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terça-feira, 31 de março de 2015

O livro negro dos homens (dezasseis)



Mostraram-me palavras belas e eu gostei, dizendo que delas gostei. Mostrei as minhas, partilhando, oferecendo, nada disseram desviando o gosto das palavras para as suas próprias palavras. Calei-me. Voltaram-me a mostrar palavras que eu tinha gostado e eu voltei a mostrar o mesmo gosto, mas não mostrei as minhas palavras outra vez. Também não mas pediram. Mas pediram-me que repetidamente falasse do que tinha gostado das suas palavras e pelo excesso do pedido, calei-me.
Falaram então mal das minhas palavras. E eu calada.
Voltaram de novo a falar mal das minhas palavras e eu usei as minhas palavras más para falar dos que usavam mal as palavras boas. E eles calaram-se.


(Lx., 01-07-2010)

segunda-feira, 30 de março de 2015

Luz



A luz vai pingando a conta-gotas na noite, manchando, tingindo, aguando, uma claridade pálida e diluída que aos poucos rompe o céu, horizonte, delimitações do olhar a ganhar força para o dia.
É dia. Assim me verto achando uma réstia de força para um começo que nem sequer o tem de ser por ser o inicio da semana, talvez me doa romper este céu que as raízes adormecidas pelo aconchego do escuro têm vezes que não querem ser fortes. Horizonte, delimitações da fraqueza do olhar.
É dia. A mancha clara de sol agora é uma pintura séria que azulou tudo e espantou a lembrança do negrume, tela monumental sem horizonte onde os pontos cardeais são os olhos abertos.
Tenho tudo em mim, força e fraqueza, eu sou um mundo e este é do tamanho do que contam os meus olhos.

domingo, 29 de março de 2015

Animal



Sem questões mundanas ou preocupações dedicadas a poupanças de hora transfigurada eles tranquilos porém vigilantes, mantém-se aninhados nas concavidades que de alguma forma sempre conseguem fabricar, desconheço como mesmo que já tenha passado horas e horas a observar os seus hábitos e a maior parte da minha vida partilhei-a na convivência intima com eles, e isto de privacidade vai até ao dormirmos todos no mesmo leito, ao extremo de eles bem acomodados e eu dorida e com caimbras de encolhida ou pelo peso que parecendo pouco acaba por ser dose e sem roupa para me cobrir.
Ei-los. A olharem-me. Quem disser que é pateta da minha parte dizer que esperavam que eu abrisse os olhos para me olharem com ar condenatório por só agora acordar vai levar com a almofada...
Não se mexem, um único músculo se retesa, apenas os bigodes vibram, o cão mais exuberante claro, agita a cauda felpuda e espeta as orelhas, sei que se movimentar os lábios mesmo que o faça sem som se erguem e vêm até mim, apetece-me desafiá-los e ao mesmo tempo, uma moleza paralisante imobiliza-me toda.
Se mostrar um dedo ao alto os gatos espreguiçam-se, as caudas esticam-se e hão-de caminhar até ao meu rosto como duas borlas gordas de pó-de-arroz para me empoar, o cão virá patudo e desajeitado, um gigante a pisar tudo que só quer chegar perto e pingar amor o mais rápido que todos, eu gemo e rio, encolho-me ao passarem-me por cima, as cócegas, tento esconder-me sob a roupa e eu animal, outra pele, outro pêlo, serei uma igual desta matilha.

sábado, 28 de março de 2015

+60=-1



Tudo começou pela falta de combustível, pela poupança de energia, nos idos de vinte, o do século, e vai daí, achou-se por bem manter a medida que afinal olhar ao futuro nunca fez mal a ninguém e mais que não fosse por uma questão económica ao menos o reflexo ecológico sempre terá uma patada mais leve.
Mas francamente, há relógios e nomeadamente o biológico, que se desacertam nesta corda de aperto e desaperto e por muito que se racionalize a necessidade, o corpo é que paga.
E bem vistas as coisas - ou talvez não, que não se vê, embora se diga que pesa 28 grs. - também a alma se condói deste viver e reviver.
Ou viver e emendar? Ou perder a oportunidade?
É que depois de já ter respirado, falado, retorquido, quiçá em cenário dramático, trocada por sósia procurada por espionagem internacional, com o atraso de 60 minutos terei de reviver o pesadelo de novo num déjà vu infernal?!
Ah! Mas isso é no horário de Inverno!
Que até o sangue aquece na guelra, está tudo explicado, pois então!
Mas e com o DST (Daylight Savings Time)?
Em que o desvio de 1 hora avançada parece apardalar os sentidos e que alguma coisa que ficou suspensa,  nem se percebendo bem o quê, talvez um lenço que voou numa brisa e num instante passou o tempo sem se esperar por ninguém, nem pelo relógio, nem pelo pulso que constantemente se vigiou e num ápice pareceu esconder-se clonado de hora antiga...
Ai alma, ai corpo.
Eu chego lá, deem-me tempo, e eu chego lá.

sexta-feira, 27 de março de 2015

Delete



Lembrei-me de coisas antigas que tinha escrito, mesmo muito antigas, visualizei-as no solavanco do trânsito e no reinicio da marcha papagueei-as como se duas de mim fizessem um dueto, respeito à respiração da pontuação, não sei porque razão me fui recordar de coisas tão velhas e agora tão lucidamente à frente dos meus olhos numa letra aprumada que nem tão pouco é mais minha, o hábito do teclado agarra o esforço da escrita manual e condiciona a caligrafia, desbasta o calo do dedo médio, ah liberdades que aprisionam...
Digitei rápida o texto no isolamento de ruídos à minha volta, um amigo tinha-me enviado uma foto fantástica com um grafiti [eu não tenho paredes], que me injectou a tinta necessária para continuar a dissertação das coisas antigas e de repente!
Procurei o meu caderno dentro da bolsa, tirei tudo, nada.
Todo o barulho me caiu em cima, as palavras antigas escoaram-se para longe e deixei de as escutar, apenas eu e mais nenhuma de mim a recitá-las.
Durante algum tempo ficou paralisada.
Depois agarrei uma folha branca e escrevi ao alto prisões que libertam.
Fiz delete ao texto escrito no computador.

quinta-feira, 26 de março de 2015

Campo de Palavras (21)




A generosidade das palavras escritas é que nunca se finda, multiplica-se e distribui-se, propaga-se pela partilha deste para com um outro que quer ser feliz em conjunto, e este outro fará o mesmo com outros e por aí fora, mesmo que de quando em vez se encalhe em gostos menos sentidos ou até contrárias apreciações.
Porque afinal a diferença ao homem é, e desta a alavanca para o improviso e melhoria.
A generosidade das palavras escritas é nunca têm idade, são frutos saborosos para matar a fome no momento quando vêm a lume e serão semente num futuro, quer de estudo quer de deleite na degustação repetida pelo próprio verbo ou quiçá o seu autor.
Atravessei vários campos de palavras e colhi deles leitura que me alimentou. A muitos voltei, encantada pela paisagem, pelo sumarento do verbo, pelo descobrir de novos anos no retorno de velhos anos, sempre fresco, sempre viçoso.
Quem deles cuidava era quem lía as palavras. Generosas. Eu também. 

quarta-feira, 25 de março de 2015

Reverter


Por muito que tente o tempo não tem a capacidade elástica de se esticar para além da sua medida e a verdade é que também eu, apenas caibo dentro da sua própria mensurabilidade.
 
Pedir boa-vontade e jeitos, são formas especiais que todos temos a mania de dizer faça-me especial, passe-me à frente daquele ou disto ou daquilo, mas se houver múltiplas coisas por fazer e um só a fazê-las mesmo que seja muito organizado, sempre vão sobrar tarefas e minguar tempo, ou seja não se chaga para as encomendas.
 
A falta do tempo já não me aflige [tanto] como me consumia, mas tenho picos em que levo as mãos aos olhos e por segundos me resguardo na Árvore, páro e regresso, concentrada, afasto aquela pequena centena de coisas que provocam muito ruído e distraíem e consigo então ver destacado o que de importante há.
 
Mas este regresso, se é eficaz não traz muita popularidade e o tal ruído retorna, mais incomodativo e desconcertante abalando os pilares da temporalidade, da minha mortalidade.
 
Reverter o processo, voltar à Árvore, cuidar ruídos em sons melodiosos também esgota tempo, só não tem que ser no imediato, por vezes o difícil é ignorar, por vezes o difícil é lembrar de mim primeiro.
 
 

terça-feira, 24 de março de 2015

C782 - Comidinhas



Tá tudo?
Tá tudo!!
Lá vamos, costas pressionadas no encosto pela fúria do arranque e brusquidão da travagem, um chocalhar de órgãos que ginastica as paredes abdominais ou recorda aos ácidos estomacais que se devem manter dentro do seu saco, não senhor! nada de azias ou amargos de boca a hora tão matutina, é fome mesmo ou apenas comichão de dentes à mistura com a conversa do parceiro do lado e com o outro do lugar da frente, toques no ombro:
- É servido?
- Estou a fazer o mesmo! Um presuntinho da terra da minha sogra!
Estalam os papéis metalizados no desembrulho da descoberta, miséria que é pão do passado e nem o cheiro das iguarias vizinhas afastam o seco da língua à medida que chucham o pacotinho de leite achocolatado até o mirrar com o som de um ralo de banheira vazando.
Os olhos famélicos dos viajantes de pé recolhem as migalhas saltitantes, sacode-se a uso o depósito de saias e disfarçadamente vai o punho para limpar os cantinhos da boca, mais um golinho de yogurte liquido aroma de shampoo.
Os saltos e as curvas ajudam à digestão, todo o tempo é pouco e o trabalho espera, tá tudo, tá tudo, que pena já foi tudo, se ao menos o presuntinho da sogra ainda fosse oferecido, tomara que se engasgue... Mas o parceiro egoísta, até final da viagem há-de debater-se com um nervo que lhe ficou atravessado entre dentes e nem a luta de língua e dedos lho conseguirá sacar de tal sitio apertado.
Maldições de sogra, pensa ele.




(in As fantásticas aventuras do C782, Novembro 2014)


segunda-feira, 23 de março de 2015

Olhar com Vista sobre o Rio (22)



Espero a minha vez de ir.
Como se misturada nos outros escapasse de igual ao que a água foge quando nasce em Espanha e volta a descer para se alargar entre dois montes de terra e chamar-se Rio, vazantes e cheia, mansa e agitada.
Espero a minha vez.
 
Vidas que se vão gastando, olho-te e alimento-me, da janela do Cacilheiro tanto me levas ao ventre materno como ao esquife, adivinhações, talvez que os demais fechem os olhos a fingir que dormitam no cansaço dos dias ou nos medos do fim da viagem, terra firme, tão só dois montes de terra.
 
Enquanto espero a minha vez aceno-te e brilhas e tudo vale a pena.


 

(in Olhar com Vista sobre o Rio, 2012)

domingo, 22 de março de 2015

Listas



Fazer uma lista das coisas a fazer.
Fazer uma lista das listas das coisas por fazer.
Fazer uma lista das coisas que não gosto de por em listas porque acabo por me distrair em remotas paragens  que me levam a pensamentos diabólicos e consequentes tarefas que acabam em mim quando faço listas de coisas que tenho de fazer.
Remoinhos. Acabei por encontrar duas listas perdidas no tempo de coisas que tinha então de fazer, entaladas em páginas de um caderno que acabou de serventia a um diário, ridículo, nada de importante, passou o tempo, executei-as e nada mudou, nada melhorou ou ficou pior, porventura lá, apertadas naquele espaço, a dimensão fosse urgente e inadiável mas agora olho-as e só me fazem soltar um bfff entre lábios, desperdiçando o papel e a tinta, outro tanto que nem entendo para quê guardar até hoje...
Folheio entretida as páginas, as listas amarrotadas no quente da concha da mão, leio-me como se profanasse à socapa confissões de outra, sempre preparada para negar que tinha pegado o que não é meu e afinal tudo estava lá, a solução à vista, as listas a lembrança viva que nem sempre é mas parece um desperdício, ajustar-me, evoluir.

sábado, 21 de março de 2015

Uma idéia, uma raíz



Com a idéia na cabeça de uma Primavera chamada à pressa, apressei-me a rigor à primeira fila, brancos de traje e sapatos leves, pensei em relva aparada curta ainda com o toque picante do rente que dá vontade de pisar na pressão da carne, afinal os ditos sapatos leves são de estréia e até magoam os calcanhares e o sol novo pede descaramento no peito do pé, sempre me disseram que as meninas sardentas são típicas de afoito e não quero deixar créditos para outrem, faça-se a vontade pois, descalça, pronta e de braçados de flores a quantas conseguir agarrar que as mãos são pequenas demais para tanto que quero, o mais que me encanta é a cor e depois o cheiro e depois o nome e depois tudo e até o besouro que tenta lá morar e que persigo nos dedos de pinça para enfiar dentro de um sapato novo, afinal outra serventia sem ser roer um pé, uma raíz, um pensamento, uma estaca que seja que me prenda a esta idéia de que um dia hei-de cá voltar, por muitas estações afora, já sem tempo de haver tempo de dizer quando haviam Primaveras e se vestiam vestidos brancos nesse primeiro dia, apenas uma luz sobre a copa que agora se esverdinha nesta árvore e esconde lá em baixo uma menina de sapatos na mão.

sexta-feira, 20 de março de 2015

Infanta [Quero lá saber!]



Sería hoje que um fundo musical romperia os céus, um fio de acordes em violinos, imitação de abelhas laboriosas nas flores repentinamente furiosas a esticarem braços finos e elegantes de tanto mês dormido a quererem mostrar cores e sedas de vestidos de pétalas e tonturas de perfumes misturados no voo inquietante de andorinhas recém lusitanas explodirem todos e à vez na confusão de se unirem para num só dia entontecerem cabeças, narizes e olhos trocados de não saber fixar ponto algum porque tanto sitio de olhar é demais pela beleza do acontecer e a terra ondular até levantar os pés, os meus, fazer-me erguer os braços em equilíbrio de cai-não-cai, rodopiar em gargalhadas de não saber porquê e gotas transparentes de um orvalho esquecido do dia passado servem de espelho para  outros dias ainda mais bonitos que hão-de vir, deixo-me ir, quero caír nesta terra de Primavera que sería hoje e termino o meu desenho de tinta permanente no canto de uma folha, joaninha avoa que o teu pai foi pra Lisboa.
 
 

quinta-feira, 19 de março de 2015

O dia de todos



Já de véspera trazia o padecimento de dizer o que não saber, um reboliço na alma que descompunha o corpo e arrastara a insónia por um par de horas roubado ao sono já de si achado curto, mais ainda a malandrice de rua com os do grupo na chacota do dia do velho, que dizer, que escrever, composição, o dia do pai, lembrava-se dos anos passados, há muito tempo, o dia do pai, eu gosto muito do meu pai, mas isso eram outras cantigas agora ninguém lhe aceitava essa conversa, era um traço na folha de alto a baixo e mensagens a descarregar pelo resto da época, já sem falar que nunca mais poderia entrar na escola ou pôr o nariz fora de casa, e esta gente toda no metro, de onde veio esta cambada, se ao menos andassem, mas nada, e a idéia a moê-lo como uma rosca, que dizer sobre o homem com quem nunca fala, de quem não sabe o que falar, o que perguntar, se ao menos ele soubesse o que era o problema dele, escrever sobre o pai dele, o pai dele, quem é o pai dele?

quarta-feira, 18 de março de 2015

Maturidades



Maturidades. Do verde da boca que se canaliza directo ao coração aprendem-se embraiagens e travões, docemente, sem soluços, até ao absoluto das paragens, silêncios que ficam a nadar na saliva a apurar-se para uma condição propícia e um tempero apurado, quiçá um ouvinte que o valha.
 
Porém, o nervo traiçoeiro, ao receber o comando do choque eléctrico do cérebro não domina o olho arregalado, a sobrancelha repuxada, o lábio levemente mordido - em mim, um e outro pé irrequieto, também.
 
Imagino se a transparência das palavras não me molha a pele no discurso que no pedal embraio, travo, por tanto me alagar a boca cheia, extravasada de um canal que afinal se mistifica de amadurecido, tantas palavras apuro e encontro e engulo e regurgito e mesmo assim retornam e me coram, não as digo mas sinto-as a queimar para além do corpo.
 
E se as sei e as não dou, que préstimo tem a maturidade para quem as não pode ouvir?

terça-feira, 17 de março de 2015

Portas & Janelas - Esboço nº 16


 
As fotografias é para isto que servem.
Para nos apercebermos da ferrugem do tempo, dos vidros quebrados, da nossa imagem ida na pedrada atirada que mesmo com boa mira já se foi e até no cálculo da velocidade vá lá saber-se quem poderá estar do outro lado e ser-se atingido. A nossa imagem colada a quem atingiu. Para todo o sempre. Deve ser por isso, que os casais que vivem juntos muitos anos acabam por se aparentar como se fossem do mesmo sangue, uma pedrada que acabou por os ferir da mesma forma, a ferrugem do tempo a entrar-lhes no corpo e a colorir-lhes as marcas das feridas aos poucos, lentamente, acabando por parecer quase uma tinta, uma pele.
Como esta porta da fotografia.
Que embora não a tenha conhecido nova e de pintura brilhante, vidros intactos e transparentes, sei-a como se a visse aberta, franqueada a bom negócio, moldura robusta e de encosto perfeito a algum meliante que de quando em vez vinha espiar o proprietário meio adormecido. Devem tê-la fotografado, honrados, pomposos da sua cor e da escolha do sitio.
Mas é tão majestosa olhá-la assim, quase decadente, silenciosa e frágil, com os segredos profundamente enraizados como se alguém a segurasse apenas com uma corrente e um cadeado. Como os casais juntos por muitos anos.
 
 
(in Portas & Janelas, Maio-2014)

Todas as fotografias da Colecção Portas & Janelas são da autoria de Eduardo Jorge Silva

segunda-feira, 16 de março de 2015

Rotinas matinais



São sempre a última coisa e até bater a porta o equilíbrio na ponta dos dedos para evitar o martelinho dos saltos, o desassossego de quem ainda sossega ou finge que sossega para não me desassossegar das horas há muito de vela no reboliço do escorregar dos lençóis e na muda de posição, leitos incómodos, corpo que se incomoda com o desnecessariamente necessário quando o tempo do sono quebra os olhos e o fio da realidade se interrompe entre mundos, nem saltos altos conseguem aproximar alturas de universo tamanho, centímetros que impõem a musculatura da barriga da perna, da barriga dos sonhos quando se salta de lá para cá num estremunhado que não perdoa o pé coxinho se a recorrência do pesadelo traz à tona a cintura nua para baixo até aos ditos, deslizar, verificar aderências, experimentar, girar, raspo novos até a sola se tornar áspera como um sonho mau, neste não quero caír, saio, é dia novo e é dia verdadeiro.

domingo, 15 de março de 2015

De 4



O focinho no chão, uma humidade insistente a raspar no sobrado até deixar um rasto como o caracol, um cheiro intenso e atractivo que impedia a audição ao nome e eu gasta no chamamento, pus-me de quatro, uma marca onde o sol batía como uma língua a lamber as fatias de madeira aquecendo-a.
O cão tinha razão.
Cheirava ao salão onde Madame berrava o compasso batendo a vara a ritmo, por vezes nas pernas que não se endireitavam ou não se esticavam ou não se mantinham hirtas o tempo suficiente até tremermos do esforço, do medo e da vergonha.
Cheirava a madeira quente e a um suor muito especial, e a pó de talco e a pez e a sangue também. Ou se calhar não. Talvez fosse apenas invenção da minha cabeça e dos outros para a condenarmos por nos fazer sofrer, mas de vez em quando havia mesmo sangue de verdade nos pés e nas unhas e também nos joelhos e ninguém se incomodava com isso, limpava-se e seguia-se como se fosse normal.
Cheirava a água de colónia verde. De Madame. Que por vezes fazía dores de cabeça. Não sei que perfume era aquele mas sempre o imaginei verde, de um verde perigoso como se fosse veneno, que se lhe tocasse com um dedo morreria, embora nunca tivesse visto o frasco, só o lenço muito branco com rendinhas que ela escondia na manga do maillot e deixava um altinho como se ali tivesse um inchaço. Provavelmente era ali também o lugar do seu coração, o único alto que tinha no corpo,  pois de todo o resto era estreita e lisa como uma tábua do chão onde fazíamos os pliés e relevés sem sitio que lhe pudesse caber qualquer outra coisa.
Até o pianista tinha medo dela. Não me lembro do nome do senhor, mas recordo-me que estava sempre pálido e suado como se estivesse na barra connosco. Quando ela se aproximava dele e pousava a mão muito branca e magra sobre o negro do piano, ele nunca levantava os olhos das pautas e mantinha-se sempre curvado apenas fazendo um movimento rápido com o pescoço para a frente como uma bicada sobre as teclas dando inicio aos acordes.
O cão tinha toda a razão.
Este cheiro é absolutamente tóxico, que saudades.


sábado, 14 de março de 2015

Até ao estar


 
Essa coisa vingativa que num relance atinge o canto do olho, fugaz, quando se volta a repetir o gesto já não está lá recuperado que foi o fôlego do susto do segundo e se ajeita o corpo ao esperado, o punho imaginado contra o reflexo na impunidade do deboche ou no desalento da memória e se guarda na boca mal engolida de cuspos amargos que secam a pergunta, quem és tu que me observas, quem és tu que outro foras, quem és tu que eu não quero, quem és tu que eu já fui e ainda aqui sou e não conheço, quem és tu batalhas de guerra ganha, invólucros de prata devolvida, renovações que a cada era a surpresa no verbo ensina, pele tatuada de sentir único.
Passou.
Num relance a projecção até ao estar, assentar à pele até ao ser.
 
 

sexta-feira, 13 de março de 2015

Correr



Corro o caminho conhecido o que não impede tropeços em novos ressaltos, talvez por distração minha, eu sempre em contínuo discurso directo, monólogos que sejam para outros ou até mesmo nada que o silêncio que me envolve não vai além de uma respiração mais acelerada própria de quem se apressa no passo ou corre, corro para atravessar passeios, ninguém respeita sinais de imposição no vermelho, no verde, caímos de maduro na ponta da palavra senão pela falência do físico, o velho ou o coxo e eu corro, a velocidade do pensamento ala-me pés e trajecto bem mais veloz e sem percalço que aqui não há buracos, pedras, só o abismo quando alguém nos interrompe ou o destino real nos esbofeteia e de portas nas costas deixamos as correrias lá fora.
Sexta-feira treze, ouço, superstições, não percebo o que dizem, agarro a agenda e vejo uma reunião marcada, ligo o dia às palavras ditas e sinto a falta de chão sob a cadeira, os pés baloiçando livremente, talvez uma vassoura aqui passe e me dê uma boleia, pelos ares é tudo macio, sorrio, sinto-me caír, alguém pergunta de que rio, da reunião que já tenho preparada há muito tempo.
Corro, adiamentos de reunião levam-me a outros estágios, uma vassoura que varreu pó e lixos de outros dias deixa-me um caminho limpo para os passos largos sem a hesitação do pé no ar para a queda, quase um salto, quase um discurso permitido, sonorizo palavras e digo adeus, permito-me saír com a luz do dia, correr de verdade ao sol, correr riscos sem ser um traço no papel da imaginação, canso-me, arfo e rio de verdade.
 
 

quinta-feira, 12 de março de 2015

Mãos [Pousadas]


 
Hoje farei delas mãos cansadas.
De preferência pousadas no regaço. Elegantemente, os dedos entrelaçados como se tudo tivesse sido feito com tempo e apenas lhes restassem ficarem como complemento de final de mangas debruadas a rendas finas para serem admiradas, um ponto de interesse, um objecto de culto, um foco de luz sobre mãos paradas sem nada que fazer.
Pousadas.
Até talvez esquecidas de tarefas árduas de puxar, levantar, erguer tombos de criança ou abraçar despedidas ou tricotar cachecóis ou preparar pão com manteiga ou defender golpes de sol da vista ou segurar o rosto que a si também beija.
Cansadas. Farei delas mãos fingidamente cansadas, que não suportam mais o peso da caneta, o segurá-la e dividir a mãos tantas aquilo que é seu.
 
 

quarta-feira, 11 de março de 2015

Desinquietações da terra



 
Se para mim escrever é vital e prazeiroso para outros não o será, e a verdade é que se tive dificuldade em entender que o acto da própria leitura fosse um sacrifício para muitos, admitir que escrever para quem o fazia não passava de letras em papel e se apelidava de escritor - e aqui sublinhe-se que não generalizo, mas reduzo a um universo microscópico -  doeu-me  como chagas mas acabou por me desinteressar completamente.
E com isto quero dizer que a questão não me preocupou mais, tão pouco um levantar de sobrolho.
Mas virem junto a mim, perturbar-me, insinuar-se, com agitações e até mesmo adulações em que o objectivo, dúbio por certo, [que vislumbro] uma ferroada ainda por cima mal dada com erro ortográfico sem revisão ou tropeço alterado a contento de editor de humor em dia mal dormido, altivo e sobranceiro, e a conversa azedada no troco do vocábulo que me tirou das entranhas, que esperam que eu responda???
Ou que nada diga?
Que o coração se esconda mole e frio calcando o verbo pastoso?
Que diga grata e benvindo?
A árvore está na terra mas as raízes estão no peito.

 

terça-feira, 10 de março de 2015

Marés vazias



De qualquer forma tenho um lugar à tua espera, arranjei palavras para ti e criei frases com sentido que deram resposta às minhas perguntas, não te consegues escapar, já sabes que conheço os contornos das tuas desculpas e até mesmo quando te peço para não arranjares desculpas e me dizeres a verdade que eu aguento, dois de igual é como somos, depois acabamos parvos por pensar um no outro e não aparecer, lugares à espera de uma marcação vazia na desculpa do outro e  no adiar dos olhos e dos silêncios e dos atropelos falados ao mesmo tempo e da vez cedida do primeiro tu, não diz tu primeiro, acabamos no tempo finito das marés vazias e do galope surdo dos cavalos que sabemos serem pela poeira levantada e nunca vemos.
 
Era isto que precisava dizer-te.
Quando te encontrar, estivermos juntos e conversarmos, sentados como duas pessoas. Normais. Sem invenções mirabolantes de te sentir perto de mim quando não estás e conversar alucinadamente perguntas e respostas em lugares preparados no vago de um cenário que quero que seja. Como tu o fazes desse lado quando eu não estou.
E inconfessadamente, tentamos repetir, parvos, quando nos encontramos para tudo parecer perfeito. Normal.
 
 

segunda-feira, 9 de março de 2015

Gaivotas




O que me confunde é o branco do peito destas gaivotas contra o chumbado do cimento, o seu poisar de patas ainda lembradas no navegar perto e no perto de garras na ponta trazidas de pequenos ratos que foram, agora restos ensanguentados ou até mesmo de sua espécie, remanescentes asas, bocados de voar arrastados, nem pios mais são, em capots ou tejadilhos de pintura cromada perfilados como jazigos sem flores, eu única visita, ateia sem vela e sem reza.
O que me confunde são estas gaivotas a meias com o Rio e sem interesse nele numa preferência de correria a ganhar embalagem no terraço das beatas esmagadas no apressado dos dez minutos de intervalo, para atacarem num bullying vadio, tímidos pombos que ainda se imaginam livres de arrulharem em círculos até tontos o namoro pegar a fêmea antes desta se perder pelo picado da gaivota mafiosa.
O que me seduz é perder-me no plano aberto das asas das gaivotas e deixar-me ir, dez minutos que me confundem uma vida num terraço de cimento quando apago um sonho de evasão.



domingo, 8 de março de 2015

Hoje sonhei-me



De novo em Paris, aquele cheiro forte de café quente e o som do trânsito que arrasa o cómodo quando abrimos as janelas altas para trás e o fresco pica o nariz no contrate do morno das maçãs do rosto, hoje não ponho blush, uso o baton atrevida, meias negras e vou para a rua ver as gentes mordiscarem palavras, de novo Paris, hoje sonhei-me, neste quarto onde a luz me foge da penugem dos braços, dourada a cor dos olhos para que os sonhos me fiquem na lembrança deste dia que sempre amarguei, mexo o café devagar em goles saborosos quando brinco com os dedos entre a refracção de uma luz de quarto entre Lisboa e Paris ou este e o sonho de voltar à casa dos sonhos e eu no silêncio de meias negras cerro os olhos, cerro as mãos, adormeço e gosto deste Domingo por fim.

sábado, 7 de março de 2015

Curta



Volta e meia dá-me para ir lá atrás, um monte de mato muito verde, até luxuriante diga-se, quando os fios de sol lhe conseguem incidir a uma certa hora e algum encanto na sua tosca e desordenada florescência me chama a atenção, pintalgado aqui e ali por uma flor nem branca nem parda que parece espantar-se com a minha aproximação e ao chegar-lhe a mão para lhes tocar, encolhem-se como raízes melosas para logo desaparecerem no tufo.
Deixo-as em paz, volto à árvore, não me incomodam.
Estranha convivência.
Lembro-as de viço e próximas, de hastes esticadas ao tronco procurando de beber e de comer, com espaço bastante para crescerem e terem sol e sombra sem queimar ou gelar ou servirem de casulo amparadas num feixe a insectos de carapaça dura que as escavam em subterrâneos antes de caírem de uma só vez.
Curta a memória. Talvez não seja um monte de mato o que vejo, apenas restos de espinhas do que sobrou de um vasto pomar.
 
 

sexta-feira, 6 de março de 2015

Presente!




Não é segredo que não cultivo o dia disto ou daquilo, ilações aparte, creio que acabam todas por se tornar a banalização de um comércio para além do próprio, do das ideias.
Por isso, o Dia Internacional da Mulher não foge à regra, que me desculpem as do meu género, que hoje aqui sou deste, pois conforme já o afirmei algures em posts anteriores se há um dia assinalado para elas tem de haver um para o Homem.
E digo-o com antecedência, porque no café da manhã, aquele primeiro que entra no sistema como droga em viciado, a senhora que mo serve ao receber os meus trocados me desejava bom fim de semana e um Domingo muito especial. Franzi o sobrolho... e ela de olhos muito abertos deu-me um beliscão na memória ao dia da Mulher!
- Não sou fã...
- Mas porquê?
- Porque tería de haver um dia para o homem também, ora!
- E o que eles fizeram de especial para ter um dia para eles?
- Ajudaram a fazer as mulheres...?
- Só um bocadinho!
- O mesmo bocadinho que as mulheres, não?!
Conversa puxa conversa, argumenta daqui e dali, quem veio primeiro o ovo ou a galinha, acabei por perder o cacilheiro. Mas já nada da boa discussão que tivemos era sobre o dia internacional a comemorar. Era sobretudo sobre a sua experiência de vida, a das mulheres da sua família, o esforço, a luta, a vontade.
E por essa e por todas essas iguais, eu estou presente.

quinta-feira, 5 de março de 2015

Meeting [ Kafka was there!]



Perguntas, perguntas, tantas [tenho medo que a voz das perguntas me saiam pela boca antes que a mão tenha velocidade suficiente para tapá-la e não as deixar saír], ouço o discurso directo sobre um discurso indirecto de uma semana passada [que fiz eu na semana passada, tão pouco recordo o que fiz ontem e sei que fiz muita coisa, se me perguntarem, não serei capaz de me defender!], passo o dedo na agenda e sinto o relevo dos dias a magoarem despedidas e substituições de gente conhecida que foi movida a xeque-mate [não é o xadrez do tabuleiro que me entorta os olhos mas o ondulado de um pobre plano do jogo da glória, para onde foi Mr. Spock?], os assentos mal arrefecidos fazem sorrir traseiros [não há um ditado que rima com cueiros?], traço a perna, adormece-me o pé, o som de risos traz-me de volta e novas perguntas não de mim mas de lá para mim [nem sei como é que ouvi tão distante estava agora, Kafka a implorar-me justiça e eu a tentar livrar-me das suas mãos], ligo o british e dou o que querem e o que sei, cortam-me o som do micro deste lado, apartes, apartes, deadline cumprido, target alcançado não há tempo para mais, só do outro lado da terra há satélite para falar sobre decisões, até breve, acena-se, sorri-se [e Kafka morto a meus pés].
 
 

quarta-feira, 4 de março de 2015

O bater do coração (vinte e quatro)



Que força essa que anima o papel desempenhado por cada um de nós - uns mais, outros menos - que nos leva a disfarçar fraquezas, necessidades, tão só a frágil condição de não sermos lobo solitário mas sempre parceiro de alcateia, que a demência do afastado para além de calcinar o tambor do peito não o faz esquecer os movimentos de insuflar e esvaziar quando a tarde cansada se deita a recolher em tricolor pedido a noite, o sossego do esquecer por algum tempo, um tempo só sem ser só outra vez, um tempo de sonhar sem ser só.
Na verdade o feio e o belo sentem de igual modo por dentro, o bater do coração pode soar aos demais feio e belo, ou fraco e forte consoante a embalagem, defeito de quem só tem olhos para o lobo que disfarça. Engano puro, que tudo quebra, tudo parte quando se é frágil, até o alfa nos momentos de solidão.
 
 

terça-feira, 3 de março de 2015

Instantâneo - Episódio cinco




Faço de conta que penso ou que imito a morte de outrém, invisibilidades convenientes quando a nódoa da tinta não mancha página alguma, ou o sono de vigília igual aos gatos dizem um olho aberto outro fechado como o de Maria Mendes, quem foi Maria Mendes, havería eu de lhe escrever epístolas e a partir daí um rombo na folha a despertar a intermitência da mão à chávena, não há mais café, nem de brincar a beber o gesto dessedenta a vontade e o aparo arranca desenfreado em doses extra de cafeína mágica ou eínas que sempre deveriam surgir em instantâneos que se tentam enquadrar em bocados limitados à dimensão dos olhos, como se a possibilidade de controlar a própria palavra do imprevisto de um instantâneo fosse condição... Já nem me dou ao trabalho, desprendo cabelos e contorno as mechas espalhadas pela páginas do caderno a azul-china, quase fico contente com a tarefa, ao menos não foram o delimite das palmas abertas, que novidade! Que diria a tal de Maria Mendes desta proeza.

segunda-feira, 2 de março de 2015

Cefaleias



Onde não há é que dói, os cantos especialmente onde a luz não pode vir ou o som da voz ciciada aleija e o toque da seda magoa, é tudo invisível e por isso é que custa tanto acreditar, tanto quanto o peso de pestanas a cobrirem olhos quando se parecem envergonhar do desejo da aproximação dos lábios ao beijo, uma tonelada é quanto pesam, por isso tanto demoram a descerrar para o real do gosto, assim é esta ausência que perfura não se vendo mas que magoa, dilacera, incapacita, horizontaliza vomitando entranhas e obrigando a pinos onde o mundo parece acabar-se num furo pequeno, tão pequenino de uma cabeçada que se atira até dor maior se provocar para se esquecer esta que não se vê, lateja, bombeia, incha, parece rebentar, deseja-se tanto quanto aqueles lábios até neles se morder violentamente e o sangue sangrar para algum alivio sentir. Um pouco. O cérebro dentro da mão, esborrachar até parar de pulsar como único e vil. Dói onde não se vê, dói, é outro dentro de mim a matar-me.
 
 

domingo, 1 de março de 2015

De costas



Há muito tempo atrás, alguém me confessou padecer de uma estranha patologia relacionada com a tiróide, que lhe provocava os maiores acessos de choro em qualquer circunstância e com qualquer motivação. A questão era exactamente essa, o motivo: Tanto se comovia com um anuncio publicitário a lâminas de barbear como a talco para rabinhos de bébé, como ía na conversa de quem lhe batía à porta a vender um serviço em dia de chuvada - e lá comprava sem necessidade e apenas pela caridade ao vendedor molhado, como se irritava consigo mesmo, chorando da sua pobre condição.
Verdade e medicina puseram a coisa no lugar e hoje, é o homem sereno de sempre que conta, sorrindo de si, as aventuras e desventuras de um bócio mal equilibrado.
Mas a mim, que de nenhuma patologia estou afectada e o mal é simplesmente o oposto de meu amigo, pergunto-me que hei-de eu fazer?
Dói-me a dor e comovo-me, mas nem um fio de lágrima consegue espreitar. E não é por vontade de não as chorar, que já as tive e por muitas ocasiões. Apenas não florescem, não brotam, não me nascem.
Veêm-me assim fria e distante, intocável e de pedra, incapaz de sentir o golpe alheio e o ardor da ferida como se fosse experiência que na carne nunca passei. Melhor andar de costas então, pois se os olhos são, dizem, o espelho da alma.