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sexta-feira, 10 de janeiro de 2014

Mar (morto)



Saber o que é verdadeiro do que é preciso e nem tanto real e torná-lo a dimensão do que queremos ser ou do que desesperadamente tentamos que seja, construindo empilhado, um castelo sem porta de saída, sem convite de entrada, sem janelas onde a distracção voe a par com a vista e se percam noutros mundos. Saber a presença de outros passos, escutar a tosse metódica que antecede o silêncio das frases que se completam no ruído surdo que aguarda a vez de estalar. Esperar, não esperar, segurar o hábito de segurar as mãos.
[Liberta-me]
As mãos que seguram a verdade das palavras não têm o hábito de suportar e enredo da mentira por muito tempo, atrapalham-se, tentam esconder-se, procuram a esquerda, coçam-se, forçam-se num doloroso som de quebra ossos da sua parceira ao tentar iniciar um discurso muito directo sobre a realidade clara que parece escurecer o ambiente e desanuviar o orador.
[Liberta-nos, nada disto é real, não nos serve, deixa-me ir]
A incompreensão da realidade é idêntica ao malabarista rápido, ao ilusionista que confunde os copos na bola escondida sob os olhos tontos de tanto tentar seguir o que à vista descoberta melhor se tapa. Negação. Soluços de uma (im)perfeição interrompida quando tudo se construiu para altear defesas e afastar perigos. Em vão, esforço desmedido, se a mina implode.
[Nada dizes, teimas nessa prisão, vou eu, liberto-te eu]
Saber todos os passos contados que são a dimensão de todo o mundo que se conhece e achá-lo gigante e senti-lo abafado e querer gritar por não saber saber e da garganta nada saír por nunca ter sido ensinada.
Esperar, esperar que as ondas estalem e molhem o castelo de cartas, hajam entradas, remoinhos, arrepios, medo e riso, sal.





quinta-feira, 9 de janeiro de 2014

Iron Brother




Não sei onde está a tua bandeira nem o resto das tuas coisas, não voltei lá, sei que farías exactamente o mesmo que eu, todas as nossas diferenças afinal são a nossa semelhança, talvez essa tivesse sido sempre a grande questão entre nós ou talvez não, se calhar a essência de tudo já vem do Pai e da Mãe que nos fabricaram a acreditar naquilo que somos e no que queremos e na determinação para levar avante. Teimosos d'um raio!
Agora que tenho a oportunidade de te dizer tudo sem que me interrompas gaguejam-me as palavras, não porque não as saiba dizer ou porque hesite no modo mas simplesmente porque o desejo de te ouvir a cortar-me o discurso dói-me a voz e aleija-me a vontade de seguir. Saudades de ti, tantas saudades de te ouvir a cantar, a fazer aquele barulho infernal nas gargalhadas que enchiam espaços... Sonho pouco contigo.
E do pouco que sonho nunca falas comigo, sorris muito e até entendo o que me dizes mas o som da tua voz não atinge, lembro-me dele distintamente, vejo a tua boca a cantar Iron Maiden mas não a escuto. Como os teus dedos a dedilhar a guitarra e os cabelos louros e o bigode arruivado, tudo tão presente e no entanto, tão longínquo, que mal estico o meu braço para te tocar desperto e recordo como uma seringa a injectar-me as palavras do Padre, Ai minha Mãe...
Passou depressa um ano.
Às vezes, acho que te vejo na rua a dobrar uma esquina naquele nosso passo apressado e largo que toda a gente tem a mania de dizer que é igual e deixo-me enganar porque quero, porque preciso de me confortar. Ai minha Mãe...

Um beijo, António José

quarta-feira, 8 de janeiro de 2014

Alerta



É para ter cuidado, resguardo, vigia, é para ter medo, alerta laranja, vermelho, uns dizem respeito outros receio, há-os baixinho a confessar a impotência, a verdade da natureza revelada sem pudor ainda põe mãos na cabeça e rezas na boca.
Transborda do céu e alaga do mar, arrasa o que vê na frente, tudo a eito sem escolha de matéria ou hierarquia civil. Banhos, baptismos. Purificações forçadas como renascimentos após a expurgação, e o pecador a fugir desta água benta que o escalda e consome na intranquilidade perguntando-se qual a causa de tanto castigo, como se a tempestade fosse o açoite de que tenta escapar.
Trancas à porta, espreita o negrume e aquieta-se cientificamente no ozono, condenando-se enquanto o silvo dos ventos lhe abanam a determinação, a luz insegura tremelica, alerta, alerta, medo, medo.
Há-de esquecer quando o pingo enxugar e o mar voltar a ser um postal para recordar as férias.
 
 

terça-feira, 7 de janeiro de 2014

Paralisada




Sinto-lhe a profanação no aproximar do sorriso postiço, talvez ensaiado para me desanuviar o semblante, talvez avisado para me baixar a guarda, vai chegando, o cheiro putrefacto do banho ausente e da boca suja de palavras remoídas de invejas e ambições desmedidas vestem-no mais na pele viscosa que os panos lhe escondem o merecimento de andar de pé.
Castigo-me ao responder-lhe. Mastigo a língua ao responder-lhe e olhá-lo nos olhos.
Tento suster a respiração para não absorver o hálito podre que se apodera do momento, um único pensamento trava toda a lucidez do meu cérebro e um desejo crescente de que um raio fulminante o queime acelera-me o coração mas a verdade é que sou eu quem definha, lentamente, aos poucos sinto a morte a rondar-me, levo a mão à boca, a outra aos olhos, sinto o vómito num elevador a queimar-me as entranhas.
E depois o mundo pára e tudo se transforma em gelo.
A mão dele sobre o meu pulso.
Paralisa-me.
A repulsa. Nojo. Sinto a faca das mentiras a rasgarem aos solavancos por dentro, não sei onde, não consigo mexer-me para aparar o meu sangue e voltar a pô-lo no caminho das veias. Vejo-lhe o sorriso maldito a babar-se nas minhas feridas, morro de olhos abertos.
A minha imagem reflectida na porta de vidro acena-me, em jetté coloca-se atrás dele, imita-lhe uns cornos com os dedos espetados e deita a língua de fora, compõe o tutu e altiva mas graciosa, esfuma-se após uma ligeira vénia de cabeça.
Liberto o pulso e escuto o meu coração.
Infelizmente, resta-me um herpes labial como cicatriz deste bocado de lixo.

segunda-feira, 6 de janeiro de 2014

Portas & Janelas - Esboço nº 6




Era tudo. E o tudo é tudo, é o amor, é o amor daquela coisa que não se sabe explicar porque é tão grande e secreta que se tem medo de dizer porque de um momento para o outro pode deixar de acontecer por ser tão maior e não caber nas palavras conhecidas para revelar o que se respira e adoça, e de uma certa forma, um pico amargo, uma dose certa que tempera o balanço e trava espevitando quando os olhos parecem cerrar-se na queda... Era tudo.
Era a correria das horas, o desespero das toiletes, a cor do baton, sem baton, sem perfume, o teu cheiro, o cheiro da rua, a escadinha miserável que roía os saltos de fetiche e mais as tonturas da curva, as curvas perdidas e achadas nas palmas dedilhadas à força da contraluz e da morte quase  anunciada nas pancadas violentas quando o atraso cobarde das horas mordía os lábios do destino e revoltados nas costas desuníamos encontros.
Era tudo quando a porta se avistava, esguia, sentinela de segredos de dentro. A dar permissão a que a ela lhe dessem encosto, toque, a mão, a fome das mãos, o raspar lento das unhas junto ao rendilhado das confissões no erotismo da respiração a trespassar matéria, fusão.
Porta fechada. É tudo.
 
 


 (Portas & Janelas, Setembro-2013)

Todas as fotografias da Colecção Portas & Janelas são da autoria de Eduardo Jorge Silva  

domingo, 5 de janeiro de 2014

Domingo reflexivo



É Domingo e eu não gosto. É Domingo, eu fico em casa a sentir a chuva que ameaça, espreita, espreito e ainda não molha, chumbo ao alto e na ponta do nariz aquele acidulado que se cola até ao céu da boca e sei que é chuva, não saio, vejo-a de dentro puxada pelo invisível que assobia e espanta casais apertados a golas altas de casacos tristes com ar de medo e sem palavras de amo-te a molhar orelhas ou mãos atadas a dedos de preciso-te, praquejo e chamo a chuva, chamo-lhes domingueiros, tenho-lhes a pena dos dias pastosos que fogem da chuva que chamo na evasão do baptismo da dor da vida, nunca hão-de saber o que é o sol e a sombra e a sede e a boca aberta a beber pingas engrossadas de um céu abençoado de Domingo. É Domingo e tudo o que me sobra são reflexos de linhas de um caderno molhado a memórias de outras chuvas.

sábado, 4 de janeiro de 2014

Estrambólico



O fascínio do estranho e do complicado ou do apenas dimensionalmente diferente porque afinal, simples, outro ângulo, outros olhos, outros pés que se pousam a um tecto que cobre onde a ponta dos dedos querem esticar-se no jogo de sombras entreabertas quando a luz do sol espreita pela racha da cortina mole e pergunta o que fazes.
 
- Que fazes nessa coisa aí...
- Penso.
- Endireita-te, ninguém consegue pensar assim.
- A minha Avó dizia que o sangue me subia à cabeça.
 
Espera-se que as palavras escorreguem da garganta para o pensamento, que se murmurem e finalmente despertas se revejam na verticalidade da folha.
A perna em vela que descansa sobre o ombro e se deita bêbeda ao pescoço lembra árvores, porquê árvores, pontes e rios, passado e presente.
 
Na ponta da língua, hoje, só hoje, porque só hoje se entortaram poses para endireitarem pensamentos, ou a recorrência de palavras - estrambólico - na ponta da língua a apetecer experimentar ângulos onde a dimensão dos olhos de ontem conseguem entender o sabor da peculiar vontade de tudo ver do outro lado.
 
 

sexta-feira, 3 de janeiro de 2014

Disparos




O afogamento dos sentidos ou a ideia de saber estar leitosamente banhados no sonho e que a qualquer segundo a vergonha, a honra, o beijo, o aceno, a saudade, a vida e a morte tudo passa pelo estremecimento do segundo que nos agarra por uma gola invisível.
Regressos.
Disparos, gatilhos de esquecimento ou dardos de memória arejada.
E revisitações da continuidade. Levantar depois de caír, depois de jazer, depois de colher as lágrimas de outros e pousar-lhe a mão no ombro e com eles doer a perda do som da voz, depois o cheiro, tentar lembrar, fazer muita força para sempre lembrar, talvez sonhando os encontre...
Afogar o sentimento durante o dia e [parecer] ser forte. Cá dentro, dorme-se.
 
 

quinta-feira, 2 de janeiro de 2014

Olhar com Vista sobre o Rio (11)

 
 
 
 
Se fechar a minha mão agarro-te de uma só vez, pequeno que és ou pequena que sou ainda quando quero pensar-te só meu na grandeza dos infantes quando nas estórias do contar acham sempre que os tesouros são de quem os decifra no mapa ou escavando fundo tocam na arca.
 
Eu achei-te pelo olhar, logo assim me perdi ou tu me lançaste um feitiço ou então é coisa dos Rios, já te contei de outros.
 
Mas tu, sei lá porquê, à medida que o tempo corre, tens-me parado nas veias e agora mirar-te de longe e fazer de conta que te consigo segurar, pequeno, quase gota na concha da mão, uma brincadeira que olho na palma e vejo escorrer entre linhas destinadas a seguir entre margens daqui onde agora me sento acocorada na colina do Castelo, e além, mulher deitada de lado, lado meu, margem minha, sinto a tua finitude na emoção, lágrima, um sal que não é Rio.
 
Quando eu o for tu deixarás de o ser e nada mais será Tejo.



(in Olhar com Vista sobre o Rio, 2012)

quarta-feira, 1 de janeiro de 2014

Janeiro


 
A verdade é que é um déspota. Coroam-no sem ímpar, uma festança ruidosa que se espreme em trinta minutos de fogo de artificio, muitos sacrifícios para um arrojo de luxo, bebedeiras vomitadas em arrependimento lembrado anos fora, contagem à dezena e já está.
A verdade é que fechei os olhos e ignorei. Ou apeteceu-me cortá-lo da existência e simplesmente pulverizar um pedaço sem valia. E neste fosso logo chega o outro, implacável, longo. Déspota.
Essa é a verdade.
Tanto que se anseia pelo novo que se esquece o que ele traz, tanto que se espera pela mudança que se olvida a resistência à mudança.
O frio molhado que pinga da noite para os dias curtos acorda-me na testa a altivez com que para mim se debruça. Sinto-o a olhar-me a vontade. Ficarei eu, numa verdade de olhos fechados, a sentir o peso a minguar-me o tamanho do mundo, pondero forças, medimos.
Empresto-lhe o que quer ser, abro os olhos, façamos do tempo o que ele merece.