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quinta-feira, 17 de julho de 2008

Verdadeiras Histórias - Espelho sem imagem




Aquela era uma tia-avó.
Celeste de seu nome.
Mas só de nome: magra como um pau, os dedos longos, o nariz fino e dobrado, olhos encovados, cabelo arrepiado num rolo, orelhas demasiado pendentes pelo peso do ouro das arrecadas rendilhadas.
Sempre vestida de negro, porém casada nunca o fora que o compromisso que tivera por quatro anos, deixou-a viúva no altar, à espera de um noivo fugitivo. Desde esse dia trocou a alvura pela escuridão do temperamento e do azedume pela vida. O único brilho que parecia iluminar aquele rosto era uma mancha de cabelo branco que lhe despontara na primeira noite das núpcias não consumadas e de cada vez que a imagem do espelho lhe devolvia a recordação do abandono, ela passava a mão e alisava na madeixa o seu desgosto.
A tia Celeste tinha as funções de governanta de uma casa: tanto orientava a despensa como se ocupava dos netos da irmã. Sempre vivera com esta, não como hóspede mas como suporte de toda a família. E em Outubro, quando partia para as termas para uma cura de um mês da gota que a afligia, todos sentíam a sua falta. No resto do tempo aguentavam calados os seus humores e a sua língua áspera como paga pelos serviços prestados.
Joãozinho era o neto mais velho e naquele Agosto ficara entregue aos cuidados da tia Celeste.
Tinha medo dela. Dos olhinhos pequenos e fundos, do nariz idêntico ao bico das aves. Tinha medo dos sons que ela fazia quando dormia no mesmo quarto dela. Tinha medo das histórias que ela contava, em que os maus ganhavam e os bons eram humilhados. Tinha medo porque ela nunca sorria. Tinha medo que ela o tocasse mas também por ela nunca o ter abraçado.
Joãozinho quase perdia a fala quando estava perto dela e obedientemente cumpria as tarefas ou as ordens que ela lhe dava e não adiantava de nada queixar-se à avó, pois esta já lhe dissera de outras vezes, que a tia Celeste só queria o bem dele.
Ele desconfiava mas aguentava como podia.
Naquela tarde de Agosto, depois de contrafeito ter dormido a sesta chegou-se à mesa para o costumado lanche e sem proferir palavra quanto às natas que boiavam, fechou os olhos e engoliu sem saborear o leite frio e sem açúcar.
A tia Celeste fazia crochet a uma velocidade considerável e sem olhar os fios que engatava uns nos outros, fitava-o profundamente, muda, sem expressão.
Joãozinho agoniou-se com uma nata mais espessa e engasgado pelo vómito, tombou o copo ainda meio e verteu o gole que lhe enchia a boca. Celeste deixou caír a agulha feita de uma vareta de roda de bicicleta que ela própria havia dobrado na ponta e aquele barulho da gancheta a cair ao solo, teve a dimensão de uma avalanche.
Erecta, moveu a figura até ao menino e alçando-o por um braço levou-o de arrastão até à casa de banho.
Empurrou-o para o lavatório e forçando-o pelo pescoço atirava-lhe chapadas de água que o sufocavam no nariz e na boca. Ele aflito começou a debater-se: não conseguia respirar e aquela mão parecia uma corda a apertar-se como um enforcamento. Sentia-lhe os joelhos ossudos a pressionarem as nádegas e num ímpeto agarrou-se à beirada do lavatório e abriu a garganta ao grito.
Celeste pareceu surpreendida pelo acto de revolta mas rápido tomou a compostura e entre as mãos prendeu-lhe o rosto: olhou-o primeiro, longamente; ele calou-se de imediato. E logo de seguida virou-lhe a cabeça para o espelho que pendia sobre a bacia. Só que a pequena estatura de um Joãozinho de sete anos, apenas permitia que os remoinhos no alto da cabeça aparecessem reflectidos…para além da imagem de estaca negra que surgia em toda a sua dimensão desde a cinta até à mancha branca do cabelo.
- Sabes o que vês no espelho se a ele te mirares à meia-noite? – perguntou a tia-avó, sacudindo-o pelo crâneo.




Continua

22 comentários:

Daniel disse...

Gasolina

O Joãozinho deve estar feito ao bife. Veremos do que a velha tia, a impotente "bruxa negra".
Pode ser que lá no fundo, nem seja má de todo.
Daniel

Mariazita disse...

Passei por acaso, mas tenho que voltar! Não posso perder a continuação...
Belíssimo! Gostei imenso.
Parabéns.
Beijinhos
Mariazita

Laura Ferreira disse...

...mais!!!!

Daniel disse...

Gasolina

O Joazinho, teve azar, educado por uma mulher velha. tipo bruxa negra, em vez de respeito, ganha medo e procurará libertar-se, daquele medonho semblante. Puxa!...
Bem contado!...
Daniel

Ema Pires disse...

Estou impaciente por ler a continuaçao deste conto. Va, nao sejas mazinha e poe là o resto. Esta noite nao durmo, pensando no que poderá passar.
Explêndida escrita que tu tens querida amiga de fogo. Isso é talento.
Beijinhos

Francisco Medina disse...

Muito bom.
Bj

mundo azul disse...

... que bruxa! Ser mau humorada, ter lá seus recalques...Tudo bem! Mas, judiar de criança é coisa que não consigo entender...

Gostei da história, apesar de não ter simpatizado nem um pouco com a Celeste...

Beijos de luz e um domingo feliz!!!

pentelho real disse...

fico à espera...

Gasolina disse...

Daniel,

É isso mesmo.
Não se profira a sentença antes de todas as provas serem apresentadas.

Um beijo

Gasolina disse...

Mariquinhas,

Bem vinda.
Pois... se queres saber o que vai acontecer tens mesmo de voltar.

Obrigado pelas palavras.
Beijo

Gasolina disse...

Laura,

Fazes-me rir!

Ok, ok.
Em breve, prometo.

Um beijo enorme.

Gasolina disse...

Daniel,

Quanta honra!
Dois comentários teus no mesmo texto!

Será que é mesmo uma bruxa?!
Ou não?

Mistério...

Gasolina disse...

Ema,

Querida Amiga de Fogo,obrigado por tais elogios mas bem longe estou eu de tal adjectivo...

Quanto ao resto, em breve se desvendará.

Um beijo com um abraço apertadissimo em ti.

Gasolina disse...

Xico,

Obrigado my Man!

Leva beijo da Árvore!

Gasolina disse...

Mundo Azul,

Olá, voltaste!

Vamos ver se a Celeste não será mais infernal... a seu tempo.

Boa semana tb. para ti desse lado do mundo.
Beijo

Gasolina disse...

Pentelho,

É uma honra receber-te de novo Princesa.

Obrigado.
Volta.
Descobre quem é a Celeste.

Mateso disse...

Há maãs assim ácidas, porém são muito sumarentas. Talvez celeste seja uma dessas maçãs... fico à espera.

casa de passe disse...

vim lá de cima à procura do princípio, que não gosto de começar as coisa pelo meio.

agora sim, vou lá outra vez.


joão

pin gente disse...

vou já ler a 2ª parte...

Gasolina disse...

Mateso,

Tens toda a razão!
E uma coisa é garantida: nas maçãs ácidas o bicho não entra.

Beijos para o teu azul

Gasolina disse...

Pin,

:)

Gasolina disse...

Case de passe,

Pois... assim perderías o sentido da coisa...