Levantou-se num repente a sacudir o frio, enfiou os pés nos chinelos e rapilhou até à cozinha, aqueceu café, juntou-lhe leite e várias colheres de açúcar, mudou a água dos bebedouros dos pássaros e assobiou-lhes imitando o trinado. Os canários esvoaçaram, não cantaram.
Olhou a rua, o céu chumbo, escondeu as mãos nos sovacos quentes e esfregou as pernas uma na outra. Pensou no que tinha para fazer, não achou nada. Lembrou-se que tinha imaginado nesta segunda-feira ir passear, vestir-se bem, ver gente bonita. Lá fora, um e outro transeunte dobrava-se enrolado nos sobretudos, olhos semi-cerrados à chuva miudinha que começara a caír.
Arrepiou-se, vestiu o robe comprido e calçou umas meias.
Sentou-se, nada para fazer, suspirou, banho talvez, mas depois do banho fazer o quê, nada para fazer. Traçou a perna e baloiçou o pé, rodou-o, agitou-o mais ao alto, cada vez com mais força, saltou o chinelo, sorriu, lembrou o avô que lhe dava cavalinho na perna, as mãos miúdas nas grandes dele, uma confiança plena na cantilena do Rei, Capitão, Soldado, Ladrão, Menina...
Menina, já o fora há tanto tempo, muito lá para trás, o bibe, as tranças, a escola, o recreio. A chuva engrossou. Cai de lado, veio o vento, ninguém na rua, talvez tivessem imaginado ir passear e ver gente bonita nesta segunda-feira. Depois cortou o cabelo, depressa se empertigou nos saltos, conheceu namoros.
O vento assobía, muito melhor do que ela aos canários. Não se lembra das caras dos namorados, só alguns nomes, faz confusão com a cor do cabelo, volta trás, esforça-se por reconstruír vozes e palavras que lhe deram e até sitios onde esteve. Não passou tanto tempo que lhe tenha apagado quem foi ontem, que fez ontem, que comeu, terá chovido, não, a terra não se tornou lama ainda.
Esfrega as mãos no rosto, talvez assim se recorde melhor, não, não vem nada, só lá fora a chuva parou tão rápido como veio, passear e ver gente bonita, espreita, ninguém, vê-se reflectida na janela gotejada, as memórias saltaram-lhe todas nos sulcos da cara, uma terra que não empapou de água.
Ladrão, Menina bonita do meu coração.
15 comentários:
Bela narrativa.
Klatuu,
Obrigado.
Abraço às Crónicas.
Já o vi três vezes. O post não, esse li-o apenas uma. Mas não consigo evitar não me deter naquele rosto. Lembra-me algo, e lembra-me que em cada uma daquelas rugas roubaria eu uma história.
Um beijo
NOTÁVEL DE REALIDADE E HUMANISMO! UM TEXTO QUE FAZ PENSAR E MUITO, NO QUE, SÓ QUANDO E SE LÁ CHEGARMOS, SENTIREMOS NA CARNE E NA LUCIDEZ QUE AINDA NOS ACOMPANHAR NO INVERNO DA VIDA!
O DIA EM QUE NÃO HAVERÁ NADA PARA FAZER...SENÃO TENTAR RELEMBRAR UM PASSADO MAIS OU MENOS FELIZ...
VOU PASSAR PELA AMIGONA, QUE MUITO LIDA COM "GENTE COM MUITOS ANOS" E RECOMENDAR ESTA PEDRA PRECIOSA...
BEIJO COMOVIDO, AMIGA!
PS- VOU SEMPRE LER AS TUAS RESPOSTAS AO MEUS COMENTS, JÁ SEI QUE RESPONDES INDIVIDUALMENTE...
+1 BEIJÃO
Passar o tempo sem achar o que fazer é como deixar passar o tempo...passei por aqui por indicação da aspásia e encontrei um texto, infelizmente, tão real nos nossos dias para tanta gente que não acha que fazer TODOS os dias da semana...tudo de bom...
Recordações! E como é bom recordar! Afinal só recorda quem está vivo e quem viveu. Sinal de que nem tudo foi mau.
Gostei muito!
Beijinhosssss
M.,
Cada vinco, cada sulco, cada marca são sinais de um tempo que desenharam dores e alegrias.
Quando vi aquela fotografia e ao contrário do que é habitual, achei que tinha que escrever sobre ela.
Foi aquele rosto que me contou a história, não fui eu que fiz palavras e depois tentei encontrar uma imagem.
Beijo, M.
Lindíssimo o conto e a fotografia é fabulosa.
Bjks
ASPÁSIA,
MAIS UMA VEZ ESMAGAS-ME COM AS TUAS PALAVRAS.
OBRIGADO POR TANTO CARINHO.
BEIJO ENORME.
PS.: ACHO IMPORTANTE RESPONDER INDIVIDUALMENTE A QUEM ME LÊ. CADA UM DE VÓS É DIFERENTE DO OUTRO E MERECEM-ME RESPEITO, ATENÇÃO E A DEDICAÇÃO QUE ME PRESTARM NO MOMENTO DA LEITURA.
BEIJINHOS
Amigona Avó e a Neta Princesa,
Obrigado por teres vindo.
A Aspásia tem destas coisas, tão próprias dela: DAR.
Infelizmente assistimos todos os dias a casos destes, um tempo parado sem nada para fazer, tão pouco uma atenção para dar.
Um beijo, fica bem
Sophiamar,
Tens toda a razão.
Mas até para recordar é bom que haja um tempo certo para tal e nunca em vez de, ou por falta de outras coisas a fazer.
Muito Obrigado por teres vindo à Árvore.
Beijinhos
A fotografia é fantástica e o texto faz-lhe a honra. E a cantilena do rei, capitão, soldado, ladrão...fez-me recordar também a minha infância. Obrigada.
um beijo
marisa
Papagueno,
Fiquei deveras impressionada com esta foto.
Acho que jamais a esquecerei.
Muito obrigado pelas tuas palavras.
Beijo para ti, beijo para o Bairro
Marisa,
Esta cantilena dizía-me o meu Avô.
Muitas saudades.
Obrigado por te lembrares dela também.
Um beijo grande para ti.
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