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quarta-feira, 24 de setembro de 2008

O jantar (Peixe)

(continuação)

- Caramba! Você de facto tem uma sede!? Não é qualquer um que vira um Borgonha de assentada!
- Que tem? Até eu sou capaz de fazer o mesmo!
Lucia não deu tempo para que a conversa desviasse o rumo e olhando José Maria desafiadoramente serviu o copo de cristal até à beirada e de olhos brilhantes e muito abertos bebeu no gole farto o tinto encorpado. Franz bateu palmas sincopadamente.
- Fantástico! Uma proeza digna de uma dama, sem dúvida... sem dúvida - e abanava ligeiramente a cabeça.
- Falou o cavalheiro exemplar! Cá vamos nós! Preparem-se que vem sermão! Que ferro! - acrescentou José Maria alisando a ponta do bigode.
- Ah! Deixemo-lo falar! Agora fui eu que fiquei curioso! Diga, caro Franz, como são as damas que conhece? Contidas? Rosadas na sua carnação? Coram, imagino! E até tocam piano! E falam francês! Conhece este dito popular? Não acredito que um homem tão letrado como você nunca tenha ouvido este ditoche!
- Mas que ares são esses David? Não lhe conhecía a veia acintosa!
- É para que veja! Que até no fundo dos copos se descobrem borras do que somos! Mas não o nego!
- Boa, boa! - agitou José Maria de sorriso largo.
- Mar...
- O quê?- perguntaram todos
- Mar... o mar que nós somos, o sal da nossa alma...
A criada fardada entrou com a travessa de um gigantesco pargo assado, muito brilhante, de escolta batatinhas caramelizadas pelo ar quente do forno, interrompendo o balbuciar de Fernando sempre empunhando o copo de Borgonha. Serviram-se à vez, pela direita, os copos encheram-se de novo de branco seco muito fresco e fazendo transpirar o cristal como pequenos diamantes. Recomeçaram a refeição, o degustar do peixe firme e odorífero silenciou a discordância, a dona da casa a mirá-los na expectativa do reacender.
- Parabéns! Está uma delicia! Sabe a ...
- Mar, sabe a mar...
- E você a dar-lhe! Como é insistente! E patético!
- O mar é o principio das coisas, o porto dos adeuses e das saudades, dos amores de véspera comidos a tragos largos, não se sabe quando se volta, quer-se deixar de dentro no dentro da mulher, muito para além da recordação, deixa-se esperma que é um bocado do homem que vai tragar outros sitios como mulheres que se despedem, ao mar se volta, a criança que pode ter gerado é num mar que aumenta na barriga da mulher. O mar é vida.
Ficaram todos a olhar Lucia. Depois atacou o seu prato de novo, com muito apetite.
- Mar salgado, tantas lágrimas de mar...
José Maria pigarreou a disfarçar a emoção das palavras de Lucia e do remate de Fernando.
A anfitriã segurou a mão próxima e apertou-a ligeiramente.

(continua)

14 comentários:

observatory disse...

palavras que me caem dos olhos

as que apanho nas solidoes

SONY disse...

Gas,
adorei!!
Adorei todo este pormenor!

Sentei-me na mesa!!!

Deliciei o Borgonha e bebi de um gole so também :-)

Sem dúvida alguma que o mar é VIDA!

Talvez por isso eu o adoro tanto!
Carrega-me as baterias, limpa-me a alma, ouve-me, acalma-me, é um amigo que me olha de frente!! Ralha-me quando me apetece desistir de algo e fica encapelado para mim, por vezes retribui-me com um enorme ruído de desagrado,com o rebentar de uma onda gigante e forte, com tanta espuma branca, tão salgada como as lágrimas que por vezes ali vou chorar para logo sorrir de novo!

Talvez por isso o adoro e sou peixe!!

A força e imensidão do MAR!!
A força e imensidão da VIDA!!

Jito,

sony rabina

Maria Clarinda disse...

Adorei, e aqui fico na expectativa do final.
Jhs

Teresa Durães disse...

a água como geradora da criação

ASPÁSIA disse...

ORA MUITO BOM PROVEITO A QUEM JANTA!

CALHA-ME MESMO BEM ESTE PARGUINHO AINDA COM TRAVO A MARESIA!- E QUE AME DESPERTA NAS MEMÓRIAS UM OUTRO PARGO QUEIROSIANO, PARECE-ME, NUM JANTAR EM PARIS?!?!?! - EU A DAR-LHE E A CEIA A FUGIR-ME...

PRATICAMENTE NÃO COMO CARNE, ASSIM DESFORRO-ME JÁ NO PARGO POIS QUANDO CHEGAR A TRAVESSA DAS VIANDAS, ABSTER-ME-EI, SEM OFENSA PARA A COZINHEIRA E ANFITRIÃ! EHEHE...
QUANTO AO MAR, TENHO ANDADO AFASTADA DELE,- QUE FERRO! - MAS ESPERO AINDA LÁ VOLTAR UM DIA... TALVEZ AINDA ANTES DO INVERNO, POIS DE VERÃO É MESMO IMPOSSÍVEL...

BEM, GAS, TENS DE FAZER DURAR ESTA JANTARADA AÍ ATÉ AO NATAL... PARA À SOBREMESA HAVER FILHÓS E ALETRIA ! MIAM MIAM...

BEIJO GULOSO!

pateta disse...

não gostei do pormenor do 'serviu o copo de cristal até à beirada'! é feio! um borgonha, lá na floresta bebe-se enchendo cuidadosamente o copo até meio. de contrário tira o sabor dos gestos.
concerteza que na floresta somos diferentes do que nas metrópoles. de certeza! e o meu signo é carneiro. talvez por isso nunca me levaram a ver o mar.

Gasolina disse...

Observatory,

Podem caír mas não se perdem. Guardam-se na caixa da solidão. Um dia alargam-se em passo corrido, não tão rápido como o pensamento, mas vigorosamente marcantes para que possam ser lidas. Por alguns.

Gasolina disse...

Sony,

Haverá alguém que não goste do mar?
É isso mesmo: Mar é vida. Já o dizía o Fernando.

Um beijo Formiguinha

Gasolina disse...

Maria Clarinda,

Olá, quanto tempo!

Muito obrigado pelas tuas palavras.

Fica bem

Gasolina disse...

Teresa,

Da criação do tudo.
Desde o ventre materno à condenação do artista pela sua obra.

Gasolina disse...

ASPÁSIA,

TU A DARES-LHE E O JANTAR CADA VEZ MAIS QUENTE...
(ISTO ESTÁ A DIVERTIR-ME IMENSO, NO FIM EXPLICO PORQUÊ)

TENS QUE IR VER O MAR! O MAR DE OUTONO NAS HORAS DO LOBO É MAJESTOSO. ENCHE. TRANSBORDA. LÁGRIMAS DE SAL DE PORTUGAL.

NÃO, NÃO VAI ATÉ AO NATAL... MAS PROMETE-SE IGUARÍAS DE COMPETIÇÃO COM A ALETRIA!

BEIJO ENORME, CONVIVA JARDINEIRA!

Gasolina disse...

Pateta,

Fala com o Fernando, que ele é que atasca os copos!

E já agora, um pequeno reparo: o copo de vinho tinto enche-se um dedo acima da metade.

Como dizes ser carneiro e os carneiros são muito vaidosos sei que gostarás de saber deste pormenor para brilhares nos teus jantarinhos na Floresta.

Mas não veres o mar é que não está com nada!!!
Eu tb sou de um signo do Fogo e é no mar e no rio que acalmo o meu lume. Será que não sería caso para experimentares?!

marisa disse...

eu continuo a sentir-me por lá (mas invisível)...será que o Franz fala alemão?

Um beijo

marisa

Gasolina disse...

Marisa,

Natürlich!
(Espero não ter escrito uma infâmia!!!)

Confesso que o alemão que tive já lá vai e nas aulas mais importantes cabulei por causa de um campeonato de matraquilhos...
Mas eu e o meu par ganhámos, por isso nem tudo foi perdição!

Fica. A seguir vem o prato de carne, aposto como Franz vai gostar.
E eu gosto de te ver a esta mesa.

Um beijo Querida Marisa do Reno