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quinta-feira, 24 de julho de 2008

Verdadeiras Histórias- Espelho sem imagem


Continuação




- Sabes o que vês no espelho se a ele te mirares à meia-noite? – perguntou a tia-avó, sacudindo-o pelo crâneo.
Joãozinho fechou os olhos com força e mordeu a língua.
- Sabes? – insistia.
Ele tentou ficar surdo.
- Sabes? Experimenta e vês o diabo! – trovejou junto ao topo da cabeça.
Joãozinho conseguiu libertar-se e fugiu para o quarto, para debaixo da cama. Nem conseguia chorar, só tremia.
Ouviu abafado, as palavras trocadas entre a tia Celeste e a irmã. Mas o peso da colcha tirava todo o sentido às frases e ao fim de algum tempo desistiu de tentar perceber o que diziam e cansado pelo susto, aninhou-se e acabou por adormecer.
Passou o resto do mês a tentar evitar encontrar-se a sós com a tia Celeste e quando não o conseguia, virava a atenção e especialmente o olhar para outro lado, desde que não a encarasse.
Difícil era à noite, pois dormiam no mesmo quarto: os sons que a tia Celeste emitia pareciam urros de um monstro, entrecortados por uma aflição no respirar, um engasgo que ele temia sempre, fosse o ultimo e ela morresse, ali mesmo junto à cama dele. Nessas noites terríveis tapava a cabeça para não a ouvir mas também para se esconder – do que ele tinha a certeza – da tentativa da tia Celeste o agarrar e o arrastar igualmente para uma morte certa.
Depois havia sempre aquela sentença do espelho, o diabo à meia-noite, solto para espreitar por trás das costas à espera da oportunidade para roubar a imagem reflectida.
Quando o Agosto terminou e os pais o vieram buscar, sentiu uma felicidade imensa pela segurança dos que lhe queriam bem e num acto de coragem, à despedida da casa da avó, virou-se para trás e deitou a língua de fora à tia Celeste. Mas arrependeu-se imediatamente ao ver que ela passava a mão descarnada na mancha branca do cabelo e isso, era muito mau sinal.
O Outubro chegou, a tia Celeste partiu e quando no inicio de Novembro ela regressou, o seu aspecto estava mais tenebroso que nunca: a orelha direita estava completamente rasgada no sítio onde tinha havido o furo que suportava a arrecada de ouro, apresentando duas peles tristemente penduradas. No entanto, mantinha a outra orelha adornada, tão solteira como ela.
Ninguém fez perguntas e ela também não deu explicações. Voltou tudo à rotina da organização metódica da tia Celeste.
Passaram os anos. Joãozinho passou a João, mas o temor da infância não o tinha abandonado quando estava perto da tia Celeste, agora de cabeça toda branca, a mancha menos destacada, de bengala que a gota não dava tréguas, autoritária e mais envinagrada que nunca.
Numa tarde de Agosto como sete anos atrás, João sentado à mesa bebia um refrigerante e a tia Celeste manejava na sua habitual velocidade a vareta ganchuda embrulhando fios e fios, sem olhar o trabalho de mão, mirando-o profundamente.
Na repetição do destino, João engasgou-se com o gás da bebida e espirrou adiante o líquido, atingido a tia Celeste.
Num sobressalto ergueu-se, tombando a cadeira com estrondo. Pegou num pano e rápido, começou a limpar as mãos da tia-avó. Ela arrancou-lhe o pano das mãos e deitou-o ao chão com raiva. Segurou na bengala e com esforço levantou-se, caminhando manca até à casa de banho. João atabalhoadamente tentava ampará-la mas o pânico de lhe tocar deixava-o apenas preso na intenção.
Chegaram os dois junto ao lavatório e com a água a correr, lavavam à vez as mãos peganhentas.
Foi então que João olhou o espelho e viu reflectida a imagem da tia Celeste, negra, afiada como um traço, as duas metades da orelha direita trémulas, o nariz mais bicudo que nunca, os olhos como dois buracos escuros. A única coisa que parecia iluminar aquela figura era a cabeça branca com a faixa nívea a demarcar-se no cabelo. Quase sentiu pena dela, nesse momento.
- Que estás a olhar?
- Nada…
- Sabes o que vês no espelho se a ele te mirares à meia-noite?

continua

18 comentários:

EboRâguebi disse...

Um homem com o dom de ser homem! Sou um homem, em toda a sua magnitude da palavra! Não me dêem fórmulas certas. Porque eu não espero acertar sempre. Não me mostrem o que tenho que fazer porque vou seguir o meu coração. Não me façam ser quem não sou, não me convidem a ser igual, por que sinceramente sou diferente. Acredito no meu amor e nos meus valores pessoais! Falo, faço e assumo! Sou intenso! 100% Homem, 100% Menino, 100% Tudo. Desfaço-me, Mas refaço-me!...Pois Deus está sempre comigo! Sou Audacioso! Corajoso! Ousado! Porque o mundo pertence a quem se atreve!

casa de passe disse...

está visto que ela já olhou para o espelho à meia noite. espero que seja alguma coisa boa...


joão


ps-intrigante e assustador, isto dava um bom filme do manuel de oliveira, visto que o cesar monteiro já não pode fazê-lo.

papagueno disse...

Sabes que adoro estes contos que tens públicado por aqui?
Beijos

pin gente disse...

estou curiosissima...
volto amanhã e depois e depois...
para olhar o espelho

beijo
luísa

Mateso disse...

Sempre envolvente.. espero por mais.
Bj.

Gasolina disse...

Eborâguebi,

Só publiquei o teu comentário para - MAIS UMA VEZ - não restem dúvidas quanto ao meu desagrado neste tipo de publicidade.
Prefería muito mais um convite directo do que esta profusão de letras sempre iguais que se espalha numa dúzia de blogs apenas para serem visitados.

Já te visitei e até vi que publicas o número de visitas e de que países são oriundas.

É um género. Mas em definitivo, não é o MEU.

PS.: Caso algum dia aqui voltes: O mundo é pequeno. Pois não é que descobri lá no teu EBO o filho da Teresa e do Zé Manel, irmão do Tiago? Que me lembre o Tiago tb era jogador da modalidade! Há algum tempo que não os vejo por estes mares... Os meus beijos são para eles.

Gasolina disse...

Casa de passe,

Será?
Tens que voltar para saber.
Em breve, a resolução.

PS.: Concordaría com o César Monteiro, de modo algum com o Manoel. HUm... só no género "canibais" E mais não digo.

Gasolina disse...

Papagueno,

Obrigado.
É gratificante saber que gostas.

Em breve algumas surpresas que estavam no fundo do baú...

Um beijo imenso no Bairro.

Gasolina disse...

Pin,

OLhar o espelho.
Um hábito que ganhei com o ballet e até hoje não perdi.
Mas o espelho diz tanto... até nos mostra a nós.

Beijos para ti, Luísa.

Gasolina disse...

Mateso,

Obrigado.
Que direi eu então dos teus relatos?
Das tuas personagens?
Uma imensidão!

Beijo para ti, em azul.

pentelho real disse...

expectantemente, virei.

(as gramáticas perece não reconheceren este advérbio, mas eu gosto dele).

um beijo

Laura Ferreira disse...

Eu volto de certeza absoluta...

Gasolina disse...

Pentelho Real,

Princesa, podeis sempre descansar sob a minha Árvore.

Expectantemente.

Eu também gosto ou não gostasse eu de surpresas, o que hoje em dia se revela cada vez mais dificil.

Um beijo Princesa,
(Vénia)

Gasolina disse...

Laura,

Vem.
Fiquemos a conversar por horas, sem rumo e em desatino.
Coisas sérias pelo meio.

Um beijo

SONY disse...

Já tinha saudades de ler desenfreadamente até à última palavra...última por aqui, vou até lá em cima ver o espelho :-)

sabes porque não li já este texto?

porque sou tão curiosa que não aguentaria esperar até escreveres a continuação!
assim li hoje as duas partes :-)

Os teus contos inebriam-me!
Leio-os sem piscar os olhos!

Uma beijoca,
Sony

Gasolina disse...

Sony,

Bom... então deixa-me dizer-te que já perdeste a 1ª parte, pois o texto é composto de três delas...

E infelizmente, não arrisco deixar muitos textos em aberto e tu sabes bem porquê.

Um beijo grande Formiguinha!

SONY disse...

Sim Gas, eu apercebi-me que havia a 3ª parte...mas para bom entendedor meia palavra basta...ou melhor duas partes!
:-)

sim e deves mesmo fazer isso, compreendo, andei a tentar ver se via a 1ª parte mas não consegui, pensei logo nisso porque já antes não consegui ver um post anterior.

Bem feito para mim .-)
tivesse vindo mais cedo.
uma beijoca grandeeeeeeeeee!
sony

Gasolina disse...

Sony,

Pára lá com isso do "bem feita"!

Leste o principal e mesmo que não o tivesses conseguido outras coisas virão.

O que interessa é que estás na árvore e à sombra fresca.

Com um beijo meu.