Só café, duplo, hoje só café e nada mais à boca que já me basta o que mastigo para mim numa pergunta-resposta do que podería ter dito, não disse tudo, nunca se diz tudo, fica sempre um resto depositado entre a língua e o céu da boca e a esperança que do outro lado haja lingua e céu da boca capazes bastante de saber as mesmas palavras.
Na mesa ao lado um homem de óculos pousados na cabeça vai comendo letras ao jornal, esquece o café, a colher dentro da chávena branca. Não lê, aproveita o biombo das páginas impressas para me observar, sinto-o, sei que me olha cheio de interrogações, que será que escrevo eu, enchendo folhas de um lado e de outro, de relance largo caneta e miro-o, sacode o jornal, esconde-se, entre a lingua e o céu da boca fala, há uma mulher na mesa ao lado da minha que tenta desesperadamente aguentar as lágrimas e escreve, muito, gostava de saber o que escreve, a quem escreve.
Não escrevo a ninguém, alivio-me de palavras que ficaram por desenhar, não disse adeus.
O café frio é igual ao café duplo sem açucar, são esquecimentos, são bocas que se fecham, são o adeus não dito, e assim sendo posso oferecer à saída a folha que tanto escrevi. O homem na mesa ao lado recebe-a e finalmente lê.
(in Eu na Versailles, escritos improváveis, C.G.- Novembro/2005)
11 comentários:
que presente original! acredito que o tivesses mesmo feito...:)
bj e boa semana
marisa
Marisa,
Não sei se o homem o considerou como tal... mas que ficou surpreendido ficou!
Embora naquele tempo eu fosse assídua da Versailles não o voltei a encontrar por lá.
Ainda bem. Assim foi mais engraçado.
Um beijo para ti, para o Reno
Boa semana!
fiquei com curiosidade de saber o que escrevias,tu e os outros,
tantos mundos nos cafés.
ficou com medo que tivesse de (cor)responder à altura...
obrigada, bom semana também para ti na companhia do Tejo
um beijo
marisa
Margarida
(2em1)
Só eu escrevía.
Queres mesmo saber?
Escrevi o que não disse a um homem que partiu para Israel e nunca mais vi nem voltarei a ver. Ambos o sabíamos.
Mas eu não gosto de despedidas.
Alguns cafés são universos paralelos. Misticos. Quando entro num gosto de observar alguns detalhes em exclusivo. Por exemplo, num dia só olho para as mãos; num outro só analiso as cores que trazem vestidas.
Manias...
Marisa,
Acho que a surpresa foi tanta (ou o susto) que nem teve reacção!
Bom... Eu também não lhe dei tempo, a minha cabeça andava longe nesse dia...
Um beijo, MUITO GRANDE!
Estou actualmente limitada a cafés com espaço para fumadores.
Não consigo escrever sem fumar.
E quando me sento num café, não é para o café, é para escrever.
Ha muitos homens distraidos nos cafés. Distraem-se com as letras que outros vendem e sonham o mundo que fora do café existe.
às vezes parecem-me meio mortos.
quando passo por eles, tenho medo que a deslocação de ar, os desloque também...para outro mundo.
Felizmente o teu homem do café ainda estava vivo e sabia ler.
Nos gestos.
:)
Arabica,
Finalmente!
Haja alguém que não tem receios de se afirmar fumador!
E escritor!
E que do café faz cómodo para despejar e beber letras.
Concordo contigo. Anda por aí muita gente que perdeu os olhos, a boca, o coração. Mas não só nos cafés.
O homem... sabía ler sim, e também era um grandessíssimo cusco!
Beijos
Querida Gasolina
Para ti:
"Tirou mais uma fumaça
Do cigarro que já lhe amargava a boca.
Na ténue nuvem cinza
Moldou-se imaginação...
Corpo querido, de muito amado
Que nas mãos quis recolher
Em doce carícia.
Olhou então as mãos
Marcadas do viver.
Crispadas sem génio.
O fumo desfez-se
Na imaginação."
Beijo-te.
Victor,
Mas que belo presente!
Muito obrigado, a Árvore curva-se.
Beijo de muito carinho, Querido Amigo
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