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terça-feira, 19 de agosto de 2008

A Res Publica

Desceu as escadas engolidas para a estação de metropolitano de mochila verde de penduro no ombro direito e na mão esquerda uma pasta com duas marmitas, um pão e duas cervejas.No átrio de cimento junto aos canais de acesso sentiu uma pressão na cabeça, um gosto de acetona que lhe tomou a língua e as gengivas, um formigueiro no ombro e no peito sobre o lado do coração, as pernas presas no caminhar não obedeceram assim como a garganta, quando tentou cuspir um pedido de socorro. Admirou-se com o apagão que se fez de súbito ficando sem conseguir ver adiante.Não se recorda de mais nada.

O chefe de estação pegou no free-set e chamou os seguranças: não queria aquele negro perdido de bêbado ali estendido no atrium da sua estação; urgia que o tirassem dali, que era hora de ponta e os utentes não podem chegar atrasados.O vai vem de gentes abrandou a sua marcha, tropeçando numa mochila verde, empatando-se num pé de um negro deitado no cimento, parando para ver e poder contar depois lá no emprego o que tinham visto logo pela manhã.Os seguranças ajoelharam-se junto ao homem negro, a pasta perdida de lado, os pés orientados às 19h20, abanando-o, pedindo para que se levantasse.Um circulo fechou-se rodeando em aparato o homem no chão e os seguranças em posição de prece; alguns passantes desistiam do seu destino e por ali ficavam perguntando o que tinha acontecido; outros, em bicos de pés, tentavam vislumbrar o centro do círculo mas as cabeças dos que estavam à frente tapavam todo e qualquer pormenor do espectáculo.Uma mulher usando os cotovelos abriu caminho entre o amontoado: acercou-se dos seguranças e exibiu, de cócoras, um cartão que a identificava como enfermeira.Não houve mais troca de palavras: ela aplicou o indicador e o médio sobre o pescoço do homem negro; depois, tomou-lhe o pulso e olhou para um dos seguranças mais perto dela; ele ergueu-se com um pulo e pelo telemóvel disse que viessem, que viessem, que estava um homem morto na estação de metropolitano.A roda abriu-se como uma flor a desabrochar emitindo um som único de A, para logo se voltar a fechar apertando mais ainda o círculo. As perguntas sucediam-se numa adivinhação, alguns apostavam que o homem negro estava bêbado como sempre acontece aos homens negros, outros que estaria drogado mas a hipótese que reunia mais votos era mesmo que tinha havido uma vingança e o teriam “matado”.O burburinho de vozes atingiu decibéis idênticos aos de um mercado e ninguém prestava atenção à autoridade dos seguranças, que aos empurrões infrutíferos tentavam arredar a turba.Chegaram os paramédicos um quarto de hora depois de os terem chamado, exaltados por lhes apontarem demasiado tempo a aparecerem: com um joelho por terra, dobrou-se um deles sobre o rosto do homem negro e repetiu os gestos da enfermeira que ali continuava; depois, insuflou da sua boca para a boca do homem negro ar que lhe inchou as bochechas; o outro de joelhos sujos no uniforme branco, prensava o peito do homem negro com as duas mãos encavalitadas uma na outra; e as manobras de boca e mãos alternavam-se a tempos certos. Ofegantes e suados olharam nos olhos um do outro e pararam de manipular o homem negro; uma última punhada, violenta, foi dada no peito do homem negro, que abanou com o impacto. Levantaram-se e disseram alto e bom som que estava morto, afastando-se.Os seguranças continuavam na dura tarefa de afastar os transeuntes, surdos às perguntas que lhes eram feitas, recebendo gestos de mão fechada ameaçando contra os empurrões que recebiam.O chefe de estação estava contrariado: logo na estação dele que era um modelo a seguir, um exemplo de urbanidade e limpeza…até poderia ficar com a folha de serviço manchada.Outros uniformes brancos acercaram o homem morto: vinham estes tão só confirmar o óbito.Alguém na gula de se chegar ao cadáver e por que foi empurrado por outros que tentavam o mesmo, desequilibrou-se e chutou a mochila verde que fora do homem negro, perdendo-se esta por entre a floresta de pernas.O médico tomou nota da hora da morte e ordenou ao enfermeiro que o acompanhava que fornecesse um saco para cobrirem o homem negro. Foi na altura que o vestiam de plástico, que um outro homem negro se aproximou, deu uns estalos com a língua e proferiu uns sons indecifráveis. Acocorou-se junto ao corpo ensacado e silenciou-se, só as lágrimas brilhavam na face negra.Uma mulher aproximou-se e num dialecto trocado com o homem acocorado, decifrou para os seguranças que ali continuavam num afã, que o morto era colega de trabalho do acocorado e já inclusive haviam partilhado um contentor quando chegaram de África, que estava cá sozinho, mulher e filhos noutro continente. Um dos seguranças agarrou no braço do colega e disse-lhe para os deixar estar…que não incomodavam ninguém, no fundo, era o velório do homem negro.A estação de metropolitano voltou quase ao normal na correria dos atrasados, no desfile de mulheres belas, dos que deitam papéis ao chão, daqueles que admoestados teimam em acender o cigarro; dos que param para saber que saco de plástico tão grande é aquele que jaz no chão.Chegaram dois agentes da autoridade munidos de fitas brancas raiadas a vermelho delimitando a zona proibida onde o cadáver está deitado. Aguarda-se agora pelo delegado de saúde para atestar aquilo que todos sabem: a morte.Passaram mais de quatro horas desde que o homem negro sentiu aquele gosto estranho na boca e deixou de recordar fosse o que fosse.Os seguranças ligaram várias vezes querendo saber a que horas vem o delegado de saúde, que aquela é uma estação onde passam diariamente 85.000 pessoas e o chefe de estação está contrariado com o sucedido; mas parece que o delegado não virá tão cedo que é já hora de almoço e estas coisas do estômago não se contrariam e até faz mal à saúde tomar as refeições a correr.A hora da sesta chegou e o homem negro morto e ensacado continua no cimento frio do átrio da estação de metropolitano, rodeado de fitas brancas raiadas a vermelho delimitando a área onde se encontra acocorado outro homem negro a chorar e uma mulher que fala um dialecto recita uma ladainha baixinho.O delegado vem acompanhado de dois policias e uma maca. Deitam o corpo pesado na maca e vão embora, levando de arrasto como final de um corso carnavalesco uma ponta de fita branca raiada a vermelho.O homem negro acocorado e a mulher do dialecto perderam-se por entre a multidão e fazem parte do número elevado de utentes da estação de metropolitano. O chefe de estação retomou a compostura e até já tem um sorriso de volta. Os seguranças são rendidos por outros seguranças.Acabou o turno, acabou o dia, acabou uma vida.Ao sair da estação de metropolitano um dos seguranças já desfardado tropeçou numa mochila verde e reconheceu de quem era: doeu-lhe por dentro sem saber porquê.Mas pensou para si que quando chegasse a sua hora muito gostaria que acontecesse em privado, sem gritos nem audiência nem um vai vem de enfermeiros e policia a tocarem-lhe e uma eternidade à espera do nada.Bastava-lhe um dos seus acocorado junto a si, como vira.
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(in Homens, Mulheres e Outras Coisas do Coração, C.G-Nov/2005)

10 comentários:

SONY disse...

Gasolina,

...hepa, texto forte este!!!

Senti o amargo, o formigueiro, até a punhalada no peito, ouvi a ladainha, vi a mochila verde...ouvi aqui o resmungar do chefe da estação...ou seja és fantástica, consegues prender-nos...cada palavra, cada personagem.

*Teria mudado o final se a cor do homem também mudasse?
Estou certa que sim!
Disseste tanto aqui neste post, gosto de ler assim!!!

Tu percebes...

Um beijo da tua fã,

Sony Formiga :-)

papagueno disse...

Triste maneira de partir.
beijos

Mateso disse...

O vazio ds grande cidade...sempre por entre as gentes.
Muito bom. Parabéns.
Bj.

marisa disse...

os teus contos são sempre, ou quase sempre (para a crítica severa que és de ti própria), perfeitos. gosto dos detalhes, da fina ironia e especialmente do final. com a última frase consegues sublinhar a cena verdadeiramente importante do ponto de vista emocional, na minha opinião.
um beijo de admiração
marisa

Gasolina disse...

Sony,

Claro que te percebo Formiga.
E obrigado por entenderes a mensagem.
E por estares nas folhas da Árvore.

E por tudo.
(agora sou eu)
Tu percebes...

beijo Formiguinha

Gasolina disse...

Papagueno,

Acho que partir é sempre triste...mas desta forma é inglória para a vida já vivida.

"Today is a good day to die", gostava de poder dizer isto quando chegar a minha viagem.

Um beijo para ti e outro para o bairro

Gasolina disse...

mateso,

Infelizmente.
E infelizmente o texto tem muito de ficção mas baseou-se num facto.

Obrigado por gostares.

beijo grande em ti.

Gasolina disse...

marisa,

Este texto já foi escrito há algum tempo. Um tempo de produção descomunal em que as páginas crescíam a uma velocidade (infelizmente) inferior ao pensamento.

Agora analiso-me, acho-me, condeno-me. Por vezes creio que a inocência das palavras se perderam para mim e um certo pudor impede-me de publicar aqui muita coisa que tenho.

Porquê?

Ando à proura de respostas, de soluções, de caminhos.
Mas o caminho faz-se caminhando e por isso não consigo parar de escrever.
É o afecto das palavras que não me deixam.

Obrigado por esta força de gigante que me dás.

Um beijo, um abraço

Charlie disse...

Tens um escrever portentoso. Confesso-me teu absoluto fã.
Extraordinário texto, sabes?
Extraordinário....

carlos
http://cartassemvalor.blogspot.com/

Gasolina disse...

Charlie,

Muito obrigado.

Digamos que o tamanho assusta os preguiçosos.
E agora sem imagens ainda mais, embora alguém de quem eu muito gosto me tenha dito que as imagens não fazem falta aqui.

Obrigado pelas tuas palavras, fico feliz que tivesses apreciado.