O telefone tocou estridente, rasgando a escuridão do serão avançado. Assustou-se que alguém o tivesse ouvido. Pegou no auscultador e disse a medo um “estou”. Do outro lado do fio a voz da mulher num ralhete das desoras, o jantar comido havia muito, a cozinha por arrumar.
Desligou o computador, despiu o colete largando-o nas costas da cadeira e saltou-lhe à lembrança o rigor dos horários.
Nessa noite dormiu mal, atrapalhado pelo sonho do doutor a rir e as “lindas” em uníssono a repetirem Se Me Chamas Naldinho, o colete teso mas animado de vida própria desfiando em folhas brancas o titulo em letras garrafais sombreadas por um lápis gigante que tomara o seu posto no Departamento de Tesouraria.
Chegou ao escritório com a promessa de esquecer a sua leviandade e retomar, como bom profissional, a tarefa de ensinar ao seu instruendo os meandros do sector. Mas a visão do colete abandonado nas costas da cadeira alarmou-o para o pequeno canudo de papel esquecido algures. Procurou por todo o lado e não conseguiu encontrá-lo. Uma tristeza profunda como um luto provocou-lhe um tremor e um novo canudo tombou-lhe no ombro. Apalpou a cabeça tentando descobrir a proveniência de tal fonte que lhe debitava aqueles poemas apócrifos mas desta vez o terror apossou-se do sisudo Sr.Vaz que apenas encontrou um crâneo pela metade, muito idêntico ao abatjour do pequeno candeeiro. Os dedos encontraram no topo desaparecido um buraco fundo que a medo vasculhou. Remexeu até. Sentiu papel a agitar-se entre os seus dedos como uma tômbola cheia de boletins a concurso. Retirou um, trémulo.
Desenrolou o papel amarelecido e leu o titulo SE ME CHAMAS.
Amachucou-o de imediato e cerrou-o no punho. Fechou os olhos e sentiu o ardor de umas lágrimas envergonhadas. Murmurou para si o que lhe estaria a acontecer e formula mágica, “já não tenho cabeça para nada”.
Na mão, uma força desenrolava-se, obrigando-o a esticar os dedos, a palma, o papel agigantando-se como um cenário: ao topo, a letras negras viu o titulo que já sabia, seguido pelo poema que – recordou – havia escrito como promessa do seu sonho de jovem.
Sentiu-se pequeno e execrável por se ter arrumado no esquecimento e dobrado a sua vida na ultima gaveta como fizera ao colete.
Gritou o poema de braços abertos: “Se me chamas é porque estou! E se o faço é porque sonho!”, declamava. E por cada verso proferido, rolos de facturas e notas de encomenda e outros papéis a rosa, amarelo e branco saltavam da sua cabeça como confeti atirado em dia de festa e Arnaldo ria e chorava e repetia infatigavelmente as linhas agora bem decoradas na ponta da língua.
Os funcionários que entretanto haviam chegado, comentavam baixinho “coitado” ou “ele bem dizia”, acrescido de uns sábios “foram tantos números que lhe fizeram isto”.
O doutor resolveu tomar conta da situação e chamou o providencial 112. Depois dirigiu-se ao Sr.Vaz e disse-lhe que estava tudo sob controle, que ele já sabia tudo e o Sr.Vaz só precisava era de descansar. Sentou-o à sua secretária e aconchegou-lhe o colete aos ombros, sussurrando-lhe que tudo estava bem. Depois dirigiu-se aos outros e pediu-lhes que fossem trabalhar, que já não havia nada para ver.
Arnaldo Vaz reparou na sua figura projectada no ecrã negro do monitor. Sorriu. A sua cabeça estava onde deveria estar, tinha recuperado tudo.
Os paramédicos entraram acompanhados pelo doutor. O Sr.Vaz deixou-se mansamente injectar e ser levado.
À porta da ambulância virou-se para o doutor e sorriu-lhe. Afagou-lhe o rosto e disse-lhe:
- “Não vais ter cabeça para nada. Mas se chamares os teus sonhos, ela volta. Ai, volta, volta”.
Entrou na ambulância e atirou-lhe o colete teso de tanto uso.
Desligou o computador, despiu o colete largando-o nas costas da cadeira e saltou-lhe à lembrança o rigor dos horários.
Nessa noite dormiu mal, atrapalhado pelo sonho do doutor a rir e as “lindas” em uníssono a repetirem Se Me Chamas Naldinho, o colete teso mas animado de vida própria desfiando em folhas brancas o titulo em letras garrafais sombreadas por um lápis gigante que tomara o seu posto no Departamento de Tesouraria.
Chegou ao escritório com a promessa de esquecer a sua leviandade e retomar, como bom profissional, a tarefa de ensinar ao seu instruendo os meandros do sector. Mas a visão do colete abandonado nas costas da cadeira alarmou-o para o pequeno canudo de papel esquecido algures. Procurou por todo o lado e não conseguiu encontrá-lo. Uma tristeza profunda como um luto provocou-lhe um tremor e um novo canudo tombou-lhe no ombro. Apalpou a cabeça tentando descobrir a proveniência de tal fonte que lhe debitava aqueles poemas apócrifos mas desta vez o terror apossou-se do sisudo Sr.Vaz que apenas encontrou um crâneo pela metade, muito idêntico ao abatjour do pequeno candeeiro. Os dedos encontraram no topo desaparecido um buraco fundo que a medo vasculhou. Remexeu até. Sentiu papel a agitar-se entre os seus dedos como uma tômbola cheia de boletins a concurso. Retirou um, trémulo.
Desenrolou o papel amarelecido e leu o titulo SE ME CHAMAS.
Amachucou-o de imediato e cerrou-o no punho. Fechou os olhos e sentiu o ardor de umas lágrimas envergonhadas. Murmurou para si o que lhe estaria a acontecer e formula mágica, “já não tenho cabeça para nada”.
Na mão, uma força desenrolava-se, obrigando-o a esticar os dedos, a palma, o papel agigantando-se como um cenário: ao topo, a letras negras viu o titulo que já sabia, seguido pelo poema que – recordou – havia escrito como promessa do seu sonho de jovem.
Sentiu-se pequeno e execrável por se ter arrumado no esquecimento e dobrado a sua vida na ultima gaveta como fizera ao colete.
Gritou o poema de braços abertos: “Se me chamas é porque estou! E se o faço é porque sonho!”, declamava. E por cada verso proferido, rolos de facturas e notas de encomenda e outros papéis a rosa, amarelo e branco saltavam da sua cabeça como confeti atirado em dia de festa e Arnaldo ria e chorava e repetia infatigavelmente as linhas agora bem decoradas na ponta da língua.
Os funcionários que entretanto haviam chegado, comentavam baixinho “coitado” ou “ele bem dizia”, acrescido de uns sábios “foram tantos números que lhe fizeram isto”.
O doutor resolveu tomar conta da situação e chamou o providencial 112. Depois dirigiu-se ao Sr.Vaz e disse-lhe que estava tudo sob controle, que ele já sabia tudo e o Sr.Vaz só precisava era de descansar. Sentou-o à sua secretária e aconchegou-lhe o colete aos ombros, sussurrando-lhe que tudo estava bem. Depois dirigiu-se aos outros e pediu-lhes que fossem trabalhar, que já não havia nada para ver.
Arnaldo Vaz reparou na sua figura projectada no ecrã negro do monitor. Sorriu. A sua cabeça estava onde deveria estar, tinha recuperado tudo.
Os paramédicos entraram acompanhados pelo doutor. O Sr.Vaz deixou-se mansamente injectar e ser levado.
À porta da ambulância virou-se para o doutor e sorriu-lhe. Afagou-lhe o rosto e disse-lhe:
- “Não vais ter cabeça para nada. Mas se chamares os teus sonhos, ela volta. Ai, volta, volta”.
Entrou na ambulância e atirou-lhe o colete teso de tanto uso.
(in Verdadeiras Histórias, C.G. - 31/01/2007)
16 comentários:
Uma delícia um pouco surrealista. até as imagens lembram quadros de Magritte.
Beijos
quase maravilhosamente (?) surrealista...
passei a correr para deixar um beijo.
vou voltar e ler como deve ser.
Bom fim-de-semana!
Bjs
Papagueno,
Muito obrigado.
Surrealista... e próximo dos que se esquecem que a vida está para além de uma secretária.
Beijo grande
Tri,
Quase, quase.
Falta um niquinho assim...
Beijo
Santiago,
Tenho que correr (eu corro bem) para apanhar esse beijo.
Mas agarrei.
Outro para ti.
Bernardo,
Bom fim de semana para ti!
(mais curto...)
Beijos
Eu comentei mas...
Ora aqui vai de novo.
A sequência processual da monotonia. O conhecimento lento das coisas, porém seguro e imutável. A sonolência do passado feito presente. A loucura feita lucidez.
A password de um madrigal surreal. A vida fátuade um arrepio de sentidos.
A loucura feita tecnologia. Os drs que chegam e ficam aprendendo...
A vida de dois séculos: o antes e o depois, onde o irreal subsiste em contexto de presente.
Gostei!
Bj.
Mateso,
Dois mundos que se chocam.
E afinal onde mora o sonho?
Obrigado, muito obrigado.
Um beijo grande
Olá tb tenho que abastecer o meu automóvel.... gasolina é fogo...
está imagem tal como as outras é delicia... e fico de cabeça nas nuvens beijinhos
F@,
Quanto muito eu alimento tempo, agora o automóvel... vais ficar apeada.
Muito obrigado pelas tuas palavras.
Um beijo
O ARNALDO NÃO FOI VÍTIMA DA NET, SENÃO DOS SEUS SONHOS PERDIDOS!
MAIS UM CONTO QUE FAZ LEMBRAR HITSCHCOK... CALCULO QUE SEJAS FÃ DELE!
QUE CABEÇA ESSA CHEIA DE IMAGINAÇÃO, GAS!
BEIJO COM CABEÇA MAS ALGO TONTA... NÃO ANDO A DORMIR MUITO...
Tva a brincar beijinhos
ASPÁSIA,
E QUANTOS ARNALDOS ANDAM POR AÍ?
PENA QUE NEM TODOS SE APERCEBAM DOS ROLINHOS A SAÍR DO CRÂNEO.
SOU FÃ DO MESTRE DO SUSPENSE, SIM!
OBRIGADO, JARDINEIRA!
ALIMENTAS ESTA ÁRVORE E O MEU EGO (VOO)
UM BEIJO GRANDE!
P.S. ANDAS A IMITAR-ME??? JÁ PRÁ A CAMA!
F@,
E eu não sei?!
Beijo para ti
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