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sábado, 1 de outubro de 2016

Até ser luz



 
Uma noite levantei-me, não foi diferente das demais, corredor fora atingi paredes de mãos espalmadas segurando o frio de uma solidão que não se explica, não se fala, engole-se aos pedacinhos até encher por dentro numa verticalidade que segure o corpo todo e mantenha a direito o que os outros veêm. Andei e a custo dobrei-me para apanhar um boneco da caixa de brinquedos, nem sequer o seu favorito, uma cenoura de borracha que apertava entre dentes e sacudia furiosamente enquanto rosnava quando eu ameaçadora lha tentava retirar, um bocado qualquer de brincadeira que rocei no nariz e me fez perder a parede, as paredes a caírem.
A luz nocturna coada pelos cortinados entornou-se pela árvore defronte da janela, no escritório os meus pés, as minhas pernas muito semelhantes a ganchos escuros nascidos do tapete enrouparam-se da lembrança da cauda do gato branco que gostava de se aninhar nos cadernos onde eu escrevia, um anel macio nos tornozelos a perdoar as maldades dos passos cegos.
Tacteei a gaveta na penumbra e o caderno fechado de vários meses.
Escrevi no escuro até ser luz.
Respirei até conseguir saber fazê-lo de novo, outra vez em tantas que já senti o deixar de sentir. As letras, muito mal desenhadas, estavam lá, deitadas e tortas, deformadas de uma solidão espalmada que não se explica, engole-se aos poucos à espera, apenas à espera.