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terça-feira, 19 de junho de 2012

Vidas por aí


Não faz muito tempo era ela que se ajoelhava e baixava o olhar quando a voz da razão debitava os conselhos que muito lhe haveríam de servir no futuro, orientação repetía a voz, mas na verdade, a maior parte do tempo não escutava nada, ocupava a cabeça com sentenças de morte sobre a dona dos sermões ou se estavam no Verão, sobre avaliações de beleza e fealdade quanto às unhas dos pés tão semelhantes a bicos de aves ou para onde iríam desaguar aquelas veias azuis muito grossas que nascíam dos tornozelos.
Agora era ela que estava sentada no cadeirão e dizía às raparigas para tomarem assento no chão. Sentía-se importante, com poder, não tinha varizes e pintava as unhas dos pés quer fosse Verão ou Inverno de um encarnado muito feroz e brilhante que lhe confería confiança, sentía.
Começava o discurso sempre da mesma forma, traçando um paralelo entre o seu passado e o presente das que se dispunham a um nível abaixo do seu, mas nunca descía e se sentava no tapete junto a elas. Às vezes levantava-se, abría a gaveta da secretária fechada à chave, servía uma rolha de malte e exibía sem pudor, a ponta da lingua a perscrutar o ardor do alcool em recipiente tão apertado, na esperança de tal cena chocar as mais novas.
Mas ninguém dizía nada, limitavam-se a deixar esgotar o tempo, aguentar o frete de final de época para depois saírem em liberdade para as férias de Verão. Coisa que ela não tería, já que a sua casa era o colégio onde fora prisioneira em menina e se mantinha invisivelmente agrilhoada.
Depois das raparigas saírem, abriu a garrafa e bebeu pelo gargalo.
Assinou alguns documentos, arrumou-os, fechou as gavetas, deu a volta à chave onde o malte se escondía.
Acendeu uma cigarrilha e abriu a janela.
Descalçou-se. Olhou os seus pés. Suspirou. Comentou consigo mesma a beleza dos seus pés e como era pena que só ela os admirasse.
Sentou-se no velho tapete e massajou dedo a dedo carinhosamente.



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