Gostava tanto , tanto da capa que por temer acontecer-lhe alguma coisa forrou o livro. Era um livro grosso, muitas páginas, sem um único desenho, só letras e mais letras. Na verdade comprara o livro mais pela beleza da ilustração da capa do que pelo seu conteúdo, não era muito dada a leituras, acabavam por a enfastiar. O que gostava mesmo era dos desenhos, mas este só o da capa, flores cor-de-rosa que tombavam de uma árvore curva e caíam sobre o cabelo longo de uma rapariga vestida de branco que recostada no tronco se debruçava sobre um livro aberto. Tinha para si que aquela figura era ela, gostava de se imaginar assim, a ler à sombra de uma cerejeira em flor.
Forrou o livro esmeradamente. Nas voltas e voltas que lhe deu lá se abríam as folhas e chamavam a sua atenção para uma e outra linha. Lía. Mais um vinco. Frases. Lía. Mais uma dobra. Sentou-se. Página um. A rapariga do livro.
(A rapariga do livro tinha sobre si um encanto que ninguém conseguía desatar: estava condenada à eternidade de ler um livro sem fim).
Que disparate! Era por coisas destas que se aborrecía. Recostou-se na cadeira. Tirou um pé do sapato, mexeu os dedos, sentiu fresco.
(Para todo o sempre a rapariga folheava à medida da leitura em voz baixa, as páginas intermináveis de uma história que nunca acabaría. A cerejeira floresceu, deixou caír as flores rosadas, deu frutos vermelhos e brilhantes, perdeu toda a folhagem, fez-se morta e mirrada e de novo despontou pequenos troços muito verdes que antecederam flores perfumadas).
Descalçou o outro pé. Afagou-o no peito do outro. Gostou da sensação de encaixe perfeito que a curvatura de um permitia ao alto do outro. Tentou entrelaçar os dedos, sentiu os nós dos tornozelos a deslizarem sob a planta morna e macia do pé.
(Um dia a rapariga já cansada de ler em voz baixa, emudeceu. E embora continuasse na sua condenação nenhum som embalava a cerejeira, que se dobrou, dobrou e dobrou cada vez mais).
Enfiou os dois pés num só sapato, mal cabíam os dedos, sobravam os calcanhares, apertavam-se os dez num espaço sem ar, sem forma, esbeiçava o calçado a transbordar de um número que não esperava.
(E como se não tivesse sinal da história avançar pela voz baixa da rapariga, a cerejeira esgotou-se na avalanche de flores cor-de-rosa até a cobrir toda e apenas restar um livro aberto, caído sem dono e perdido para todo o sempre).
Agarrou num lápis e escreveu FIM. Depois rasgou a folha que forrava a capa dura do livro grosso e passou a mão pela ilustração que a encantava. Uma cerejeira levemente curva pingava flores cor-de-rosa sobre um livro intitulado "A rapariga que não gostava de ler".
Calçou-se. Abriu o livro e ficou a admirar as ilustrações pastel que cobríam todas as páginas.
(in Telas, C.G.-Outubro/2006)
12 comentários:
Boa Noite
Bem vinda de volta.
Amizade
Luis
Luís XIV,
Uma noite boa também para ti.
Obrigado.
Estava a ver que nunca mais conseguía voltar à Árvore... dias complicadinhos, grgrrrrr...
Semana boa para ti
As flores da cerejeira que pintam a tela em tons de rosa, as flores que baloiçadas ao vento se desvanecem em petalas quebradas tal como as palavras. Palavras intermináveis de um conto sem fim... a vida.
E depois os pés, pontas de uma figura, ou antes ponta de letras por sentir?
Lindo.
Bj.
A propósito já tomei nota.. . talvez setembre... um dia destes.
Bj.
Mateso,
Mais uma análise que vale um poema!
Muito obrigado, mesmo.
Só engrandeces o que escrevo.
AH!
Eu vou tornar-me uma carraça de volta de ti! Quero MESMO ler-te na continuação do que aqui escreveste e que não é espaço digno para o tamanho de prosa que fizeste!
Um beijo Querida Mateso
lindo... fiquei embasbacada. tenho uma história que me fez lembrar esta e que na verdade não tem nada ver com ela. vou publicá-la no meu blog em honra a ti, querida Gasolina.
senti o aroma das rosas nas tuas pétalas da flor de cerejeira
diz-me como posso?
ouvi o virar das páginas, uma a uma, sem que os olhos se cruzem com o esvoaçar das palavras.
diz-me como pode?
desenhei a carvão os cabelos ao vento. numa pradaria salpicada de vermelhos.
consegues vê-la?
descalcei-me, trepei, e enquanto pintava os meus lábios saboreei aos pares a dádiva da primavera.
um beijo
luísa
(A rapariga do livro tinha sobre si um encanto que ninguém conseguía desatar: estava condenada à eternidade de ler um livro sem fim).
Mais uma vez fantástico!!!
Não sei porquê mas encaixei-me aqui!!
Será que fico bem aqui?
Fim?
Desistir?
Nunca!!!
Um beijo de uma formiga, com quase certeza de uns bons meses de trabalho pela frente!!!
:-)
Este texto é uma lição de vida!
Gosto de ti por tanto!!!
Sony
Laura
Uma história publicada em minha honra???
ARREGALO-ME!
E regalo-me!!!
Muito Obrigado Querida laura!
Vou beber a tua história!
Um beijo para ti!
Pin,
Consigo sim... Consigo ver tudo o que as tuas palavras me mostram. E que demonstram que estás de volta à Primavera interior que te fugía.
Fico feliz qua assim seja.
Um beijo Luísa.
Sony,
Claro que ficas bem aqui!
Desde quando uma formiga não fica bem em qualquer lugar?
Até nos piqueniques onde picam a malta! Se não não seríam pic-nics!
É isso Formiga, nunca desistir, nunca.
Beijo grande.
não me canso de reler! entrelaças tão bem as duas personagens, a de "dentro" e a de "fora" e o final é fabuloso: ela não se limitou a ler, recriou-o com as ilustrações...(quem sabe, talvez assim quebrasse o encanto).
um beijo pelo prazer dado
marisa
Marisa,
Ainda bem, é gratificante quando sabemos que o prazer da escrita extravaza para além do do autor.
E tu, leitora fidelissima é uma honra para mim saber-me interpretada para além do que declaradamente se escreve.
Um beijo
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