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sexta-feira, 19 de junho de 2009

Memória sabática (2-Os sons)

Por volta das cinco da manhã levantava-me, fechava a porta da cozinha, tentava que o barulho da velha máquina de escrever não acordasse o resto da casa.
Trazía folhas soltas escritas dos dois lados, sem continuação do parágrafo solto aqui e ali, depois noutro lado, depois em lado nenhum, que a verdade é que nunca fui muito de tomar apontamentos ou até mesmo agarrar-me aos livros como uma menina estudiosa; passava tudo pelo ouvir, pelos sons das palavras que me chegavam e eu agarrava na lembrança, era muito como o cantar de cor.
O inicio demorava, a folha encabeçada pelo título ficava especada a olhar-me. E num repente, em ondas imparáveis chegavam palavras, frases inteiras, uma velocidade dificil de acompanhar, desenvolvía-se o trabalho quase por si mesmo. De quando em vez a objectividade escapava-se por entre linhas mais ou menos poéticas, a ficção aparecía, fugía do meu rumo inicial, aquele não era um texto de faz-de-conta, as teclas a baterem no papel e a tingirem-no, uma e outra letra que teimosamente se prendía entre os ganchos das outras, retrocesso, engano, radex, tablador, roda o cilindo, muda a linha.
Pelas seis e meia o sono aparecía, a Mãe também, o sermão, por fazer os trabalhos em cima do acontecimento, o barulho a incomodar os que queríam sossegar, a nota que decerto, sem preparação prévia nem estudo aplicado rondaría não mais do que o suficiente... Arrumava tudo, acertava as folhas cheias, recolhía-me e finalmente dormía num sono profundo, cansado mas sossegado depois de remoer uma insónia antes de despejar o que tinha dentro da cabeça.
Nunca tirei notas inferiores a 15, 16 valores. E hoje acordei com o som da máquina de escrever, a voz da minha Mãe a ralhar-me, um tempo que eu achava dificil, mas só porque não conhecía os de agora. Agora não me dão notas de 15 ou mais valores, mas continuo a ser avaliada e nem sequer me dizem quanto merece o meu trabalho.

6 comentários:

Vicktor Reis disse...

Querida Gasolina

Um bonito texto de memórias. Memórias? Actualidade pulsante na tua forma tão própria de escreveres.
Por mim não tenho capacidade de te avaliar, mas tenho a do reconhecimento pelo teu trabalho e por quem és... e a grande ventura de teu amigo ser e, muito em especial, de seres minha amiga.

beijinho.

marisa disse...

À tua escrita dou eu um 20, melhor um 21 para arrebentar a escala :).
Importante é tu saberes quanto vales...
Beijo grande
marisa

tiaselma.com disse...

Gasolina, dou-te 99, velho hábito japonês para que busquemos sempre a perfeição(?) do 100. Senão,damo-nos por prontos. Estagnam corpo e espírito. :~D
É fantástico o processo criativo... Folha em branco, sentimos enorme onda se armando, subimos nela como surfistas e ela nos derruba, nos embrulha e nos devolve exaustos e perdidos ao quebra-mar do texto final.
De outras,uma marolinha de nada resulta primorosa, fazendo-nos escorregar macio no espelho d'água das ideias e das lembranças.
Mas terá sempre valido a pena.

Beijocas levemente sonoras. Há os que dormem...

Gasolina disse...

Vicktor,

Um tempo tão ao longe que dá para me ver nele, daqui de onde agora me encontro.

Amigos sim. Sem tempo.

Um beijo, um abraço

Gasolina disse...

Marisa,

Obrigado pelas tuas notas.
Tens oferecido sempre as melhores, as de coração e cabeça, como um bom perfume.


Abraço-te apertado.

Gasolina disse...

Tia Selma,

E eu recebo esse 99 orgulhosa.

Mas mais por te contar como folha, enriquecendo a copa da árvore. Obrigado.


Um beijo de boleia. Para ti, marolinha