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sábado, 28 de fevereiro de 2015

Mar lembrado, mar voltado



 
O mar. O mar estalado com os olhos fechados do medo do som tão parecido às guerras. O mar como um ditado. Era uma vez o mar. O mar lembrado. Há quanto tempo não vejo o mar. O mar frio que um dia me reclamou de invejas em pas de deux que deslumbrada aceitei nas pernas, nos braços, nos olhos de verde igual, esquecida do amor de rio, revolta, afastada de areia e nem saudade tinha e nem de guerras lembrava, tudo se escoava pela água como se a água fosse um ralo de si e me fazia dela e me tornava mar e eu gostava mesmo sabendo que não podía retornar.
Lembrei-me do mar, como quando se encosta uma concha ao ouvido e o escutamos no segredo mistificado do longe a disparar os tiros das ondas no branco morto, projécteis que rimos nos salpicos gelados da pele, desencostamos da orelha e fechamos os olhos e pedimos outra vez, mais ondas, de novo o mar, eu voltei.
 
 

sexta-feira, 27 de fevereiro de 2015

O trilho das veias



Perder o caminho das veias e deixá-lo livre, suponhamos que um dia a todos acontece só ninguém sabe quando e ainda bem, essa data põe-nos no trilho e faz o mundo girar, mantém-nos a perspectiva do amanhã mas hoje nada interessa, sem canais a percorrer vai para onde lhe der na telha e até pode extravasar desses pequenos tubinhos, orifícios, corpo, dimensão onde este se ache, seja ao alto seja derreado, torna-se-á volátil, uma ligeireza como o pensamento que no estalar dos dedos se cambia de cores à velocidade da luz, e risos, sim risos é importante, mesmo que disfarcem uma dor forte e intima nunca revelada, aliás a maior parte das vezes vem da dor, tão insuportável que chega o tal dia e dá-se o basta, BASTA! e perde-se o caminho das veias, do sangue, cortam-se as veias do bom comportamento e parte-se a louça, bate-se com os pés e grita-se imitando os urros dos animais até meter medo a quem assiste. Adrenalina. Fica-se muito cansado. Descansado. Sai tudo o que não se consegue dizer por causa do bom comportamento e do tal trilho do sangue dentro das veias. Depois apanha-se os cacos, sacode-se a poeira e compõe-se o cabelo e nunca se falará nisso. Não fica bem por causa do bom comportamento. Ou estávamos todos no hospício.

quinta-feira, 26 de fevereiro de 2015

Ruídos


 
De onde veio este som tremendo que de repente pareceu acontecer no mundo, tão feito de ruídos feios, uma barulheira sem sentido que me abstrai por não me conseguir abstrair do que me cerca, a perturbação dos sentidos que me descompassa no peito e mau grado meu, parece agarrar como impressões digitais tudo o que não quero? Trago um lixo de arrasto que tento desprender dos sons bons, palavras bonitas, frases que se escondem entre desperdícios que apodrecem mal-cheirosos, um turbilhão de vozes a ecoar e a distrair-me, não consigo concentrar-me e tentar escapar, fechar os olhos e ouvir o silêncio, toda eu mata-borrão de ruídos, o verbo maltratado e cuspido, pisado e esquecido, uma velocidade que não dá tempo ao luto e novos sons se martelam no som surdo... Fala-se pouco, cada vez menos, medo de falar, deixa-se de saber dizer, 140 caracteres para contar uma noticia, anunciar um estado, comentar saudades de casa.

quarta-feira, 25 de fevereiro de 2015

Elástico



Uma palma invisível cola-se ao dorso e empurra, impele, compele na ida por muito que os calcanhares se finquem no travão do resguardo ou do cansaço ou somente de outras vontades, ao menos hoje um apetite de vontade própria sem ser ao gosto de outrem, a contra-curva da espinha no sentido da liberdade, arcos de verticalidade que se endireitam a prumo e acabam na suavidade dos passos sem som e sem marca, obrigações, consciências ditadas, a palma aliviada. Por dentro a violência do chicote batido em si dirá a satisfação de outrem, o cansaço da mão soltará a liberdade de uns quantos e a verticalidade poderá finalmente dobrar-se, plástica e maleável, até de novo o uso lhe precisarem.

terça-feira, 24 de fevereiro de 2015

Portas & Janelas - Esboço nº 15



Na passada larga que levava nem ligava, não fora o monte de ervas agarradas a um tufo de terra húmida e escura a caírem-me no alto da cabeça seguia o meu caminho e não olhava, não ligava já disse, aí olhei e liguei, mirei o escorado carcomido do tijolo e as janelas, as portadas, os vasos de sardinheiras espertalhonas e atrevidas, uma brejeirice cuja mão não apanhei de tão rápida se escondeu para dentro, bati palmas e chamei Ó de casa, mas o de casa era fundo e escuro e os meus bicos de pés empoleirados no mais alto que me estiquei só atingiam a descoberta dos meus olhos às janelas em sítios onde dantes houvera muralha e em porta onde outrora fora sitio de pequena janela. Ruído nem senti-lo, só o escárnio do sangue das sardinheiras e este a mim arrepiou-me os cabelos sujos da terra que me parecia criar raízes para dentro, tal não era a curiosidade do desaforo, janelas abertas, portas cerradas, ladrão serei eu no peito se a vontade me aguça o temor, dizia-me a comichão a crescer, acerquei-me, ai tanto vaso, tanto flor!
Tanta dor!
Na passada larga nem ligam. Bem que os avisamos quando passam e lhes atiramos com um monte de terra para que não se cheguem. Que as sardinheiras cada vez se tingem mais de quem lhes toca.
 
 


(in Portas & Janelas, Abril-2014)

Todas as fotografias da Colecção Portas & Janelas são da autoria de Eduardo Jorge Silva

segunda-feira, 23 de fevereiro de 2015

Show time!



É manhã cedo, tão cedo que nem o dia acordou, risca o eyeliner nos olhos fechados e na boca os segredos da força contida pelo batom, aperta a explosão dos punhos pelo tailleur cingido aos botões que nas casas jogados silenciam o coração e alteia nos saltos a vontade do voo picado.
Marca números, dispara falas, comanda verbos, humedece línguas nos idiomas que dobra à vontade de outros, às vezes lembra-se de si em monossílabos ou em pequenos estalidos, mas as luzes incidem sobre as mãos e rápido dedilha teclas que aportam juízos aguardados noutras salas, noutros quilómetros, noutros mundos, noutras bocas que riem e não precisam da língua dela.
 
 

domingo, 22 de fevereiro de 2015

Ainda acontece


 
Ficar à toa. Perder-me sem me perder, descobrir-me em sítios inexplorados cá por dentro, algum recanto talvez escondido por mão minha na intenção de o deixar para a próxima vez, talvez esta que foi agora, não escutar quem me chama embora aviste nebulosa uma mancha que se agita acenando tentando desviar-me do caminho tão apetitoso da novidade. Ou talvez não. Uma queda apenas para dentro de um poço com o meu nome que me sussurra desde criança com vozes disfarçadas de outros e das quais vou no encalço, divirto-me recordando as pernas pequenas erguendo-se em altos tufos de vegetação e joaninhas, uma e outra correria, a minha mãe a chamar-me, uma confusão quando tudo se mescla e é o actual a conviver a galope no lembrado, e ainda e sempre o vai-vem sem idade de parar, os olhos afinal nunca amadurecem só a experiência de ir e regressar ao aceno suave que nos fala e pede para contar de onde voltámos sem condenar.



sábado, 21 de fevereiro de 2015

Estád[i]os



Esse processo absolutamente necessário mas de tal desperdício, assim o vejo, a que todos dedicamos um pedaço da vida, uns mais e outros em menor quantidade seja no desejo seja na precisão, esse bocado de vida que não chega a ser vida e tão forte ou ainda mais que esta pois os tormentos e alegrias que do sono e dos sonhos e pesadelos que deles se recolhem, tanto fruto e boca seca se lambem, atiram-me sempre para o recanto das horas inúteis, gasto pouco delas e antes o uso lhe dedicasse noutra função e o corpo castigado pela obediência do costume e do botão do desligar muda-se para outros andares onde a vizinhança de almas, essências, quereres não são benvindas, só os vendedores ambulantes, passageiros furtivos que deixam escapar por baixo da porta envelopes de má-sorte com cartas desgovernadas que teimo em agarrar e jogar para me entreter, acordo dorida do peito, o coração roubado, o sonho engolido na confusão de quem não lembro mas tudo tão lembrado na distinção de quem vivi. Ou os bons, perfumados, de que não quero largar mão e aperto, aperto, sorrindo ou cantando.
Gosto de mandriar acordada no morno da cama à procura do que me aconteceu nessa vida tão intensa dormindo que me poderia ter levado sem nada sentir.

sexta-feira, 20 de fevereiro de 2015

Conversas só minhas



 
Deixo o trajecto rasgar-me os olhos, afinal é tudo o que posso fazer, afinal é muito o que me dá, não substitui os mortos trá-los à proximidade das conversas e gargalhadas que por muito detalhista eu seja sempre eles acham coisa que eu não notei e eu dou-lhes outras que a eles resvalou, vamos seguindo até à chegada, um mais até logo, uma outra dose de veneno no regresso de olhos cortados e abertos ou fechados, não dá para ignorar nas pestanas apertadas ou nas mãos que pedem para pensar a paisagem apenas como estrada de destino, conheço-a todos os dias como as variáveis das minhas palmas abertas que se vão riscando de novas linhas surpreendentes, sabendo-a, sabendo-as, nunca as sei, descubro-as na invenção, distraída do que me esqueci de dizer ou do que o tempo me roubou para contar aos que comigo conversam.
 
 
 
 

quinta-feira, 19 de fevereiro de 2015

Não há milagres


 
Entre o sentir, deduzir e mesmo saber por dentro sem nunca o ter escutado sonoro e verbalizado por outrém até ler impresso a negro e distinto, oficializado, vai uma certa distância.
Não acredito em milagres nem tenho fés em doutrinas, creio no homem, procuro-lhe a verdade na palavra primeiramente e tenho-o como inocente até que me prove o inverso, mas mantenho lenta e longa uma esperança que teima em diluir-se mesmo após a sentença decretar que afinal a ordem de prisão mandou um bandido confinar-se e todos podemos ficar mais tranquilos.
E não falo só de crimes da carne, da morte, refiro-me aos da honra, do compromisso, da justiça, do merecimento.
Porquê a minha relutância, não o sei...
Sei que quando o leio o choque me paralisa.
Talvez porque desejasse poder reescrever a vida, desenhar o roteiro em letras e emendar-lhes as desgraças em castigos de aprendizagem em que repetissem um milhão de vezes não voltarei a fazer isto, e não faziam. Ou vou cumprir com o que disse e executavam, vou honrar-te com o que mereces e premiavam.
Mas isso seriam milagres e eu de todo acredito nisso.

quarta-feira, 18 de fevereiro de 2015

Momento



 
Escondo as mãos nos bolsos não porque tenha frio mas porque desta forma abafo o relógio que se enforca ao pulso esquerdo e à direita a vontade de o salvar, balouço os calcanhares para disfarçar a sua pouca importância e dou os primeiros passos a caminho da beirada do terraço, o Sol a brincar com a ponta do nariz e a distrair olhos numa e noutra gaivota enganadas de água mais longe, por aqui só planos de cimento e alguns carros, estacionamentos perto do céu a meias com fumadores escorraçados que fingem o vicio no pé encostado a uma parede que se diverte de branco muito sujo pelas solas marcadas.
Faço caretas ao rio avistado vestido de prata, [como és belo] a margem tão próxima como a ilusão do oásis, troco o chumbo do cimento pelo dourado da areia e engulo em seco, falta-me a água a ambas, uma sede do não ter seja lá o que for, seja lá quem não está comigo neste momento, que difícil é pedir socorro quando tudo nos grita para dentro.
Dissolvo o momento, uma nuvem oblitera os raios de sol, alguém me pede lume e eu lembro-me do relógio.

terça-feira, 17 de fevereiro de 2015

Carnavais




Se poucos são os prédios que actualmente têm varandas não sei porque razão haveria de se esperar serpentinas a colorir as beiradas atingidas na pontaria de um extremo ao outro da vizinhança, espreitamo-nos, sabemo-nos mas não nos conhecemos para além da educação restrita, não sería hoje que se iría trocar cornetadas ou esguichadelas e papelinhos a pontilhar o fundo das traseiras é pura poluição condenável no fecho repentino das janelas corridas.
 
Mas houve roupa lavada, carros à mangueirada e detergente a rodos, crianças a correr e a obrigar os pais ao mesmo no aprendizado da bicicleta em equilíbrio dos grandes, jogatinas de bola de fazer suar e claro, os que nada tiveram direito porque foi dia comum e a bater as solas, caminharam o percurso dos injustiçados para o emprego.
 
Carnaval com sabor a mal, é Carnaval ninguém leva a mal, não faz mal limpa-se ao jornal. Carnaval com sabor a Domingo.

segunda-feira, 16 de fevereiro de 2015

On/Off quantas vezes quiser


 
O que vale é o pontapé, o estalar dos dedos, o pestanejar, a vírgula, o suspiro ou até o suster dos respirares para levar o resto do oxigénio, contradições de vida, um ar que enche para não chegar, um peito cheio de nada, uma catapulta para outro lugar e outro género, permissões de governar que até agora nesta dimensão não seriam bem encaradas, vou e volto e ninguém dá conta, ninguém fica a ocupar um assento quente visitado na minha imagem, estou e não sou, parti mas deixei o invólucro a marcar presença, conspirações a olho nu.
Lá e aqui, questiono, indago-me. Até quando funcionará este mecanismo, já tão usado, tão manipulado mas que parece sempre tão bem oleado e nunca me deixou ficar quando pretendo partir?


domingo, 15 de fevereiro de 2015

A casca de Domingo



Esta extraordinária aversão a Domingos - que está quase a tornar-se tão detestável quanto a que nutro pelas Quintas-feiras - tem o condão de me deixar dentro de uma casca que me incapacita para a vontade das comunicações, ou seja, de telha. O cheiro domingueiro dos fatinhos a desfilarem em procissão bem comportada na prole familiar em contraponto com a minha roupa surrada, deixa-me no canto, cansada que estou do uso de traje militarizado na semana útil só pretendo à-vontade, e ao cruzar-me no passeio do bairro, trela na mão e no final o cão que parece o lobo, decerto serei o tema da viagem breve de carro que os leva ao doce lar onde o almoço de reunião os espera de oito em oito dias, de seguida o espaço comercial do qual me resguardo e nunca sei de novidade alguma, e depois o regresso, ruidosos, portas de prédio a bater, eu às voltas nas linhas do caderno emaranhada na adivinhação da insónia que me espera. Porque será que nunca durmo de Domingo para Segunda?
Porque será que toda a gente detesta Segundas-feiras e eu não?

sábado, 14 de fevereiro de 2015

Outros Sábados



 
Sábado de Carnaval.
Não há escola, não há hora, não há regime que obrigue ninguém a ir para a cama quando a noite chega, só riso e brilho e vontade de dançar.
Liberdade, liberdades, onde vais? Vou para o Carnaval, tem cuidado que nós já lá vamos ter, termina-se a maquilhagem, carrega-se o traço do eyeliner provocador, pesam-se as pulseiras nos braços arqueados prontos ao par puxado pelo salão, olha o mascarado, olha os papelinhos, cuidado com a bisnaga!
A orquestra repete-se no refrão e ninguém quer saber da imperfeição do inglês, pede-se desculpa pelo encontrão, os homens levam as damas ao assento, pedem capilés ou groselhas, fumam português suave, falam do concurso de máscaras da tarde em que o filho quase ganhou...
Um dominó de cetim negro toma as mãos de uma rapariga perdida na letra sabida de cor, rodopiam, ganham espaço, ele eleva-a e gira-a pelo alto parando o tempo, a música, o coração pintado a batom vermelho na maçã do rosto.
Até ser cinzas de quarta ela procurou em todos os dominós negros um que se chegasse de novo a ela, mas todos os que vieram buscá-la para dançar tinham o rosto descoberto.
 
 

sexta-feira, 13 de fevereiro de 2015

Olhar com Vista sobre o Rio (21)




Sol-sombra, rio-céu, palavras-papel, eu-tu, um quase dó-li-tá para me saber caír nos braços de uma nau que não se agita mais que olhos que cerro ao de leve, imaginação das águas que turbulentas no sono pedido, não que peço, gosto que te faço, finjo-me fácil, fazes-me princesa e atravessamos os dois, tu água eu mulher a nau cacilheiro plena de escravos de sonhos e pesadelos de voltares e novas ondas de mares, que até alguns tu consegues enganar.
 
Finjo que desperto, enferrujo vontades a fazer de verdade a mentira que acordo.
 
Tu dormes, meu Rio?


 

(in Olhar com Vista sobre o Rio, 2012)

quinta-feira, 12 de fevereiro de 2015

As conversas são como as cerejas, sobra o caroço (6)



Conversa de WC feminino antes do regresso ao expediente: lavam-se mãos, escovam-se dentes, retoca-se a maquilhagem, penteia-se o cabelo.
Do ruído de fundo abstemo-nos de reproduzir as respectivas onomatopeias por razões evidentes.
Saiem umas, entram outras, os espelhos e o lugar aos lavatórios permanecem ocupados assim como a troca de informações sobre serviço, segredinhos, truques de beleza.
É um zumbido idêntico ao de um enxame em frenético labor, constante, atento, modulado.
E é intempestivamente quebrado no seu ritmo pela entrada de uma utente com o escancarar da porta e um berro:
- Vocês não vão acreditar!!!
E outra, enxugando as mãos a papéis, num tom baixo:
- Que susto! A menina vem aos gritos!
- Mas vocês não vão acreditar!!! - continuou, de olhos muitos abertos, braços abertos e ainda mais alto.
E a outra no tom de zunido e reprovadora:
- A menina hoje está... está, olhe está muito exaurida!
- EXAURIDA??? QUE É ISSO?
- Olhe, é falar alto!- e amachucou os papéis e lançou-os elegantemente ao caixote do lixo.
 
 
 
 
 
[Oh rapariga! olha que exaurida é cansada, extenuada, esgotada de ouvir tanta estupidez... Será que alguém me ouviu?]

quarta-feira, 11 de fevereiro de 2015

E já agora



Que me molharam cabelos, rosto e se fizeram de lágrimas em gota a deslizar na minha pele, coisa que nem sequer disponho mais por as terem enterrado com outro que não devería ter ido por não ter sido aquele o tempo dele, um logro que o apanharam de olhos escondidos para dentro a sonhar com pautas de música e a dedilhar cordas no som fingido de duetos que o puxaram para um mundo intransponível aos meus berros, que chova mais e ainda mais, que me alague boca e me cale a surdez das palavras até afogar as que não esqueço, que as leve de mim lavando essa memória agarrada de ganchos, que tanto engelha mesmo sem água, tanta saudade fere mesmo sem propósito e o verbo por vezes não consola.

terça-feira, 10 de fevereiro de 2015

Ninguém pode com o coiso




Tento distanciar-me, alongo a passada, contraio os músculos abdominais e concentro-me na fuga. Nem mesmo assim: O par colado atrás de mim constituído por duas mulheres alimentou-se da minha aceleração e espevitou os calcanhares. É delas que quero escapar, da sua conversa. Há vários metros de passeio que os decibéis me escarafuncham o bicho do ouvido sobre um tema de enfermidades na família de uma delas, a busca sobre médicos de especialidade, os telefonemas, tudo ao pormenor, tudo a nú e arrematado no final das frase pela palavra coiso.
Hei-de continuar mais adiante a verificar na minha infrutífera fuga, que o coiso me há-de perseguir, estacionar nos sinais luminosos enquanto aguarda o verde dos peões, plantar-se enquanto arranca toda a espécie de arvoredo rasteiro e palmeiras a eito, toda a paisagem se derruba porque o coiso é poderoso como um adjectivo, mais! Um superlativo que arrasa até nada restar!
E nem mesmo as duas de bofes de fora pela caminhada forçada conseguem - finalmente - resistir-lhe, soprando, dobradas, e ficando para trás, que esta senhora aqui da frente  [EU] anda que nem coiso!!!

segunda-feira, 9 de fevereiro de 2015

Cada coisa no seu sítio



Entre o que sou, o que pareço e posso mostrar ou mo permitem, o que desejam que eu seja ou tão somente o que conseguem ver, transporto comigo as palavras todas e dou as que conseguem ouvir, ler, tirar de mim na medida do que vou riscando e arriscando, ouso para que me desafiem, para que se descubram na emoção do desconhecido de eles mesmos, outros que são encobertos na vida parda e receosa do sentir.
Há os que fogem e não regressam vez de novo, não pretendem o arrepio das linhas no entendimento da semelhança das suas vidas e na vontade da mudança, encarar a ficção é ver a sua realidade.
Os que se comovem e riem, nervosos, roendo as unhas, passando as frases na ponta dos lábios e digerindo os parágrafos, voltam e desaparecem, drogam-se no veneno das dimensões e agarram-se em tempos difíceis a trechos que fixaram na memória para mudar o rumo da vontade, mas sem uma verdade absoluta perdem o sentido e não sabem onde encaixar a vida.
E depois os que se entregam de alma, corpo, dão tudo, participam, desafiam-se, tomam partido, pedem-me mais, confrontam-me, engasgam-me e quando a peleja termina o capítulo, retoma-se a vida comum, enxuga-se o suor, saram-se as feridas, regressa-se a casa e volta-se a ser homem quem o é e mulher quem sempre o foi.

domingo, 8 de fevereiro de 2015

Oxalá!




Acordou  no sobressalto de um ruído batido a tempo certo, cavo, conhecido de uma lembrança escondida num espaço do corpo por arrumar que lhe fez revirar os olhos ao compasso do coração agitado, as mãos presas na dobra do lençol repuxado ao queixo. Duvidou do acordar, cerrou os olhos e sentiu o céu da boca acre, o barulho parara, a recordação bolsou-lhe numa golfada de cores, de regresso o batuque.
Já tinha as pernas compridas, os joelhos ainda eram bicudos como cotovelos e os pés alongavam-se como se pudesse dormir de pé, duas protuberâncias começavam a envergonhá-la logo abaixo do pescoço, tanto quanto as borbulhas que todos os dias lhe apareciam na face. Corría muito, tinha muita força, ninguém lhe ganhava. E o resto eram histórias.
O cavalo de pau, com apoios de balouço, corría tanto como os verdadeiros. Ou pelo menos, era nisso que ela acreditava quando se empolgava no inicio do corredor lá de casa e lhe dava espora e arqueava as costas para a frente e para trás para ganhar balanço e avançar no soalho até ao fim.
Que felicidade!
Aquele som cavo da madeira a ser batido pelos cascos imaginários de um cavalinho de pau!
Puxou a roupa de cama sobre o rosto, riu e murmurou, Oxalá ganhes, oxalá venças como eu!
 
 

sábado, 7 de fevereiro de 2015

Chão [da noite]



Não tenho medo. Nem frio. Como vês, parágrafos curtos para não dar azo a intimidades. Estas coisas do escuro dão sempre lugar a proximidade, sabes como é, ainda mais numa rua estreita. Nem vivalma. Se me desse agora para o lado do coração era um ror de palavreado, as paredes a encherem-se de letra, já basta os grafitis, não vamos por aí, a noite convida a coisas que quando o fio do dia chega arrependemo-nos e não há como voltar atrás, é um hálito que não se esquece e já to disse, não tenho medo e não pretendo tê-lo. Recuso-me a ter medo do medo. Aliás, vê bem: Nem sombra tenho. Habituei-me a este sentir e já nada me incomoda, até me podem cuspir. Calo-me. Uma tumba. Sei-lhes os passinhos tristes, as alegrias, as bebedeiras, os enganos. O aconchego de quem não vai e me aquece. E por vezes, tantas, me aquece até arrefecer e se esquecer e se fazer chão como eu.
 
 

sexta-feira, 6 de fevereiro de 2015

Polos




Desde todo o sempre houve um fascínio da minha parte pelo diferente, muitas das vezes encarado pelos demais como o feio, o rejeitado, até o coitado ou o grotesco e incrédulos nesse gosto peculiar a par com a arte amada pela dança e outras chamadas de finura delicada tão ao dom de uma menina de rendilhados predicados, logo se desconcertavam no apetite de minha parte e trocistas legendavam o jeito num jeitinho, e a exclamação surgia:
- Ah! Isso é para veres se nos chocas!
Um tremendo de um choque levava eu, o preconceito à flor da pele corría comigo a sete pés e cada vez mais longe de uma normalidade pretendida, acertava-me numa distância difícil e saborosa, diversa e diferente, um íman que me atraía para um universo de mundos de múltiplos olhares onde o meu, diferente, era apenas, normal.

quinta-feira, 5 de fevereiro de 2015

Cabide


 
Eu aqui e tu aí, pacificamente.
Observo as engelhas de um mal-estar e o suor já ido ainda contidos no corpo sabido de mim enquanto tudo o que dás se evaporou aos olhos dos que falas, dois linguajares de ficar e saír, um lavado, outro de casa, hei-de dobrar-te na delicadeza de novo uso e recomendação, afinal és tu que sais e vais e te mostras, a de pele nua não se exibe, anda por cá no verbo cru e tosco, enchumaça-se no volume ao aperto da condição do corpete da palavra, eu aqui a ver-te pendurada em figurino de espera. Pacificamente.
Que farás da palavra belo sem a verdade?
 
 

quarta-feira, 4 de fevereiro de 2015

Simples como um sorriso




 
Quando menina entretinha a imaginação, o tempo e as mãos a sobrepôr folhas onde desenhava casas com muitas janelas. Recortava essas janelas ao seu centro como se fossem portadas  que se abriam e nas folhas coladas por detrás havia a surpresa de uma flor ou de uma cara sorridente que espreitava, um pássaro ou um olá a amarelo. Incomodava as visitas e pedia para descobrir os segredos das janelas e o meu fascínio era sempre maior que a surpresa dos adultos, claro.
 
Lembrei-me como ficava feliz com o sorriso dos outros e como tão pouco era tanto para mim, como me fazem falta as coisas simples como um sorriso ou uma surpresa, uma pequenina janela recortada de um papel a adivinhar-se sabe-se lá o quê.
Olá! Como um raio de sol.
 
 

terça-feira, 3 de fevereiro de 2015

C782 - Profissionais




Bufa o motor, bufa o motorista a olhar para o relógio, bufa a senhora no bico dos pés a correr estrada fora, sacos e saquinhos, descabelada pelo destempero da hora e desespero da eminente partida, acena, último fôlego para o salto triunfante e dentro do transporte conquistado sorri largamente para se ajoujar de joelhos num rasgado obrigado.
Implacável, a curva feita a preceito, não distrai o profissional para o retorno do agradecimento e a passageira aos tombos lá se acomoda entre o corpo e a bagagem, os varões e os demais encontrões nos passageiros num assento que encontra vago. 
Recompõe-se, pega conversa já começada, são todos colegas - chamam-se clegas entre si - abrem ali mesmo o expediente e dão inicio ao serviço, ratam deste e daquele, organizam ficheiros e comentam o que está em atraso no gabinete de fulano e do Dr. não sei quantas, lastimam o horário e dos subsídios não pagos desde o ano passado, dos últimos reformados, dos processos acumulados, dos bons velhos tempos nos velhos edifícios que desde que se mudaram nunca mais foi o mesmo, agora até têm de levar almoço já feito e correr e caír, vejam só.
Profissionais que são para o País que servem, se entrassem de greve é que era, havíam de ver...
Dizem até amanhã ao motorista, este vigia o relógio, arranca a toda a brida.



(in As fantásticas aventuras do C782, Outubro 2014)

segunda-feira, 2 de fevereiro de 2015

Campo de Palavras (20)



Árvore fora eu e assim mimetizada de mim dentro de um tronco as palavras não ressoaríam para se escrever, ler, escutar na saliva muda de outras bocas, outros ouvidos.
Também não ía a lugar algum, que quando vou seguem as palavras comigo que mesmo queda lá vão elas vestindo-me.
Mas mesmo não indo ou indo silenciosa como uma árvore, sempre o verbo me trairia que chegam de mim muito primeiro as palavras que me fazem, as palavras que sou, toda eu a que sou conhecida como palavras. As que plantei ou as que esquecidas aparente, se enterraram de novo na terra e de um fio de chuva, um fio de sol foram lembradas por alguém na minha boca, no meu caderno. E o tronco fechou-se e eu não precisei ir.
A árvore vai, a árvore caminha, a árvore viaja.

domingo, 1 de fevereiro de 2015

Domingo, depois das 4



 
Chegavam ruidosos, aos pares, em trios, elas com elas de braço dado, sempre a partir das quatro, vinham aos Domingos para os cocktails e o jogo da canasta ou simplesmente para estar em casa dos amigos, o gosto da conversa ou pôr a conversa em dia semana a semana, entreter as crianças quem as já tinha, diziam-se a andar para velhos mas não tinham chegado aos trinta sequer e se não fosse aquele pedaço de tarde a aliviar a vida que sería a vida sem os de sempre.
Os homens preparavam as bebidas, cortavam laranjas e limões, falavam com o cigarro na boca e elas na cozinha trocavam segredos da intimidade feminina e calavam-se na aproximação de alguma ainda solteira rindo-se dizendo que haveria de chegar o tempo dela, dispunham aperitivos em taças de vidro e ralhavam o filho para não correr.
Depois reuniam-se todos à sala, eles a pedirem atenção a elas ao jogo, elas a cantarolarem em conjunto uma música italiana, os pequenos a pedirem para provar o cocktail.
As solteiras ficavam atrás nos seus vestidos floridos, sentadas muito direitas, a dar cor à cor açucarada das paredes como se aguardassem a sua vez de ir a jogo, de poder ter voz. Até lá enfeitavam um quadro, compunham uma cena que parecia tão perfeita num Domingo a partir das quatro da tarde.