanto, uma maré que alaga e afoga antes que se agarre a bóia que vem no ar e vemos a girar na nossa direcção, quase a segura e depois a nova onda, forte, altaneira, que bate no cachaço e afunda, a salvação fica por lá sem préstimo, pousada nas águas revoltas.
Respirar.
Submerso no que não pára de chegar tenta imobilizar-se o pânico, organizar o pensamento, bater pés para não sucumbir ao fundo e ainda assim, atender ao que se espera, dar sinais de vida.
Escoam-se respostas e chegam cansaços, um oceano de reclamações.
Pede-se mais, pede-se melhor, pede-se mais rápido.
Adrenalinas que gritam, nada-se, velocidades enganosas quando o som vem debaixo.
A praia achada, cem, mil, um milhão de restos repousam e o afogado é apenas mais um pedaço que por lá encalhou.

quarta-feira, 12 de novembro de 2014

Ágil



Chega um tempo em que é preciso rasgar, cortar, gritar, romper, mesmo que a força das lágrimas sangre por não saírem a arranharem na garganta a dor de lembrar que não há vez de perguntar como se faz, como foi, o porquê, porque se pensou que ainda havia o tempo, esse tempo que agora se atira à cara de garras... Não é remorso, que arrependimento é de não ter feito as mesmas coisas mas com mais interrogações.
É seguir em frente e massajar a nódoa negra da recordação, separar o dantes, despir a fantasia que antigamente é que era melhor, parece sempre assim quando o salto tem o amparo do vácuo até os pés calcarem o chão ao presente.
 
O salto de corça que ensaiei para evitar a poça de água saiu-me torto, feio, torci um pé, fiquei parada com o sapato alagado, a minha figura dobrada para a imagem reflectida enviusada pelo vento que a açoitava ou apenas o tempo que passou, ágil. O tempo, não a memória.
 
 

terça-feira, 11 de novembro de 2014

Portas & Janelas - Esboço nº 12




Quando te chamava cá de baixo e tu assomavas, cabecinha pendurada, a primeira coisa que fazias era entalar as saias entre pernas, um cuidado que por vezes não te valia de nada, o corredor dos olhos ficava na mira das tuas cuecas e o branco sorria-me à medida que tu me dizias sobe, sobe.
Eram sempre brancas, sempre. E eu gostava, não tinha fascínio de outras cores, porque debaixo daquele balão de saias que tu afrouxavas recatada, recortavam-se as sombras de ferro forjado do resguardo da varanda o que te dava um ar mourisco e apimentado, coisas que eu guardava na minha mente e recordava solitário do quarto de solteiro em noite de canto de cigarra.
Raramente galgava os degraus e subía como tu pedías. O desafio era fazer-te voltar à varanda e ver-te por cada vez mais insistente e apressada e quase pronta a saírmos, de gancho no cabelo, depois de batom rosa, finalmente para nada ou apenas para teres a certeza que ainda te esperava.
Não sei o que deu mal connosco... Ou o que me deu de hoje passar aqui com o meu neto. Mas sei que me apetecia dizer o teu nome alto e ver-te chegar, apertares as saias de balão entre pernas e eu sorrir-te por esperar por ti.


(in Portas & Janelas, Fevereiro-2014)

Todas as fotografias da Colecção Portas & Janelas são da autoria de Eduardo Jorge Silva

segunda-feira, 10 de novembro de 2014

Há quanto tempo!


 
 
Os desesperos das noites acesas no breu a escorrer pelo tempo que se esgota na míngua do descanso ou os olhos abertos no aperto forçado pela tortura do dia que não chega. Pensamentos que se estacionam, parque cheio. Vagabundos da memória que ocupam libertinos e disputam à gargalhada como manobra de diversão, o espaço, o tempo, o podium. Lutam e matam-se à vez, restam uns quantos, depois dois, três, finalmente o solitário vencedor, imperador.
Chega-me fascinante.
Eu que já rendida ao cansaço, tinha friorenta puxado agasalho, ergo tronco e abro olhos, palpita-me descompassado no peito procurando o acerto à música ao longe do bandoneon gemido na diagonal entre mãos apertado, apuro ouvido, agarro melenas e sustenho respiração.
Puxa-me manso e entala entre as minhas a perna vestida de alpaca onde sinto os músculos retesados para o inicio do Tango. Mão à sela das costas e a outra ao enclave do sentir, olhos fechados que o caminho é seduzir.
Há quanto tempo tu não vinhas, há quanto tempo não aparecias nas minhas letras.
Que saudades eu tinha de ti.
 
 

domingo, 9 de novembro de 2014

Foi num dia de piquenique...



- Estou?
- Sim. Queres saír, arejar, tomar um café, conversarmos, não dizermos nada?
- Estou às voltas com um trabalho que me está a fazer caír o cabelo... não posso saír!
- Ao Domingo?! Tu sabes que dia é hoje?
- Domingo, acabaste de dizer, e eu acabei de dizer que estou presa a um trabalho forçado!
- Não.
- Não?
- Hoje é dia de piquenique.
- A hora de almoço já se foi... isso tem cheiro de adivinha...
- Não é charada, não é adivinhação. Põe água ao lume, eu faço o mesmo deste lado da linha e sobretudo não me desligues o telefone!
- E o meu trabalho? Tem dó de mim...
- Anda lá, chove a potes, tu que gostas de chuva não me pões a andar na rua, eu só te quero ouvir, nada mais!
- Está bem, conta lá. Uma vez que seja, és tu que me contas histórias.
- E o café?
- Quase pronto!
- Então aqui vamos:
 
É dia quente, sol a condizer com o céu azul, ninguém quer ficar em casa, seja para almoçar, seja para passear, todos vão para a rua, o ar apetece, é macio e doce. As famílias pegam numa cesta e carregam pão, presunto e compota bastante que dê para as crianças se entreterem depois da correria e não reclamarem que têm fome. Ao final da tarde regressa-se e cansados, hão-de conversar sobre o belo dia que tiveram, quem encontraram, provavelmente planos que fizeram já para o próximo Domingo. Pelo menos até o tempo permitir e se mantiver assim tão agradável.
 
- Palavra que gostava de te ver a cara agora... Onde é que queres chegar?
- Aí.
- Onde?
- Exactamente onde disseste. Veres a minha cara.
- Cada vez percebo menos...
- Ouve. Ouve com atenção. Afinal é só isso que podes fazer.
 
Só que no regresso a casa encontram o caminho fechado. A cidade onde moram tinha sido dividida em duas e quem a tinha atravessado umas horas antes, de sorriso aberto para fora dos seus limites não voltou a conseguir fazer o percurso de volta: Militares tinham erguido uma vedação em arame formando uma cercania à cidade para defender os seus habitantes de perigos tão grandes, tão grandes que ninguém os vía. As casas ficaram por lá e os que voltavam de cestas vazias do piquenique ficaram do lado de cá.
 
- Como nós...
- Como Berlim.
- Como Berlim há 25 anos atrás.

sábado, 8 de novembro de 2014

Campo de Palavras (17)



Na medida do crescer tornou-se-me mais grato usá-las porque do aprender outros sabores se extraiem no gosto da variedade do seu consumo, nem sempre o imediato é o comum, por vezes o imediato é o simples e tão só desejado e o bastante para se dizer e fazer entender, nada mais necessário no atavio de outras a fazerem acompanhamento.
 
Porém do maduro, chega-me apertado o valor e a este cada vez mais por ver nas palavras sopros que as levam como se nunca as tivessem proferido, que de sinónimos e antónimos cada vez menos se cuida existirem, preciosismos da língua a que uns pouquíssimos se ligam para complicar a vida a uns quantos.
 
Talvez o meu problema seja por estar fora de moda, aliás nunca estive, nem nunca fui em correntes e nem sou a favor do acordo ortográfico, a minha identidade é lusa, é escrever o que bate no peito e preservar o carácter do verbo enquanto ele se manifestar.

sexta-feira, 7 de novembro de 2014

Passos



 
É noite, mesmo que os candeeiros de rua brinquem com a memória da luz e as sombras se assustem consigo mesmas, vou descendo a ouvir os meus passos atrás de mim a empurrarem-me calçada abaixo, acendo a tradição no cigarro de paladar único até tocar as chaves de casa, fim de percurso, fim de horas, final da semana, como se isso importasse, daqui até ali vai um mundo e a labareda que alumia as mãos em concha para matar vício ou cumprir o ritual da boca faz parar quem me persegue, espera por mim e me conhece, talvez não se dê a estes hábitos ou então me peça do mesmo e hoje perde a vergonha,
- Tem um cigarro?
Tenho, mas não sou de dar ou até sou mas tenho de olhar nos olhos quem bate os tacões atrás dos meus e me imita e conforme a luz dos candeeiros lhe ilumine a cor, assim lhe cedo o meu fumo.
- Era o meu último.
É noite, um dos candeeiros cansou-se, a lâmpada fundida dorme e deixa que as sombras das árvores trabalhem, meia-dúzia de passos até casa, um último bafo, calco na ponta do pé a ponta incandescente e silenciosa do cigarro.

quinta-feira, 6 de novembro de 2014

Cocktails



Mesmo antes da hora do almoço saíu a exclamação, onomatopeias de seguida, sinais de quem chama a si a atenção e à laia de Martini - muito agitado e muito batido - ouviu-se até o fôlego se esgotar o rol das noticias de sangue e tiros, a traição do vizinho, a queda do transeunte, a ineficácia de uma qualquer vacina.
Alguém ajudou ao cocktail acrescentando um exemplo familiar e foi uma festa.
 
Baixei os olhos e tentei a retirada, nestas coisas o contacto visual é um perigo, interceptaram-me os passos, tracei os braços ao peito e apertei os lábios.
 
Senti o cheiro de sândalo e a pele levemente ardida, depois um arrepio, os poros a fecharem-se como minúsculas cabeças de alfinete. Uma gota de água veio a deslizar desde o cabelo até à ponta do nariz e pendeu até aos joelhos. Se ficar aqui muito tempo vou ficar engelhada, a água fria, mas cheira a um dos meus aromas favoritos e o som da água para lá e para cá abranda o ruído de tudo o que não se quer.
Tranquilidade. Só. Apenas este murmúrio das mãos a dizerem que ainda estou. E sorrio.
 
Perguntam-me como posso sorrir quando estão a falar de coisas tão sérias como o cunhado de uma desconhecida que a matou com dois tiros e depois lhe deu uma martelada.
 
Não sei.
Apenas agradeço à minha loucura.
Agora vou almoçar.
 
 

quarta-feira, 5 de novembro de 2014

O céu da boca (Palavras Reencontradas) 5



[...]

Perdi a valentia, a nudez das palavras à vista de todos ou a forma desavergonhada com que o fazia, um despudor, mais rápido serei capaz de mostrar pele de corpo do que a derme das letras, vá lá entender-me a razão, simplesmente deixei de ter a habilidade de o fazer, a vontade tóxica a consumir-me na dependência e a procura do lugar ermo para me injectar de tinta azul-china na solidão do momento.
Não quero ninguém perto de mim. Privado. Culto.
Cresce-se, aprende-se a dizer não e depois isto, incapacidades, deficiências de coisa madura de quem ganhou juízo e não deve andar por aí ao pé-coxinho, muito eu escrevi em todo lado, em qualquer pedaço de papel, guardanapo, pano, bainha de saia, nos tornozelos escondidos nos botins, pequenas frases, verbo solto, a loucura desenfreada do que sentía como cavalo bravo que se escapava quando prestes a ser agarrado e estava feliz e sentía-me plena.
Agora enfarto-me.
Tenho a boca cheia de palavras, valentes, eu é que não.
[...]


(in O céu da boca (Palavras Reencontradas), Fevereiro 2014)

terça-feira, 4 de novembro de 2014

O bater do coração (vinte e dois)



 
Foi-me dado hoje um presente, raro, porque dos olhos me desceu o bater do descompasso ao peito até quase sentir que o músculo sem préstimo, atrapalhava para rasgar a pele e abrir como uma roupa que abafava os sentimentos, cheios, um todo demasiado que me sugava o ar e inspirado na boca semi-aberta do êxtase, parou.
Era uma fotografia a preto e branco de um edifício abandonado e os plásticos protectores das janelas esventradas deixavam-se fragilizar pela força do vento. O ângulo era um rx de vida não de uma coisa inerte e as palavras que me encheram tanto quanto o ar que me faltou naquele segundo tocaram-me os sons que me devolveram o palco, os passos, as pontas e as dores, a arte do corpo escrita.
 
 

segunda-feira, 3 de novembro de 2014

Pendurar



 
Já fez tudo. Está tudo em ordem. Talvez se sente para afrouxar o peso das pernas que logo mais para a noite hão-de inchar, sabe-o, não lhe apetece mas não tem jeito ficar especada no meio da sala à espera, imóvel, como se fosse um adereço a mais fora de enquadramento no mobiliário e afinal está tudo pronto. Em ordem. Senta-se.
 
Traça os dedos uns nos outros e a grade formada recorda-lhe que tivera mãos bonitas. Não se lembra quando nem lhe apetece fazer contas de andar para trás à procura desse tempo, desprende os dedos, passa as palmas pelo cabelo alisando-o, traça os braços, esconde as mãos sob os sovacos, suspira.
 
Lá fora caiu a última folha que se pendurava na árvore. Já estava castanha e rija, desceu do ramo num movimento de hélice e espalmou-se na calçada.
 
Ela dentro de casa ouviu um estrondo, levantou-se e espreitou pela janela. Não viu nada. Apenas reparou que a árvore em frente finalmente estava despida. De resto tudo em ordem. Voltou a sentar-se, as mãos debaixo das coxas.
 
Agora era esperar que os miúdos chegassem para voltar à vida, só esperar.

domingo, 2 de novembro de 2014

Os meus segredos (um)



O acto da escrita é egoísta e solitário. Intimo. Mas a força que o contém impele-me a escrever em qualquer lugar e desde que surja a vontade quase inexplicável em que as palavras me aquecem e quase queimam se as não escrevo.
 
Por vezes, acontece com um som ou um cheiro, outras são vozes de mim mesmo que me ensinam caminhos que nunca vi e verbo oculto que se desata tão rápido e fácil como se fora eu desde criança a tê-lo aprendido cedo. Mas não. Eu própria me surpreendo com o que escrito e lido, sei ter sido feito pela minha mão e no meu caderno, mas não do meu peito, do meu sentir.
 
Acho-lhes porém, tal dor e magia, tal riso e entrega, que as cobiço por vezes triste, de não ter sido eu a senti-las. Procuro-lhes a intimidade mas como coisa já sabida, tão solitários são esses que me sussurram quanto eu quando assim escrevo. 
 
 
(in Os Meus Segredos, C.G.- 02/05/2005)

sábado, 1 de novembro de 2014

A Árvore das Palavras, nascer no dia dos mortos



 
Cumpra-se mais um para quem isso importa. Afinal, nascer no dia dos mortos é o que está de acordo para a árvore. Quantas vezes se lhe acha que é de seu fim, já seca e murcha, cavacos para boa lareira por não fumegar no seu verde ausente e espanto, um rebento oculto denuncía vida no seu miolo, prestes a brotar ao primeiro pingo de chuva que lhe revitalizem as raízes adormecidas e rebentem em todos os ramos, pequenos nós esbranquiçados e depois de cor esperança, folhas, frondosas sombras, o aroma das flores que perdem pé desmaiando para o tapete do chão, o peso dos frutos na suculência das palavras, as cores perdidas em estações repetidas, a solidão de uma árvore que serviu de encosto aos que partem depois de abrigados e fica. Fica porque as palavras não têm fim.