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quarta-feira, 23 de janeiro de 2008

Overtime

Houve um tempo em que eu fui uma pessoa normal. Como toda a gente. Levantava-me, ía trabalhar, pagava impostos, almoçava de pé, dormía nos transportes para aproveitar o tempo, discutía o preço da hortaliça com o merceeiro, vía a novela e deitava-me.


Era sempre assim, sempre certo, sem sobressaltos, tudo planeado, uma segurança absoluta no advir, sem arrependimentos nem questões sobre o que já tinha passado.


Um dia acordei, como todos os dias, e senti-me estranha; não me sentía doente nem nada. Aliás não sentía nada, nem braços, nem pernas, nem cabeça, nem vagina, nem coração. Deixei-me estar sossegada e esperei que passasse. Mas não passou... ou melhor veio tudo, tudo, compreendem?! Doía-me tudo como bocados independentes de mim, vidas separadas no coração e na boca, e nas mãos e eu já não mandava em nada, já não mandava em MIM!


Olhei o relógio a custo, num momento de distracção de um dos meus braços e vi assustada que tinham passado mais de vinte anos! Gritei, gritei tanto que a vizinhança deitou a porta abaixo, atropelando-se para me assistir descomposta.


Semi-nua, corri com todos. Não sei onde fui buscar forças nem arrojo para tamanha façanha: vi-lhes as caras, o pânico, o medo de mim! Mas como? Eu faço medo a alguém?!


Apercebi-me que começara a recuperar o dominio das minhas pernas: dançavam, empoleiravam-se no bico dos pés, esticavam chutos adiante e depois o tronco, a barriga a ondular como uma serpente subindo até aos braços, as mãos com uma energia de movimentos como nunca tivera em toda a minha vida.


Na verdade sentía-me fantástica, até o sangue eu controlava nas minhas veias, rápido, disparado, injectável no coração louco a insuflar e vazar e depois saía filtrado, limpo, jovem, um canto de nascente que me brotava pela boca a plenos pulmões e eu berrava ESTOU VIVA, ESTOU VIVA!


Saí à rua e o primeiro homem que apanhei segurei pelo pescoço e mordi-lhe a boca, os lábios, penetrei-o de lingua e olhos nos olhos disse-lhe que ele era horrível e corri para outro e arranquei a roupa a uma mulher que sempre me mirava quando chegava a casa.


Não sei como o consegui mas desatei a uivar e a latir e a gritar e toda a bicharada do bairro entrou num êxtase, fazendo uma barulheira tremenda.


Agora sei, mas só agora, que a esta altura já tinham chamado a policia. Ainda lhes dei trabalho e nunca me tinha divertido tanto nem mesmo quando apanhei aquela bebedeira no copo-de-água no casamento da minha prima.


Estou internada, afirmam que estou louca.


Eu também acho. Ter deixado passar tanto tempo sem viver é mesmo de loucos.

27 comentários:

SONY disse...

...Só os loucos vivem plenamente a vida!!!...adoro ser louca!...

Uma louca saúdavel...
Um beijo enorme, estejas onde estiveres, digam o que disserem...SÊ LOUCA E FELIZ!
Sony

Phantom of the Opera disse...

Até que não me importava de passar naquele momento seria uma forma de sentir que estava vivo tal seria a sensação da tua mordida.

Adormecemos e a vida passa sem vivermos um terço do que ela nos oferece.

Beijo

LOBO MAU disse...

Uau... Estou sem fôlego!
A mim também me internaram...
:)

anónimo disse...

que pena eu não ter feito algo assim. agora...

santiago disse...

estarei também louco?
a minha vida é um ramerrame que não me desagrada ...

santiago disse...

excelente o que aqui nos deixas.

vive.

com força.

beijo grande.

£ou¢o Ðe £Î§ßoa disse...

Prefiro-te assim... LOUCA!

Eme disse...

Loucura temos todos, com desfechos diferentes. Quem tem azar paga por ela. Os menos azarados vivem sem sequer a conhecer ou aprender. Os afortunados VIVEM-NA!

Afortunada és gasolina

Beijo

marisa disse...

Pode ser que desta vez consiga deixar um comentário, se não, continuarei a ser só a dos "pezinhos de lã"...
(Já tentei comentar o belíssimo poema "Não quero muito de ti", mas não resultou.)

Adorei! A tua forma de escrever é tão "visual", como se nossos olhos entrassem numa cena de um filme levados pela tua pena...não me ocorre melhor comparação, talvez dê para entender.

Continuo a passear por aqui diariamente e a gostar imenso das impressões que capto com as tuas palavras. Obrigada.

Um beijo

marisa

Abrenúncio disse...

Não sei se é verdade ou ficção, no entanto, garanto que foi dos textos de sempre que mais me "despertou" na blogosfera. No fundo é tudo aquilo que cada um de nós tem vontade de fazer mas cuja coragem falta. O grito de libertação das amarras do quotidiano mundano que nos oprime quase sempre até ao último suspiro.
Mais uma vez os parabéns por esta delícia.
Saudações do Marreta.

ASPÁSIA disse...

Louco, sim, louco, porque quis grandeza
Qual a Sorte a não dá.
Não coube em mim minha certeza;
Por isso onde o areal está
Ficou meu ser que houve, não o que há.

Minha loucura, outros que me a tomem
Com o que nela ia.
Sem a loucura que é o Homem
Mais que a besta sadia,
Cadáver adiado que procria?

*FERNANDO PESSOA*

BEIJO D´ORATES ;)

papagueno disse...

Tens toda a razão, viver sem viver é mesmo uma coisa de loucos.
Bjks

Mateso disse...

Louca de vida ou simplesmente Insana?
Prefiro sem dúvida a primeira!
Vive sem loucura , mas vive.
Bj.

Vicktor Reis disse...

Querida Gasolina
O poder indtituído quer, sem dúvida, formatar-nos, tornar-nos indiferenciados e além do mais condicionar-nos à obediência.
Sejamos loucos para que tal não nos aconteça. Impedindo que sejamos transformados em "peras do Oeste", todos iguais e da mesma cor e tamanho.
Festejar a diferença é importante.
Beijinhos.

Gasolina disse...

Sony,

Loucura precisa-se!

Tou farta de gente cinzenta e que deixa a boca em casa não sabendo sorrir!

Feliz? é minha obrigação sê-lo, procurar ser!

Beijinhos, Formiguinha

Gasolina disse...

Lu@r,

Quem sabe?

Tens toda a razão: queixamo-nos muito mas deixamos andar...

Beijo enorme!

Gasolina disse...

ET,

A nós, ET, a nós!
E tu sabe-lo bem!

beijinhos

PS: A ginjinha não tá esquecida, apenas adiada por motivos de força maior... Aliás, se calhar teremos que ir ao Eduardinho...

Gasolina disse...

Anónimo Azul,

Nunca é tarde.
Mais vale um esqueleto louco do um esqueleto oco.

Gasolina disse...

Santiago,

(2 em 1)

Se a tua vida é rotineira mas te agrada, tudo bem! Há pessoas que precisam dessa constância como segurança para serem estáveis e felizes.

A mim definha-me, consome-me, mata-me. Quero um dia novo em todos os novos dias.

Obrigado pelas tuas palavras.

Um beijo

Gasolina disse...

Louco de Lis,

Eu sei, Louco, eu sei... ainda não viste nada.

Gasolina disse...

M,

Obrigado.
Acho que sou mesmo. Procuro quebrar rotinas e inovar a minha vida todos os dias, evito repetições e busco na imaginação refugio para as tarefas a que, infelizmente não posso mesmo fugir.

Um beijo Mestra.

Gasolina disse...

Marisa,

Os teus pézinhos de lã sempre serão bem vindos.

Mas fico contente de encontrar as tuas marcas.
Obrigado pelas tuas palavras.
Procuro ser visual mas tento não caír no óbvio... a ver vamos.

Um beijo para ti

Gasolina disse...

Marreta,

Conterrâneo?

Obrigado pela tua apreciação ao texto. As tuas palavras envaidecem-me, porém acho-as demasiado para o escrito.

Volta sempre que te apeteça.
Um abraço, fica bem

Gasolina disse...

ASPÁSIA,

OBRIGADO PELO PRESENTE QUE ME OFERECES.
SABES COMO SOU RENDIDA A PESSOA.

UM BEIJO PARA O TEU JARDIM, OUTRO PARA TI E UM OUTRO PARA PAI RUI.

Gasolina disse...

Papagueno,

Infelizmente a maior parte da população "passa" pela vida sem lhe prestar atenção ou dar-lhe tempo desta se manifestar em toda a sua beleza.

De loucos, mesmo.

Um beijo pró Bairro

Gasolina disse...

Mateso,

Até agora (acho) ainda não cheguei ao estágio da completa insanidade.
Mas loucuras sim, cometo-as frequentemente e deixei de me guardar para dias especiais para vingar tais actos.

A vida é breve, muito mesmo. Há que gastá-la toda que quando nos formos a nossa não fará proveito a mais ninguém.

Beijinhos

Gasolina disse...

Victor,

Como sempre a tua sapiência chega em palavras simples, fortes e desta vez numa alegoria deliciosa.

Sejamos loucos.

Um beijo de muito carinho, Querido Victor