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terça-feira, 26 de agosto de 2008

Contos Curtos Quase Escuros - O gajo

Deu um esticão aos atacadores, laçada, dupla laçada, bateu com os pés a troca-passo, enfiou o casaco pela cabeça e bateu a porta. Voltou atrás e deu a volta à chave na fechadura esbeiçada de outras tentativas de entrada por meios menos próprios feitos por ele mesmo quando na correría desenfreada de encontrar o resto do bando se esquecía da chave pelo lado de dentro ou na troca de casaco apalpava o bolso desoladoramente vazio.
Atirou-se escada baixo, no último lance montou-se de amazona no corrimão e juntou mais um pouco de lustro às calças, tacões a derraparem na esquina húmida de paralelípipedos.
O resto da viela gingou-a devagar, o olhar de soslaio para as varandas, cigarro a alumiar-lhe o nariz demasiado comprido e de viés.
Encostou-se ao gradeamento do ponto de encontro, bateram as nove. E também a meia dessa. Não tinha relógio, pendurara-o no prego por causa de uma aposta estúpida que perdera ao braço de ferro com o talhante do bairro. Tinha sido uma boa aposta: bife à borla se o vencesse...
O sino anunciou as dez e lá apareceu o primeiro, calmo, a noite ainda agora se fizera. Aos poucos os outros, um grupo de cinco que contava à vez os feitos do dia, qual tinha sido o mais malandro, o que apalpara a miúda mais boa.
Ficaram ali até alguém de uma varanda lhes gritar pouco barulho e ele, afoito, convidar para vir cá abaixo, tudo a rir.
A noite refrescou-se no entrar do novo dia e dois dispersaram. Ele chamou-lhes maricas e meninos da mamã. A seguir despediu-se o terceiro e o quarto disse-lhe para ele esperar que também já ía.
Ouviu as três da manhã, chupou o último cigarro, praticou argolas com os movimentos da boca e ficou a furá-las no próprio cigarro. Guardou as mãos nos bolsos e sorriu para si porque hoje tinha a chave. Dobrou a esquina a olhar para os sapatos. Foi quando sentiu um ardor na barriga que o queimou todo até às goelas, dobrou-se, caíu de joelhos, sentiu que lhe puxaram o braço mas não conseguiu fazer nada, a outra mão no ventre fazía força para parar de doer.
- Este gajo nem relógio tem! Nem dinheiro nem nada! Só uma merda duma chave! Que gajo este, tss!

10 comentários:

mundo azul disse...

...nossa! Que triste...

Seu conto é excelente! Num texto tão curto, contou uma vida e o final dessa...


Beijos de luz e o meu carinho!!!

Patti disse...

Excelente descrição! Estou mesmo a ver toda a cena e o gingar.
Um bom malandro.

papagueno disse...

mais um conto com um final de cortar a respiração.
Beijos

Vicktor Reis disse...

Querida Gasolina
Tens o dom de transformar um tema vulgar nos dias de hoje, banalisado pela comunicação social, num magnífico conto, numa crónica com um maravilhoso cariz literário. Magnífico! Obrigado pelas tuas sempre tão belas partilhas.
Beijo-te.

SONY disse...

Gasolina,

Vi aqui o nosso "hoje"!

Sem trabalho, viver para comer, por no prego o que ainda se tinha, os maiores são os que apalpam as "gaijas" mais boas,vida fácil, não podia ter um fim fácil!

ao menos podia ter comido o bife coitado...

Já não se pode não ter nada!!!
Pagamos por ter e por não ter!
Mata-se por nada...
A vida para alguns parece que é como ir ali e já volto, mas não se volta ,não há noção disso hoje em dia para alguns, infelizmente!

Vejo aqui um texto diferente!

Beijo,
Sony

Gasolina disse...

Mundo Azul,

Triste e muito real.
Tempos dificeis estes...

Um beijo

Gasolina disse...

Patti,

Creio que todos nós, nem que seja uma única vez na vida, vimos a conhecer um "gajo"...

Gasolina disse...

Papagueno,

(Sorriso grande)

Obrigado.
Se assim foi e tb. pelo gozo que me deu, objectivo alcançado.

Um beijo para ti

Gasolina disse...

Victor,

Muito obrigado pelas tuas sempre palavras carinhosas e presentes.

O tema do texto parece estar a entrar na linha da rotina, infelizmente.

Um abraço apertado, um beijo Querido Victor

Gasolina disse...

Sony,

Tens razão: por se ter e nada ter é-se vitima.

Claro que as razões são do foro politico e social e aunto menos qualidade de vida maior os indices de criminalidade.
Mas não vou falar destas coisas chatas que todos sabemos.
Até para isso o verbo foi feito; dar um pouco de brilho ao que nos entristece.

Um beijo Formiguinha.
Força!