Todos os textos são originais e propriedade exclusiva do autor, Gasolina (C.G.) in Árvore das Palavras. Não são permitidas cópias ou transcrições no todo ou/e em partes do seu conteúdo ou outras menções sem expressa autorização do proprietário.

segunda-feira, 1 de novembro de 2010

A árvore e a palavra

Ao fim de três anos continuam em mim a magia da descoberta das palavras e o apreço pela grandiosidade com que as árvores nos abraçam nos frutos generosos depois de as tratarmos como enfeites. Se as palavras se penduram na árvore como fruta a trincar, alimentar, confesso que serei a mais egoista e sempre mas sempre, insatisfeita. Por mais que escreva, por mais que me canse das linhas, por mais que corra para elas e esqueça o mundo lá fora, o eterno retorno da fala escrita, do bem confessado, da raiva despejada sem censura, farão de mim talvez, aquela que melhor se conhece. Ou a que mais se resguarda, que coisas destas nem ao espelho as digo, moldo-as em letras que espero submergam em azul e me evidenciem o bem, o mal, o humano que eu sou.
Sou livre.
Sou árvore.

domingo, 3 de outubro de 2010

Espelho (meu)


Suave, patine que acaricia suave. É do segredo. É dos sentidos. Proibidos. Como quartos que permanecem cerrados numa chave que enferruja num bolso e que todos os dias aguarda ser descoberta na história relatada em sussurro por causa dos fantasmas da lembrança de outras estórias salivadas em abertos olhares suspensos por um tom acima, mais acima, depois cavo a fechar de novo a revelação, o quarto, a chave esquecida...
Relance que foge, imagem derrapada na periferia. Ainda assim, suave. Babada nos contornos derretidos por noites, dias, outras noites em que o reflexo sempre lá ausenta-se da vista. Suave, olhos suaves a perdoarem as imperfeições e as cicatrizes navalhadas por um tempo de ontem.

sábado, 2 de outubro de 2010

Minutos em páginas



03:05 - Tenho de ir dormir, é forçoso que durma, não devo aqui continuar ou ainda me perco esta noite.

05:26 - Já dormi, agora posso voltar e ficar e escrever.

06:00 - O café esfriou, sabe mal, devo fazer um novo que me mantenha os olhos abertos para achar as teclas, para que preciso eu de letras impressas em teclas se sei o caminho delas mesmo às cegas e mesmo sem escrever tenho fiadas de palavras que dobo, dobo sempre numa tarefa sem fim à vista, páginas que carrego onde quer que vá.

06:10 - Os pássaros. Em breve manhã solta.

06:30 - Tenho frio nos pés, calor nos olhos.

06:31 - O gato quer leite e o cão quer rua, eu quero dizer que continuo às voltas com tantos, um baile que cansa e envenena, sei que faz mal e vicio-me em pensamentos sobre a última vez ser à minha ordem.

06:55 - De repente o sobressalto do branco, encharco-me em planos leitosos, não sei se durmo-se escrevo-talvez sonhe com narradores que me lêem alto para me manter acordada.

07:15 - Que aconteceu, para onde foi a noite, as minhas palavras, o tic-tac que ritma os dedos na emergência dos sentidos, eu toda dormente, eu sem tempo de dizer que o há.

07:17 - Matei-o.

07:18 - Não me arrependo, mas claro que me arrependo, preciso do tempo para me queixar dele, para me dar ao gozo renovado de o matar tantas quantas vezes a transgressão das palavras for o coração à boca, o vómito, a explosão do que sou em partículas suspensas nos minutos contados pela vida.

07:30 - Durmo, sossego, tanto sossego nesta paz...

sexta-feira, 1 de outubro de 2010

Favorita



De nada suspeitei, entrei pelo dia como quem deseja que a noite ainda lamba paredes e desenhe monstros nos objectos familiares que nos guiam a mão às escuras. Como de costume não fiz parágrafos com travessão, mantive-me na mutez que se incomoda com saudações ruidosas e sempre prefere os cinzentos ao acordar.

É assim que somos, um dia som, um outro pedra.

Sem voz, sem suspeitar que o roubo perfeito actua na insensibilidade do adivinhar.

Porque não quis dizer não me fez falta, acomodei-me à nova situação afónica, entoei músicas para dentro e até acompanhei com o bater leve do calcanhar, resolvi obrigados com um jeito de cabeça e um sorriso apertado aos dentes. Se estava sem voz, melhor fechar a boca, não vá esta ter ficado entalada como resto de refeição mal escovada e aproveitar a escapatória para se fazer a novo dono.

De nada suspeitei, já o disse, nada me doía, talvez sempre tivesse sido assim e só naquele dia a revelação se iluminasse.

Mantive secreta a condição, falei pelos olhos, pelas mãos, pelo encolher de ombros, eu quero lá saber que achem estranho eu não dizer nada.

Já se passaram uns dias... desde o dia em que o caminho limpo se manchou na folha de plátano vermelha. Castanha. Ouro.

OH

E fiquei de boca aberta, o Outono, o Outono, o Outono que eu gosto!

Guardo a folha espalmada no caderno.

Para quando tenho saudade da minha voz de menina.

terça-feira, 14 de setembro de 2010

Árvore, árvores

Não acaba o Setembro sem que eu aqui fale. Volta não volta, retiro ervas daninhas, alivio a árvore, faço-me de novo raíz e penso em fruto, salto os galhos das etapas que o tempo é meu inimigo e as saudades de um dia são-me iguais às de anos.
Não me escondi, piso ao de leve carumas e só os fetos partidos no encosto das pernas vagarosas dos ruídos denunciam viagens até aqui, sento-me, mordo uma folha, cuspo letras, tempo sério este...
Não acaba o Verão sem eu voltar com imagens, e também imagens com palavras, e também eu toda, aos bocados, aos eus espalhados numa ventania que me enrola a um canto e admoesta: Às armas, à árvore por quem és.

segunda-feira, 28 de junho de 2010

Reinventar

Como um bago de carvão que se apanha entre dedos negros e se risca o jogo do galo na esperança que o adversário caia na grade descurando a janelinha aberta, assim - oh inocência! - peguei nas minhas dores e inventei-lhes outro dono. Não são mais minhas, escrevo-as, não as amarguro ferida, permito-me uma doce e ténue vertigem pelos que padecem comungados em qualquer coisa que um dia pareço ter experimentado, lamento-lhes a perda, a injustiça e até os animo, incito a melhores horas, levanto-me e fecho o caderno.

domingo, 27 de junho de 2010

Reencontrar

Abraços nos olhos, o comedimento impedía outras manifestações, de resto beijos no rosto, sentidos, dados na face proeminente onde se alteiam as maçãs para assim poderem receber dignas tal exemplo de alegria, juntaram-lhe uma mão rente ao pescoço, uma palma aberta sobre as costas para abranger mais corpo e puxar a si o peito latente. De seguida o sorriso, sorrisos, sorrisos com caminhos sabidos e enfileirados até chegarem à boca do outro e o outro engolir e retribuír como um brinde. Misturaram-se palavras repetidas, tempo, saudade, lembrança, códigos manipulados na perfeição, alquimia da memória em espaços medidos pelo bem querer. Até à próxima, sei que não esqueces.

sábado, 26 de junho de 2010

Reescrever

Perguntaram-me se ainda atravesso o Tejo, uma forma elegante de me questionarem quanto às palavras que parecem ter morrido antes de se pronunciarem no silêncio gravado das páginas, ou ainda que faço eu para justificar o tempo fugido, já que parece que não faço nada. Não faço nada. Escrevo. Metros de linhas que se vão enrolando para evitar o amachucamento do esquecer pelas coisas que deslizam entre dedos. Coisas e eu. Se bem que de repente, deixou de ter importância a ordem do eu no caos das coisas por haver muito de desordem no meu peito. E ainda assim, escrevo, risco o rio inventando histórias para o manter tão verdadeiro quanto liquido, desfaço-me das coisas, o caos tão apetecível .

segunda-feira, 10 de maio de 2010

O bater do coração (dez)

Chovia. Telefonou-me. Disse que não quería ser ele, quería ser a nostalgia de ter sido o que sempre desejara ser e já não podía. Falei-lhe de mim. Roubei-lhe a nostalgia. Ele não me ouviu. Falou da saudade de menino e das contrariedades da vida, não ía a tempo, perdera tempo, o tempo era o demo e ajoelhou-se. Ajoelhei. Obriguei-o a erguer-se e a achar a ínfima particula de pó de oiro no sonho vivo. Não se encantou. A realidade vergou-o. Dei comigo a apanhar restos. Não sei se dele se meus. Chovía. Chamaram-me para eu saír de tanta água.

domingo, 9 de maio de 2010

O bater do coração (nove)

Ao começar qualquer texto por SE condiciono (à minha vontade) aquele que me ler. Não propriamente no objectivo do que escrevo mas na função interactiva das sensações. Não descobri nada de novo, reponho uma fórmula comprovada como os cães de Pavlov. Mas se eu começar qualquer ensaio por SE é porque também eu me condiciono e espartilho no que podería ter dito, ou no (quase) tudo que (não) revelo, tornando-me assim... a mentirosa de mim mesma. Ou a omissão das convulsões que me atacam a cada palavra digitada na rapidez do sentir em que a boca murmura frases que os dedos (intelectos) não acompanham à razão da luz. SE eu pensar que sinto deixo de sentir? Acaso o meu coração pára se tudo o que escrevo não é mais meu e logo, não me pode fazer mal? Ou porque (in)suportavelmente as mentiras se tornam duplas estórias daquilo que verdadeiramente sinto quando escrevo sobre outros?


Então, serei eu, outro.


E o outro um SE.

sábado, 8 de maio de 2010

O bater do coração (oito)

Chamou-me lá do fundo, sem ruído, com os olhos, continuei os passos com o olhar recusando qualquer aproximação, não vou, vem cá tu se me queres dizer alguma coisa, mas alguma coisa diferente, nova por diferente, desculpas não ou argumentos rebuscados de outra forma não vou, prefiro sempre os olhos às palavras gastas e ensaiadas, ouço-o e tenho vontade de correr, talvez em movimento lento como se vê nos filmes e com uma banda sonora com trompetes de vara, percussão suave no contraste, um solo de jazz gemido, chorado e espremido por vontade contrariada, sopro, encho as bochechas de palavras que se tornam ar. Chamas e eu não respondo.


No dia que falarmos esvai-se tudo.

sexta-feira, 7 de maio de 2010

O bater do coração (sete)

Deitei a mão ao pote de vidro e li a etiqueta: Doce de medronho, doce de abóbora com nozes, doce de amoras. Um de cada. Não me interessa como são feitos, se levam açúcar ou aspartame, se têm muitas calorias, se sabem bem, quero-os pelos rótulos pintados a aguarela num infantil traço que me lembra os meus de criança e me leva à cozinha perfumada de ébrios travos em que a marmelada era mexida sempre em 8 pela firmeza do braço da Mãe, acidulado na boca, sinto saliva a mais, quero dizer coisas mas ainda não sei como fazê-lo por isso vejo atenta o que ela faz e guardo para mim, um dia vou saber o que tudo isto quer dizer. Os potes estão abertos a fumegar no parapeito da janela, acompanham-me abelhas riscadas que afastam o indicador curioso da prova. Depois as rodelas de papel vegetal, ainda as abelhas teimosas no doce que babou, o parapeito dá-me pela altura da testa, encavalito-me no bico dos pés. Hoje faço um desenho da compota, da geleia, das abelhas, da Mãe e da filha. Talvez nunca coma estes potes que comprei. Amo-te Mãe, já sei dizer o que sentía.

quinta-feira, 6 de maio de 2010

O bater do coração (seis)

Forte-forte, descompassado, não me curo desta arritmia dos sentidos, sentires, portas da emoção que num frémito me deixam lágrimas no céu da boca e gargalhadas nos olhos. Não há uma combinação certa para abrir este cofre forte-forte, é um som, um gesto, um cão que pára quando o chamo, o gato que me desvenda os olhos esmeralda como prenúncio de sol para amanhã, o chamariz árabe do amolador em dias de cama preguiçosa, quantas vezes já te ouvi? aqui, em Coimbra, nas terras dos sonhos em que plano como o açor a busca de caça. O meu alimento é o mundo, a chuva o meu beber e porque quero que assim seja, há-de o Tejo ser eu desfeita no choro da saudade.

quarta-feira, 5 de maio de 2010

O bater do coração (cinco)

Não está lá ninguém, já não está lá ninguém e ainda assim não consigo deixar de abrandar os passos que ainda à coisa de segundos eram meus escravos e obedecíam à razão. Perco a razão todas as vezes que sinto o cheiro do caminho que passa perto daquela porta que foi batida tantas vezes por mim, não está lá ninguém, tento ver a janela, a cortina a apertar-se na mão forte e grande dele, ou os vidros a encandearem o Sol já baixo e por isso não posso ter a certeza que de não esteja lá ninguém. Mas não está, é o peito que mo diz na falta de ar. Não está lá ninguém e prossigo devagar, tem de estar, não está certo que não esteja ninguém comigo tão perto, basta bater à porta, assobiar e esperar que assome à janela, ele, ele à janela a dizer que eu suba. Apuro o ouvido, tão pouco me chega o meu nome, não há voz, não há silêncio que me permita escutá-lo, não há ninguém. Há cinco anos que espero avistá-lo cada vez que por ali passo e que sei que não está ninguém.

terça-feira, 4 de maio de 2010

O bater do coração (quatro)

À medida que vou andando ao contrário do Sol apercebo-me da minha cegueira. Há tanto a descobrir nas coisas que ficaram para trás, consigo agora a esta distância entender-me lá onde fiquei, no pátio a andar de bicicleta e de joelhos esfolados ou a mão na barra, trémula de varadas nas pernas hirtas sob o olhar negro de Madame ou o choro imparável pelo silêncio que a morte varre quando me levou quem eu amo.


À medida que caminho e penduro o Sol nas costas apercebo-me de novas cores mesmo de olhos fechados, o cheiro intenso de um Tejo baixo, o sabor de uma voz que se destaca no ruído daqueles que ombreiam anos a fio sem lhes sabermos do gostar, do desgostar. Ando pesada de tanta recolha que tenho feito, não desperdiço nada, tenho receio de me esquecer de tudo, de nada, de como era e agora ando.


À medida que o Sol baixa estudo a lição, encavalito a noite no amanhã e um dia, espero, havemos de bater de frente.

segunda-feira, 3 de maio de 2010

O bater do coração (três)

Não creio de uma forma poética em histórias de amor mal resolvidas, se fossem resolvidas eram passagens na vida das pessoas, bocados esquecidos que não vêm ao caso de tão pouco que tiraram o sono ou nem mesmo voltaram a fazer pensar em beijos, aquele beijo, dito de uma forma marcada entre sílabas para que se entenda que era proveniente daquela boca que se quería e se quería articulada em palavras simples, gosto, quero, Adeus.

domingo, 2 de maio de 2010

O bater do coração (dois)

Há quem pense - e se calhar deseje - (ou talvez não, talvez até o oposto) que eu parei com esta coisa das escrevinhações. Pensam mal. Errado. Não só não parei como aumentei a produção para quase o dobro. Simplesmente, o papel fascina-me e entre escolher o frio do vidro que me fere a vista, prefiro cerrar os olhos de prazer ao toque macio das folhas.


Mantenho a mesma paixão por esta Árvore e sem relógio a ditar-me horários muitas vezes aqui chego em tempos de dormir e sossego, quando no cansaço das vozes escritas abraço o tronco rugoso e lhe murmuro segredos pequeninos, quasi sem importância, meras coisas que trago do dia e carinhosamente ela me pede estórias.


Às vezes não o são, sou só eu, sou eu e as minhas invenções e as minhas falas, o meu mundo da Lua ou a desatenção de menina que me leva a outros lados, eu sentada a escrever, nunca saí daqui e no entanto...


O meu coração bate do outro lado do mundo. Também. Mas não sei explicar onde é esse lugar.

sábado, 1 de maio de 2010

O bater do coração (3 anos)

A 1 de Maio de 2007 entrei como Gasolina e apresentei o Flor da Palavra. Fi-lo a meu gosto, ao gosto do que me sai em letras, ri, zanguei-me, tornei-me próxima de uns quantos o quanto o virtual afasta e aconchega, o sonho no imaginado desse terreno e os pés sempre assentes em solo firme vivendo a vida real conforme ela me deixava e eu melhor sabía.


Porquê Gasolina e não um desses pseudónimos encantatórios de fazer sorrir sem se sentir ou tão misteriosos que não se consegue decifrar nada? A explicação é tão simples que aborrece e assim, prefiro que quem me lê lhe ache os predicados e defeitos que melhor o satisfizer.


Já da Flor, a da Palavra, essa quero esclarecer: foi tudo bruto e natural, sem preparações, sem correcções, a rama visceral do que me sobe pelas goelas e se verte em composições a que se combinou chamar texto. Talvez hoje rebaptizasse a Flor e lhe chamasse Raíz da Palavra, uma coisa funda que não se vê mas sabe-se, tem de estar para existir a Palavra.


E é nessa fundação sólida que encontro a Árvore, não com uma mas com todas as palavras que conheço e mais as que descobrindo me surpreendem e ainda as que se revelam numa novidade de sentires e emoções e traduções do querer dizer!


Mas a Árvore foi também a semente, uma geração de identidades distintas, autonomas, géneros estranhos que não pertencem aos dois grupos e ainda assim o são, aperfeiçoados pela pena ou defeituosos de tão comuns que me obrigam a cuspir-lhes na cara pelo nojo de lhes ser.


Tenho coração acelerado. Não sei se o meu se o de outrém... Mas antes assim, que preciso de tantas vidas quantos os que sou e já que o tempo é canalha ao menos que morra de coração cansado de tanto bater.

quinta-feira, 22 de abril de 2010

Eu explico

Os dias andam a fugir-me como areia entre dedos afastados e por mais que economize caminhos, tarefas e sono, não tem acrescentado muito mais ao mais que preciso fazer. Rapo os restinhos e vou-me enganando o melhor que sei, ou seja, nada sei porque parece que desperdiço o que ganhei. Quero eu dizer que viver à minha maneira está curto, e do que anseio materializar há mais de imaginado do que palpável. Vou desta forma coxa dormindo em trajectos, escrevo o que sonho nesses assentos mal aquecidos, almoço enquanto trabalho e janto letras, toda contente com esta dieta. Da mão esquerda dou uso às teclas e à direita afago cabeças de cão e gato, não necessariamente por esta ordem.

Mas se no final do dia o regaço está tão vazio porque raio me sinto tão cansada?!







Ando sem tempo de aqui vos responder. Obrigado a quem vem.

quarta-feira, 21 de abril de 2010

Presente

As desculpas de criança há muito que havíam ficado para trás, que esta coisa do social cresce à medida dos anos a aumentarem e da vida a minguar.

Nunca gostara de funerais, velas, murmurar os pesâmes na mão tremulamente segura, afastava-se quando o assunto se deitava no funesto, conseguira durante muito tempo manter-se afastado desse episódio e alturas houve que o imaginário se lhe rasgou a assistir aos serviços últimos da sua pessoa como vez única.

Mas agora, sentía um novelo no peito a engasgar-lhe o ar e a vontade empurrava-o no sentido contrário. Quería estar perto do amigo, lastimar a perda como sua, dar-lhe a entender nos gestos e nas palavras que a dor era partilhada como alivio. Talvez de ambos, talvez de si que fugía da palavra como truque para evitar a evidência incontornável.

Por isso abraçou o amigo, sentiu-lhe a testa quente no ombro e as palmas suadas nas costas, enxugou-lhe as lágrimas e mordeu a língua com força para sentir outra dor que disfarçasse as suas próprias lágrimas a quererem romper. Nada disse ou pensou. Limitou-se ao aperto do corpo junto ao seu, beijou-o na face de barba por desfazer, conciliou-se no momento da morte como vida que se abocanha mais e nunca tanto como nesses segundos sentiu o que era ter um amigo.

terça-feira, 20 de abril de 2010

O livro negro dos homens (dez)

Com a fotografia entre os dedos girei-a, tentei que passasse despercebida ou eu, sorrateiramente, no meu despeito de não estar ali, esquecesse aquele plano liso, chato, em que duas pessoas se beijavam à socapa como um acto proscrito pelos demais.

Eu quería estar ali. Fazer parte daquele bocado de papel estreito e dizer orgulhosamente que os conhecía. E eles a mim.

Na verdade conhecíamo-nos, eles os meus, eu a deles.

Mas eram os meus de uma época fácil, sem pensares nem matutares, perguntas a complicar o dia!

... Eu quería tanto estar ali!

De novo pequenina. Ao pé deles, dos que sabíam rir.

segunda-feira, 19 de abril de 2010

Conversas ao Espelho

Horas tardias de tão cedo que ainda é, a noite arrasta restos e entrega o turno.



Há luz.



Artificios de homem, maleficios da imagem projectada neste espelho que aponta o rosto, um condenado a condenar-se, artefactos do surreal: O que vejo sou eu? Não quero.








(in Conversas ao espelho, Maio/2007)

domingo, 18 de abril de 2010

Sacrificios(da fama)

Ele sempre há gente muito curiosa, direi mesmo estranha, a meu olhos pois sim, pois a mim me fazem inclinar a cabeça na tentativa de os ver sob outro ângulo, arranjar conforto numa posição em que os olhos não se arregalem na surpresa.


Ou será do ouvir talvez... Tombar a orelha para que a audição não se confunda com ruídos de carros a chiarem quando os ouvimos - a essa gente curiosa, direi estranha - condenarem no aceno critico aquilo a que acorrem. Fazem parte. Abalam-se do encanto de seus lares para engrossar o número dos que repetem a cada ida que não mais voltarão. Não contem com eles. Até à próxima exposição, ao próximo lançamento de livro, ao certame seguinte, à bienal que infelizmente só se cumpre duas vezes ao ano.


Vão, estão, enrolam os croquetes na boca, dessedentam-se num Porto de honra made in Sacavém, aplaudem sem som e enjoam-se com o comércio que a arte se tornou, têm de ir, têm um nome a defender e a ser comentado entre os demais, eles estavam lá.


Mas foi a última vez.


Eu sou mesmo estranha, direi que curiosamente, pareceu-me ter ouvido que não contassem com eles para esta feira de vaidades, que curiosamente da derradeira vez que me esbarrei com eles pensei que fosse o ponto final.


sábado, 17 de abril de 2010

Os meus segredos (vinte)

Pesa-me ao ombro arrecadados na carteira, as chaves de casa, o porta-moedas, os óculos de sol, o baton, a caneta de tinta permanente e o meu caderno. Não sou de coleccionar bilhetes, facturas ou até contas de supermercado. Não tenho espelho de bolsa nem pente ou escova. Não tenho fotografias de ninguém para me recordar. Não tenho coisas perdidas que já havía procurado e satisfeita ali as ache. Quando me corto nas folhas do meu caderno chupo o dedo, saboreio o sangue, por isso não tenho pensos rápidos. Vejo e confiro frequentemente se o caderno vai comigo, apalpo-o, depois aliso os cantos das folhas. Sei tudo o que escrevi nele e por isso não me surpreendo com textos escritos há várias semanas. Nem mesmo quando as letras falham na dislexia presente e o conceito da frase se reveste de outras intenções. Agrada-me quando outros o usam, me levam as chaves e entram à minha frente na casa onde moro, troçam da cor do meu baton e disfarçam-se de mim quando ajeitam os óculos que lhes esconde o (meu) olhar.



sexta-feira, 16 de abril de 2010

Ainda o Tejo

Miseravelmente caio a teus pés, sabes como me hás-de levar neste silêncio ferrugento com que me adoças narinas e boca e vai que eu - gozo o castigo - mansa me faço e faço de conta que me surpreendes em cores nunca pintadas, é do céu penso, não vem da água este humor com que me levas e trazes todos os dias, encrespas-te, és mar se te quero forte, chuva deitada se sigo triste e às costas te dou a face. Sabes tu que te escrevo? Como não o fazer se me és cama de cansaço e fresco de letras?





(in Ainda o Tejo, Nov.2009)

quinta-feira, 15 de abril de 2010

Sou assim

Não gosto de grupos. Não gosto de encaixes, protótipos, etiquetas, standard's, colectivos, tendências, repetições, chavões, frases da moda, doutrinas, impressos, gritos, conselhos, mentiras, horários, talvez sim ou talvez não, atum em lata, flores campestres, sapatos vela, evidências, anedotas explicadas, quintas-feiras, azul-cueca, touradas, injustiças, pretensões, palavras desperdiçadas, bajulações, mártires, erros ortográficos, mais ou menos, percebe?no final das frases, lol(es).

Chamam-me do contra, mau-feitio, nariz empinado, convencida, pelinho na venta, perigosa, anti-social, fria, individualista.

Será que não ouviram eu dizer que não gosto de rótulos?

Surpreendam-me e adjectivem-me de forma inovadora!

quarta-feira, 14 de abril de 2010

Os livros (que li)

Sempre achei que os livros bons, com palavras boas daquelas que nos satisfazem para além da alma e que completam o estômago no amargo do dia comum, vêm ter connosco, esperam por nós, por vezes num tempo desacertado do nosso entender ora tão pequenino ora tão ocupado de afazeres, mas que se revelam como uma brecha de sol no céu carregado anos depois, tantos anos depois.

É uma tropelia.

Não dos livros ou de quem os escreveu, mas do nosso ser, impróprio para receber sem desconfiar, defeituoso por crer que coisa bela algum senão há-de ter. E depois os livros -há-os assim - parecendo serem resguardados da mutação por tudo neles ter sido impresso, vulnerabilizam-se à medida que os olhos que nos compõem por dentro se vão rasgando, adoçando, aceitando outras formas de vida impolutas ao devassar da força humana porque tudo neles -há-os assim - é feito muito para além da mão do autor, muito atingido quando os lemos, muito por quem os ama.

terça-feira, 13 de abril de 2010

Viegas, Mário, porque sim

Do Viegas enchía a boca, imitava-o, pa-ra-fra-sea-va-O, manuseava os dedinhos em pianos invisiveis e até afinava os lábios como se fosse soltar um assobio inaudível, uma paragem inesperada no Dantas sabido de cor ou o trejeito marialva de bolsos invisiveis num roupão florido enquanto dava ordens à Lina despachada.


Do Viegas sabía tudo, apaixonadamente conhecedor de uma arte inconfundível no ouvido apurado dos discos de vinil - É o Viegas, é o Viegas PÁ! - e todos acenavam que sim, que tinha acertado e pedíam-lhe que o imitasse, desgrenhado na rala cabeleira, os olhos muito abertos, a audiência suspensa enquanto ele se baralhava por não saber o que recitar.



Do Viegas via-se ao espelho, mimicas do dia seguinte à ida ao teatro, ensaiava, tapava a orelha esquerda para se ouvir parecido ou a direita para a projecção de voz ampliada pelo dedo apontado.




Do Viegas deu vivas ao Rei e ao Presidente, recolheu assinaturas e brindou sigiloso quando a eleição não saiu e manteve o seu herói perto da arte que lhe gostava de beber.




Depois o Viegas morreu, ele não foi ao funeral, arranjou um gato zarolho que se aconchegava nos livros de poesia e dormitava ao som das palavras vi-vas.

segunda-feira, 12 de abril de 2010

Até sempre

De quando em vez lá recebía noticias, nada muito preciso quanto ao que o ocupava para lhe roubar tempo a mais palavras. O papel de carta nem sequer era papel de carta, tantas vezes conseguía descobrir o rendilhado rompido à pressa de um caderno escolar vincado com letras de outras folhas que tinham sido usadas por cima da que lhe enviava. A maior parte das missivas não se lacrava no beijo ou nem mesmo num abraço, cortava-se num traço furioso pela diagonal ocupando a parte do papel que não houvera sido utilizado.

De inicio achara estranho, uma bizarria, depois como não tinha para onde responder pensou em desleixo ou que o incómdo de alguma situação o preocupasse de forma tamanha que também a ela não a quería preocupar. E preocupou-se. E depois deixou-se disso que a ânsia de receber o envelope era mais que tudo o resto e não quería desperdiçar o bater do coração em tristezas antecipadas.

Guardou todos os pedaços de novas que lhe chegaram na lata do pão, sempre perto de si quando a saudade moía ou quando para enganar o corpo de fomes repentinas, esfarelava primeiro o miolo e só depois, calma, se entretinha na côdea. Comía e relía, comía e respondía-lhe como se ele estivesse ali permanente, a respiração contada entre cada sílaba.

Quando ele lhe bateu de novo à porta ela alisou o cabelo, encaminhou-se para a cozinha e sentaram-se os dois a olharem-se. Depois ele abriu a lata do pão, deu com as suas cartas enfarinhadas, tirou o alimento para os dois e enquanto mastigava lento ela contou-lhe o que fizera nesse dia.

domingo, 11 de abril de 2010

Domingos

Neura de Domingo. À tarde. Devería o sol ter-se envergonhado e ser cúmplice deste não querer amanhã. Barriga cheia de sabores de casa a precaverem o fastio de futuros dias. Chinelos macios a esquecerem o calo de horas perdidas na repetição de monossílabos, dúvidas, não gostares sem ser desgosto. O relógio apressa-se sem som, traiçoeiro de coisas por fazer ou das que não apetece, não apetece que seja Domingo à tarde, não se quer o dia seguinte, espera-se do amanhã o trampolim rápido até Domingo, queixume por a vida ir tão depressa.

sábado, 10 de abril de 2010

Plano de trabalho

Em cima da mesa há uma chávena manchada de café bebido, malhas de luz que entram pela fenda de uma cortina amarrotada pelo dia que boceja, um gato tigrado em tons de espiga de milho-rei que achou em papéis amachucados e folhas com altos irregulares de palavras escritas a cama ideal para os olhos esmeralda se rasgarem num fio como uma linha ténue entre a vigília e o outro lado do espelho.

sexta-feira, 9 de abril de 2010

Ser, estar

Como quem escolhe a indumentária pela manhã, assim sou escolhida por quem me há-de representar pelo dia fora. Dias, por vezes intermináveis, em que não tenho opção de voltar a ser eu, vítima e carrasco, dialécticas que promovo antevendo-lhes conclusões. Sei que volto a mim, esqueço o tempo do quando e aproveito cascas e conchas para me alimentar para outro que hei-de ser.

Há vezes em que me confundo, eu não sou mais eu mas ainda o outro que não se foi, porém um novo que chega e encanta, clono-me, pretendo que a coisa seja entendível mais por mim que pelos outros, esgotam-me, deixo-me sê-los. Já me habituei a vê-los chegar e ainda assim não me aquieto por saber que hão-de ir, livres, sem determinação minha, o eu uma casa devassada por quem chega e diz adeus.

Mesmo que eu aqui não esteja os que me constituem farão o papel de tantos quantos os que sou.

quinta-feira, 8 de abril de 2010

Repetições

Seguiu a formiga laboriosa pelas rugas do tronco, acompanhou-a com o dedo até se deter nos nós. Depois cheirou a casca, as folhas verdes, o ar. Deixou que os sentidos se fossem na brisa, sentou-se, encostou-se à árvore, fechou os olhos, abriu o livro e leu para si.

Seguiu as linhas do caderno endireitando a caligrafia, aparou vírgulas e travessões, preparou o discurso directo na ponta do lápis. Deixou que os sentidos se colassem no papel, personagens sentados sob copas de árvore confessando fraquezas, fechou os olhos, dois pontos, escreveu para si.

Seguiu as vontades de homens e mulheres, páginas folheadas entre cidades e quartos de pensão, acompanhou-os no primeiro grito, tapou-lhes o rosto na despedida. Deixou que os sentidos de outros se repetissem nos seus e os seus emprestou-os a alguns, fechou o livro, abriu os olhos e tudo quanto era redor tornou-se estória de contar ou de escrever.

quarta-feira, 7 de abril de 2010

Unguento

Há dias em que a poesia se torna absurda. Nada é tão perfeito assim. Há dias em que a escuridão das palavras cega. E o poema brilha. Nos dias em que a poesia se inventa para guiar mãos sem destinos volto costas ao mundo, enfaixo-me entre páginas de sábios que esqueceram o ritmo dos dias e a lentidão das noites. Repito-me. A poesia dos dias e a poesia da vida dos poemas, não desses poemas sangrados até ao fóssil do desgosto em que se muito me faltara para perecer no imediato entrego vontades e respirares, falo da poesia, desse absurdo invisível que alimenta até à fartura o espirito e sempre escasso o corpo para sentir. Pobre corpo, tão pouco, absurdo corpo consolado.

terça-feira, 6 de abril de 2010

Q (é uma letra que se lê)

- Que é que TU estás a fazer???

Nada, não estava a fazer nada mas o que lhe saíu foi um não fui eu, a apreensão a agarrar-lhe os ombros para evitar a fuga e no entanto, com este simples retorquir sentía que o timbre da pergunta surgido como uma mão esticada à régua lhe havería de bater e fazer ricochete, atingindo no remorso mais dolorosamente do que a força com que havía sido disparado. Não fizera nada, não se lembrava de nada que tivesse feito, assim coisa de mal, devía ser mau, só podía ser horrível ou o susto que sentira tería sido em vão, um tremor sem fundamento, um desperdício de sangue pelas faces que se condoíam pelo crime desconhecido. Estava quase certo que nada havía feito e ainda assim lambeu o cómodo com os olhos ávidos de achar provas por si desleixadas, o pânico de não as ver, não se lembrar, não encontrar nada, nada a provar a sua inocência, condenado, condenava-se de ter feito o que não recordava, merecía o castigo, aceitava a sua sorte.

- Ainda bem, assim podes ajudar-me a escrever isto.

segunda-feira, 5 de abril de 2010

A entrevista

Pediu que se sentasse, a educação obrigou-a a ficar de pé. Depois tomou assento, olhou as folhas ao contrário e descobriu-lhe o seu perfil. O interlocutor não a olhava, ajeitava os cantos das páginas, arrastava o nome como quem pega num carro que esteve muito tempo parado. Ela não sabía onde pôr as mãos, lembrava sua mãe e a proibição sobre cotovelos em cima da mesa, entalou-as entre pernas e sentiu as virilhas húmidas pelo nervoso que a electrificava, ía dizendo para si não falar, não falar antes de te fazerem a pergunta, abrir os olhos e escutar com o corpo todo, sentir o que vem do outro, as aproximações, o cruzar de braços, aprendera isso. A pergunta apareceu com reticências no final... A mudança, a mais-valia, empregou chavões com cabimento, não se balançou na cadeira, deu espaço, elogiu-se sem ser narcísica, calou-se quando interrompida. Mas as mãos traíam-na a cada espaço, volteavam, os dedos arqueavam-se como asas de pombo no namoro e por mais que a razão as atasse lá voltavam elas a voar independentes de lições bem tomadas. Não quis olhar o relógio, o interlocutor fazía-o por si e pela tarefa a cumprir, mais uma serei eu, não mais uma serei eu, que pensa ele de mim, porque não me vem à boca a frase certa como uma legenda correctamente revista? Colocou a tampa na esferográfica e ela sentiu o fim, ergueu-se, agradeceu e atabalhoada no comando das mãos recebeu dois beijos que não sentiu. Depois a sala agigantou-se na distância entre eles, sentiu-se cuspida para a parede que tinha nas costas, ouviu a resposta ao longe, muito ao longe: demasiado criativa para o que pretendemos, o seu lugar é nas artes, noutro sitio qualquer menos este, temos pena. As penas das mãos estenderam-se de novo e ela voou não sabe para onde, essa lição nunca aprendera.

domingo, 4 de abril de 2010

(Porquê) O ovo

Acordou desorientado do espaço onde estava, o zumbido da campainha na porta parecera-lhe um grito que levava o seu nome, quem sería a deshoras de um Domingo de Páscoa, lento, devagar, ainda o efeito do açúcar a prender-lhe o discernimento, o torpor embriagado do chocolate a deformar sons e dimensões, deixa tocar, toca que não está ninguém, talvez se vá cansado de esperar e a noite se faça na melancolia destes dias com sabor a férias grandes que tão pequenos se fizeram no gosto de os viver, vai, volta amanhã que é dia bravo e tudo se encaixa neste aborrecimento tedioso de um dia após o outro sem doce algum para disfarçar os amargos de boca que se leva e se traz fechada sem vislumbrar esperanças de interesse maior, não desiste, escancara a porta, gritam-lhe os olhos furiosos do incómodo, sim, não, sim, porque não, um ovo, para que diabos se quer um ovo, é a vida, é vida e vai-se, deixa-o de ovo na palma da mão, um ninho desajeitado sem calor nem mimo, encolhe os dedos à concha lisa e dá-lhe no peito um bater forte, forte de loucura, de gritos, de trovões, de ai que quase me perdi!
Acordou desorientado do espaço onde estava. Ainda agora sonhava que renascía.

sábado, 3 de abril de 2010

Fabular(es)-8ºEnsaio (sobre uma Foto de Silvestre Raposo)

[Um pó finíssimo não assenta, traz odores a cascos, bosta morna de cavalo, um travo de suor acidulado da jaqueta apertada do cavaleiro, vai poisando devagar e sobre os cabelos, engole as gargantas, suja as unhas que coçam sem dono]

- Gosto de cavalos.

- Eu também.

- Um dia hei-de nascer cavalo e ninguém me apanha.

- Até ao dia do domador...

- Não. Nunca há esse dia para os cavalos.

[As selas foram ensebadas e as crinas da cabeça fecham-se numa trança. A mulher roda na saia longa abrindo-a como abas de chapéu, meneios, pata, trote, há ecos nas paredes enferrujadas pelos tempos e a noite escorre na cor do cavalo]

- Vou tirar uma fotografia...

- Não vais conseguir.

- Ora, porquê?! Claro que consigo!

- Só consegues o que vês, nada mais.

- Vou esmerar-me.

- Fecha os olhos e dispara a tua máquina.

[Um fio de vento obriga os rostos a abrigarem-se, o pó tornou-se nuvem castanha, relinchos e ferraduras calcam as marcas dos passos bailados]

- Já tirei!

- Ainda bem. Quando a revelares vais ver o que te dizía.

- Que seja, melhor ainda!

- Hás-de ver-me a correr quando nascer cavalo.

[Aplausos, pelos arreios seguem a mão que os afaga, roçam focinhos, piscam-me o olho]

sexta-feira, 2 de abril de 2010

Recuso-me

É tudo uma questão de perspectiva. Para alguns o tempo tornou-se amigo, conforto numa sabedoria feita de popular vivência que lhes traz a gestão do é assim porque é assim.

Hábitos. Para mim são hábitos. Ou negações, não quero entregar tudo o que fui, a minha rebeldia numa era em que devería já ter juízo. Não quero tê-lo. Não devo tê-lo para manter a sanidade.

É tudo uma questão de é assim porque tem de ser assim comigo e para o meu mundo, para o que vou descobrindo todos os dias, na impopular garantia de que a morte ocorre muito antes do corpo.

quinta-feira, 1 de abril de 2010

Dia da mentira (verdade?)

Desvendar as verdades pode parecer corajoso, e é-o, mas há também a considerar a cobardia de a termos mantido em segredo. Seja para nós seja em outros momentos em que não somos quem pensam que somos.

Eu sou outros.

Já o afirmei por diversas vezes, porém esta verdade tão absolutamente verdadeira parece disfarçar-se de mais uma coisa que se diz, uma verdade juntando-se a tantas outras verdades, que julgo, ninguém entendeu como sendo verídicas.

Que diríam se eu dissesse que estou morta, enterrada e benzida e voltei para vos contar como foi?

Acharíam que era uma história inventada, uma verdade que gostaríam se repetisse... mas não passava de ficção.

É verdade.

Já pereci tantas vezes quantas aquelas que precisei para voltar a ser verdadeira nos outros eus.

quarta-feira, 31 de março de 2010

A árvore

Afastei-me da luz do ecrã, nunca da luz da folha branca. O caderno - o velho caderno que não chega a velho de tão rápido se gasta - manteve-se como um cão a meu lado. Permiti-me a dislexia, o não querer dizer, os riscos furiosos matando as frases incorrectas, as buchas desenhadas na diagonal e pelas beiradas das páginas, os desenhos do que vi e do que não vi e do que só eu podía ver, as frases que copiei de diálogos matutinos entre homens e mulheres que não queríam acordar, e de novo aquela sensação macia na mão, o deslizar da tinta azul-china na virgindade tingida a letras que me vieram de entranhas que eu julgava não ter, tudo no papel.

Porque voltei então?

Não sei. Mas assim como há coisas que não se devem explicar para que não percam a beleza, também eu não tenho de me justificar perante este amante.

Estou aqui.

Como sempre.

São só palavras, sou eu.

terça-feira, 30 de março de 2010

A leitora

Muito para além do ouvir dizer sentía satisfação quando lía os recados curtos que lhe deixava. Nada de elaborado, muitas abreviaturas, pontos de exclamação imparáveis mas rico, pleno, grandioso quando as lambía nos olhos e para dentro emprestava a sonoridade que lhe quería escutar. Demorava-se em cada palavra, antes atafulhara-se nelas sem sentido, na correría de descobrir segredos revelados. Que nunca chegaram. Mas isso nunca descobriu. Não tinha importância, o que era bom eram aquelas notas escondidas à espera dela, só dela, porque se convencera que todos os bilhetes a si deixados eram a si pela primeira vez, e depois dela, nunca mais haveríam recados, exclamações a fazê-la adivinhar o que ele quería dizer. Sem dizer. Sem lhe dizer à boca e aos olhos e ao coração, que na presença trocava monossílabos, gargalhadinhas, piadas entoadas de outros tempos. No papel era sempre diferente, mágico. Ela sabía. Ela lía e sabía. Como uma boa interprete.

segunda-feira, 29 de março de 2010

E se eu (me) lembrasse

E se mesmo depois de se morrer não se partisse de todo? Se houvesse um tempo em que o tempo se perdesse nas memórias de uma vida para depois se sussurrar a outros o que os outros só poderão entender quando passarem por essa porta para a derradeira viagem?


Ficaría explicado os déjà vu, o saber fazer sem nunca ter aprendido, a pretensa reencarnação em figuras que já passaram, a sensação de conhecer desde sempre alguém...


Ficaría explicado por que tantos homens e mulheres vivem em mim e falo de coisas que até a mim me surpreendem... E se assim fosse, quem podería eu ter sido?
Ou será que não sou? Amálgama de suspiros, sussurros, segredos, tudo empilhado sem ordem e a minha tarefa - arrumar-me para me conquistar, conhecer-me para saber de outros.

domingo, 28 de março de 2010

Os porquês

Parei de escrever porque me doía.
Mas dor a valer foi a que senti durante o tempo em que não sentía nada.

sábado, 27 de março de 2010

O livro negro dos homens (nove)

Pediram-me que escrevesse sobre o quotidiano e eu, sempre esvaída em palavras, entupi pelo preço da encomenda.

Pensei no que já tenho de feito, lavrado nas horas do aconchego fumado passadas entre braçadas de memória ou veios inesperados que se exibem num filão tresmalhado.

Agora... assim, a pedido. Não sei nada.

E penso que se não sei nada também não saberei escrever. Ou pelo menos, sê-lo-ei (presunção) mentirosamente, escritora de mata-sete, que quando os outros de mim se escapam escapa-se o saber das letras.

Estou encostada numa parede de alfabeto que não sei ordenar, confusa, o pedido dificil de atender.

Quero lembrar-me de cenas do quotidiano e só me saltam como rolhas de um vinho demasiado gasoso, imagens de mim mesma, dobrada, por vezes aflita pela imensidão que as palavras se transformem em seres que me acompanham por uma vida, que não minha, também minha.

Pedem-me e eu egoísta só me vejo a mim.


(Lx, 09-03-2010)

sexta-feira, 26 de março de 2010

O livro negro dos homens (cinco)

Tenho dias em que as palavras se organizam em largas avenidas, sem traços a delimitarem beiras, sem riscos contínuos ou entrecortados pelos solavancos do cuidado.

Abrem-se em estradas, tudo muito claro e belo e nítido, dias em que a vida se simplifica pelo carácter da palavra.

Há uma palavra para cada cois, cada sentir, cada piscar de olhos e nada se mistura ou há confusão no que se quer dizer.

Sabe-se dizer, sabe-se explicar.

Tudo claro, as palavras, claras, a vida clara das avenidas com que traço os meus caminhos e atinjo lares quentes e harmoniosos onde sou sempre benvinda.



(a meio do Tejo, 02-02-2010)

quinta-feira, 25 de março de 2010

Papel branco com homem ao fundo

Havía vento. Desgrenhava-o mas nada que o incomodasse, mesmo que os olhos se fechassem na defesa dos grãos que leves, um dia teríam sido penedo.

Nesse alto havía vento e havía um homem que olhava o nada a que se chama infinito. Ali. Tão perto o nada, tão tangível pelos olhos cerrados à força do que não se vê. O vento.

Havía frio mas não tremía, não se vê o frio, não se vê o vento, não se veem os pensamentos do homem despenteado que olha o longe tão próximo, tão leve, tão grande.

Dobrou o papel pela metade, escondeu-o no bolso, misturou-o entre chaves, um palito, um lenço de assoar, o lápis na mão por afiar.

Não desenhou nada. Recolhera todos os nadas na folha branca e sentía-se obreiro.

Afastou-se do vento, do frio, compôs o cabelo, bateu os pés, entrou em casa.


- E o desenho?

- Nada, estava muito vento, levou-me a folha.






(in Telas, C.G. Nov/2005)

quarta-feira, 24 de março de 2010

Texto sem memória

Não por decisão mas porque aconteceu devagarinho, minando os circuitos do pensar, entregou as palavras, os olhares profundos, as adivinhas e a surpresa maior era acordar no dia seguinte. Seguinte a nada, da véspera puxava um manto leve sem recordação que lhe pregueasse a testa e a calmaria do peito ao cerrar o rosto ao sol tornou-se o hábito das manhãs. Ía e vinha. Cumpría. Cumprimentava. Deitava-se e morría até ao dia crescer da noite. Certo. Correcto, escorreito, dias musculados na rotina e perdidos em faces tão ocultas quanto a dele. Se era infeliz? Não. Se já fora feliz? Não se lembrava.

terça-feira, 23 de março de 2010

O livro negro dos homens (dois)

A imperfeição dos olhos começa quando vemos os outros pelas palavras alheias. A insubordinação do sentir cola-se maldosa ao que o outro nos diz. Não quer estar sózinho neste desgostar, precisa de aliados, pinta folhas de serviço enjoado pelas nódoas que lhe vai colocando, uma a uma, medalhas de um sentimento próximo do ódio.

O olhar vê o que lhe mostram, influência soberana nos humanos.

Há gente que me detesta apenas porque lhes disseram para me detestar, querem ver-me assim. Compulsivamente, como uma moeda de um só dono.

Eu tresmalho-me sempre. Alguém disse que não me incomoda o vosso desquerer?

Eu sou sózinha. Por mim. Amo e odeio por mim. Não porque me exibem palavras que me façam ver os outros sob as cores do [seu] pequeno mundo.


(Lx, 19-01-2010)

segunda-feira, 22 de março de 2010

É hoje

Não sou de ameaças, perdería a tez da intenção e a voz fugir-me-ía para a gargalhada. Escárnio, claro, até mesmo verrugosa e essa coisa dos avisos deixo para os sensatos do mundo que eu tantas vezes caminho a quatro como as bestas. Sou eu, eu disse que a árvore não estava seca e com a Primavera a estalar livrei-me de galhos indecorosos, guardei o cheiro do verde e eis-me.
Vigor de palavras, muitas, tantas quantas as raízes que capilarmente sugam mundos interiores e renovam a cada folha o que os homens acham por bem denominar estações, trago folhas, lembro estações, em breve flores, mesmo as carnívoras da alma na condição pequena de me atafulhar de sentires quando os devería (sentimentalmente) dizer palavras, só palavras bonitas.
Mas como não sou de ameaças deu-me para trepar à árvore sem anúncio de data festiva, hoje, como ontem, fascinada pela queda e pelo subir de novo.