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domingo, 3 de outubro de 2010

Espelho (meu)


Suave, patine que acaricia suave. É do segredo. É dos sentidos. Proibidos. Como quartos que permanecem cerrados numa chave que enferruja num bolso e que todos os dias aguarda ser descoberta na história relatada em sussurro por causa dos fantasmas da lembrança de outras estórias salivadas em abertos olhares suspensos por um tom acima, mais acima, depois cavo a fechar de novo a revelação, o quarto, a chave esquecida...
Relance que foge, imagem derrapada na periferia. Ainda assim, suave. Babada nos contornos derretidos por noites, dias, outras noites em que o reflexo sempre lá ausenta-se da vista. Suave, olhos suaves a perdoarem as imperfeições e as cicatrizes navalhadas por um tempo de ontem.

sábado, 2 de outubro de 2010

Minutos em páginas



03:05 - Tenho de ir dormir, é forçoso que durma, não devo aqui continuar ou ainda me perco esta noite.

05:26 - Já dormi, agora posso voltar e ficar e escrever.

06:00 - O café esfriou, sabe mal, devo fazer um novo que me mantenha os olhos abertos para achar as teclas, para que preciso eu de letras impressas em teclas se sei o caminho delas mesmo às cegas e mesmo sem escrever tenho fiadas de palavras que dobo, dobo sempre numa tarefa sem fim à vista, páginas que carrego onde quer que vá.

06:10 - Os pássaros. Em breve manhã solta.

06:30 - Tenho frio nos pés, calor nos olhos.

06:31 - O gato quer leite e o cão quer rua, eu quero dizer que continuo às voltas com tantos, um baile que cansa e envenena, sei que faz mal e vicio-me em pensamentos sobre a última vez ser à minha ordem.

06:55 - De repente o sobressalto do branco, encharco-me em planos leitosos, não sei se durmo-se escrevo-talvez sonhe com narradores que me lêem alto para me manter acordada.

07:15 - Que aconteceu, para onde foi a noite, as minhas palavras, o tic-tac que ritma os dedos na emergência dos sentidos, eu toda dormente, eu sem tempo de dizer que o há.

07:17 - Matei-o.

07:18 - Não me arrependo, mas claro que me arrependo, preciso do tempo para me queixar dele, para me dar ao gozo renovado de o matar tantas quantas vezes a transgressão das palavras for o coração à boca, o vómito, a explosão do que sou em partículas suspensas nos minutos contados pela vida.

07:30 - Durmo, sossego, tanto sossego nesta paz...

sexta-feira, 1 de outubro de 2010

Favorita



De nada suspeitei, entrei pelo dia como quem deseja que a noite ainda lamba paredes e desenhe monstros nos objectos familiares que nos guiam a mão às escuras. Como de costume não fiz parágrafos com travessão, mantive-me na mutez que se incomoda com saudações ruidosas e sempre prefere os cinzentos ao acordar.

É assim que somos, um dia som, um outro pedra.

Sem voz, sem suspeitar que o roubo perfeito actua na insensibilidade do adivinhar.

Porque não quis dizer não me fez falta, acomodei-me à nova situação afónica, entoei músicas para dentro e até acompanhei com o bater leve do calcanhar, resolvi obrigados com um jeito de cabeça e um sorriso apertado aos dentes. Se estava sem voz, melhor fechar a boca, não vá esta ter ficado entalada como resto de refeição mal escovada e aproveitar a escapatória para se fazer a novo dono.

De nada suspeitei, já o disse, nada me doía, talvez sempre tivesse sido assim e só naquele dia a revelação se iluminasse.

Mantive secreta a condição, falei pelos olhos, pelas mãos, pelo encolher de ombros, eu quero lá saber que achem estranho eu não dizer nada.

Já se passaram uns dias... desde o dia em que o caminho limpo se manchou na folha de plátano vermelha. Castanha. Ouro.

OH

E fiquei de boca aberta, o Outono, o Outono, o Outono que eu gosto!

Guardo a folha espalmada no caderno.

Para quando tenho saudade da minha voz de menina.