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domingo, 15 de maio de 2016

Sigo-a [escapatória de um tempo feliz]


 
Desta vez nem tive de lhe pegar na mão, segue-me a pouca distância em silêncio, o ruído dos passos  no caminho sob os pés cuidadosos a mastigarem cada folha, gravilhas, pequenos ramos perdidos que terão porventura servido de lápis na terra a desenhar esquemas de encontro a uma rua principal. Não falamos quando paramos. Não precisamos. Sabemos. Acocora-se de frente à escada que dá para a porta da casa, olha os vidros, brinca com um seixo agilmente entre os dedos. Fico-me estátua a observá-la, assim tão pequena, um pedaço amarrecado de gente, uma corcunda coberta de guedelhas a imitar-se de infanta num jogo de pedrinhas sem a ladainha, não vejo nada do que vê, decadências de uma casa que evito olhar porque sei onde possa levar-me. Não digo nada. Os vidros partidos reflectem mil vezes os restos de coisas que não estão vivas mas que também não estão mortas e o ar pesa-me no peito como se me dobrasse. Ela não está mais aqui. Ergo-me. Lanço a pedra à janela e quebro mais um pedaço, mais um vidro na memória, uma escadaria que subo e desço sem precisar de guia ou mapa, fui feliz aqui, sou feliz de muitas vezes que aqui retorne, nos gritos das sardinheiras encarnadas e no apelo dos meus avós ao caír da tarde para o lanche, nos mimos dos bichos dos telhados e no reflexo das bolas de sabão a subirem, sigo-me.

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