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sábado, 30 de junho de 2012

Campo de palavras (6)




Mais folhas e nem uma o vento roubou daqui que lhe aprouvesse no estomago alimento diferente do que fel ou açucar, vai-se a ver, e é tudo liquefeito, todo cuspo, tudo coisas de lingua ou do sabor de cada um ou como cada um acha que lhe pode caír consoante a disposição de o tomar.

A árvore ainda cá está, de copa larga, preguiçosa e madura mas forte e alta, corações cravados no tronco que não saram a resina que pinga, ninhos, muitos ninhos, alguns de gerações passadas, outros de ovos de Primavera primeira e voos ensaiados com muitas quedas.

Quando falei não falei de mim, usaram de mim para falarem deles, eu encostei-me na árvore e deixei porque gosto de ser palavras, porque me faz sentir tinta e correr e molhar terra e folhas e ventos e ser alimento. Por agora sacio-me.

Amanhã voltarei.

sexta-feira, 29 de junho de 2012

(Des)Montagens



Dava-lhe um ar sereno. Até distante. Composto. Cénico. Por vezes uma aparência gelada, paralisada, recortada de uma só dimensão e colada a gosto num décor a necessitar de figura a condizer. De resto, pouco mais a acrescentar.
Ou muito, se a observassem em pleno horário de expediente, assaz dedicada a debicar nas teclas do computador com o rabo do lápis, já que o comprimento das unhas não permitia alcançar o polme dos digitos e tamanha envergadura havía-lhe levado mais de um par de horas na manicure, já para não falar no abanão orçamental. Depois, havía sempre o risco -embora calculado, é certo- da falsa unha se descolar da verdadeira, e isso sim, sería um problema dobrado: a revelação aos seus semelhantes e a reparação imediata em tempo laboral.
Claro que a rasto com este contratempo, outros viríam: Como correr para a manicure com saltos de 12cm? E como se exibir destronada, decepada de tais pedestais, praticamente uma anã? Para não referir o desconforto das pequenas almofadas de gel que lhe contornam os glúteos a escorregar, no esforço da passada larga... as bolsas de silicone que se agitam teimosas no soutien-up que tão up que se imaginam amígdalas à beira da extracção! E o enredilhar das extensões de madeixas no desenfreio suado da perdição da postura, e ainda as pestanas que por seis horas a manteve de olhos secos!!!
CÉUS!!!
Por isto tudo, continha-se.
Quando ría, fazía-o num tracinho fino da boca, as mãos presas num cuidado apertado e poisado no regaço gentil de quem sabe que o minimo descuido é a morte do artista.
Só não sabemos bem qual.

quinta-feira, 28 de junho de 2012

Dois olhos, infinitas janelas





Para lá de mim, para lá do cerco dos dias, das paredes que forram a vontade da fuga e dominam pernas em correria ou saltos de corça para esconder lágrimas de raiva, tenho dois peões corajosos que avançam e desbravam caminho. Umas vezes para me salvar, de outras tantas para ir a passeio.
Seja de uma ou outra causa, levam-me pela mão como se criança ainda fosse o meu estado e porque tal condição me faz sentir segura, prendo-me e ombreada a tal par percorro veloz ou singela, fugaz ou demorada, campos, rios, uma só nuvem, copas de árvores, as crinas de um lusitano, a zoeira de um enxame, as linhas em degrau de uma vinha do Norte, uma poça de água recebendo os pingos de chuva.
Para lá de mim, os meus olhos ajudam-me, abertos ou cerrados, a viajar e a salvar-me em mil cenários, num milhão de pormenores, numa incontável missão de fender rasgos onde sobem paredes.

quarta-feira, 27 de junho de 2012

Alucinações de uma vida paralela (6)



Se não me deixam dançar não quero ser nada. Não pretendo ser nada. Não pretendo morrer sequer sob o risco da despesa ou do incómodo ou da lembrança ou de algum traste que esquecido traia a passagem do fui, sou, eu sei lá, qualquer coisa que vos apeteça dizer não ao meu pedido ou o dedo apontado na contraordem da minha vontade.
Quero ser encolhida de esquecida, mirrada de sugada para dentro como se nunca tivesse sido pensada na existência do que anda e respira.
Se abrir muito a boca talvez me engula.

terça-feira, 26 de junho de 2012

Solilóquio




A cidade ocupada do meu corpo ou o invólucro com validade: Planos de um sujeito prismado a olhares diferentes, a acção comandada por uma só vontade.

Quem me vê?
Quem consegue olhar para dentro de mim?
Quem querem que eu seja? Que esperam que eu seja hoje?

Na minha cidade há riso e lágrimas porque um sem o outro não fazem sentido, e o bem e o mal são noções inventadas pelo homem para se apoderar de outras cidades ou de outras estórias em que não havía cidades para conquistar. E como contar uma estória sem conquista?

Tenho dias maus, muito maus, em que me apetece fechar o mundo à chave e pô-lo de castigo só porque me cansou até à exaustão do sentir e nada mais restou do que impaciência, nada, nada, mesmo nada, nem dor nem raiva nem grito, só um sentar de espáduas paradas no tempo pesado por uma idade que não me é.

Quem me entende?
Quem me ouve?
Quem se senta a meu lado neste silêncio comungado sem medo das palavras?

segunda-feira, 25 de junho de 2012




Bocejos de noite branca, a síndrome da véspera ou o estalo ardente que mantém a vigília alumiada na correria dos muitos que se fazem à travessia do quarto, não necessariamente pelo soalho, mas à roda do leito, por cima deste, pisam os cabelos, estagnam no abdomen, apoiam os cotovelos no peito.
Nestas alturas deseja-se que os minutos se façam pensamento ou vento e se desfaçam rápido mas nada avança, tão só os tais estalidos de móveis estranhos como gente grotesca que me assiste incrédula ao contorcer dos meus eus, dos meus tempos, das minhas chamas, do meu rio, dos meus mortos, os meus pesadelos fazem-se de olhos abertos, será que já adormeci e é hora de erguer, atraso-me, um minuto apenas, faltam quatro horas, pouco falta para andar de quatro e uivar na besta que seguro mal.
Gosto de rosas, gosto de orquídeas, gosto de jarros, são para mim, obrigado, não são de verdade?

domingo, 24 de junho de 2012

Olhar com vista sobre o Rio (25)



Definitivamente és um belo amante.
O amante.
Daqueles que encantam, que fazem tremer os joelhos, semi-cerrar os olhos e nos põem a mexer para a outra banda quando já lhes chega.
Eu sei disso tudo e permito e deixo e gosto e de quando em vez olho ao alto e miro aquelas vigas em aço, poderosas, que sustentam o meu ar por segundos e... a ponte esboroa-se nos sonhos como por tantos anos que nela andei a sonhar contigo cá em baixo.
Que queres?
Também eu sou igual a ti.

(in Olhar com vista sobre o Rio, 2012)

sábado, 23 de junho de 2012

Efeito boomerang




Vontade do regresso. Medo da descoberta. Sentidos. Repetições. De repente, as manhãs parecem rasgar-se numa dolorosa admiração pela clarividência com que a cor penetra na maturidade do que já se viu, já se sabe, não se sabe nada, reaprende-se porque se papagueia de outros sentidos sentidos, mil olhares revisitados que nunca se ligaram, o mundo roda sobre si mesmo à velocidade do que tomba para dentro de si, acho-me catapultada nas mesmas questões que alguém colocou a si mesmo e o eco das perguntas ressoa num futuro próximo a outros que as seguram fazendo-as suas. Mas é a minha dor a dor comungada, a água partilhada o sal da morte das lágrimas, o soluço o abismo do verbo da palavra que se encrava no grito? Então aí, a terra abranda, a terra pára, a terra arrota e os homens separam-se. 

sexta-feira, 22 de junho de 2012

Encarnações



Sinto um tal cansaço que era capaz de dar largas ao verbo e deixar que ele me reescrevesse palavra só para me deixar ser escrita.

quinta-feira, 21 de junho de 2012

Não é verdade



Inevitavelmente vou tropeçando em ti, quer o evite ou tão pouco me lembre, aí estás tu, seja em palavras deixadas no tronco desta árvore, seja no registo que o destino escolheu para na procura de uma qualquer coisa eu nada achar mas deparar-me contigo e com os teus verbos.
Creio que não sabes o que te aconteceu e é essa a forma que encontraste para chamar a atenção. Pois eu também não sei o que te aconteceu, porque temos um café marcado e livros para trocar e uma conversa para ter que adiamos há muito e temo que um dia destes não haja mais tempo... tempo? Não acredito que  foste embora e levaste todos esses verbos só para ti, que faço eu com os sobras que sei tão pouco? Retalhos de verdade? Fiapos de poesia a que pomposamente chamarei projectos em análise? Ou verdades adiadas?

quarta-feira, 20 de junho de 2012

Alucinações de uma vida paralela (5)



A branco e negro para que não hajam desvios de atenção com brincadeiras de cor, derrapo-me em risos, fragmentos de tempo, podíam ser fotografias mas não são, existiram mesmo, se os abanar ainda se agitam movimentos de respiração demonstrando vida mesmo que ma tenham matado, ressurreições, duas, três, quatro vezes erguida e à quinta suicido-me noutros salões em estilo clássico, mas sem sangue ou outras porcarias que tragam trabalhos a terceiros que não sabem de nada, não varrem lixo de trás. Cumpri, fiz a minha parte da forma mais torta, não foi sempre assim? Não foi desta maneira que me quiseram, dificil, custosa, suada, dorida? Privilégios, eu escorraçada, sou eu que abro a porta e saio de vez. Já está. Não doeu nada? Só a vida toda, mas que é isso para mim que tenho outras mil que me ocuparam?

terça-feira, 19 de junho de 2012

Vidas por aí


Não faz muito tempo era ela que se ajoelhava e baixava o olhar quando a voz da razão debitava os conselhos que muito lhe haveríam de servir no futuro, orientação repetía a voz, mas na verdade, a maior parte do tempo não escutava nada, ocupava a cabeça com sentenças de morte sobre a dona dos sermões ou se estavam no Verão, sobre avaliações de beleza e fealdade quanto às unhas dos pés tão semelhantes a bicos de aves ou para onde iríam desaguar aquelas veias azuis muito grossas que nascíam dos tornozelos.
Agora era ela que estava sentada no cadeirão e dizía às raparigas para tomarem assento no chão. Sentía-se importante, com poder, não tinha varizes e pintava as unhas dos pés quer fosse Verão ou Inverno de um encarnado muito feroz e brilhante que lhe confería confiança, sentía.
Começava o discurso sempre da mesma forma, traçando um paralelo entre o seu passado e o presente das que se dispunham a um nível abaixo do seu, mas nunca descía e se sentava no tapete junto a elas. Às vezes levantava-se, abría a gaveta da secretária fechada à chave, servía uma rolha de malte e exibía sem pudor, a ponta da lingua a perscrutar o ardor do alcool em recipiente tão apertado, na esperança de tal cena chocar as mais novas.
Mas ninguém dizía nada, limitavam-se a deixar esgotar o tempo, aguentar o frete de final de época para depois saírem em liberdade para as férias de Verão. Coisa que ela não tería, já que a sua casa era o colégio onde fora prisioneira em menina e se mantinha invisivelmente agrilhoada.
Depois das raparigas saírem, abriu a garrafa e bebeu pelo gargalo.
Assinou alguns documentos, arrumou-os, fechou as gavetas, deu a volta à chave onde o malte se escondía.
Acendeu uma cigarrilha e abriu a janela.
Descalçou-se. Olhou os seus pés. Suspirou. Comentou consigo mesma a beleza dos seus pés e como era pena que só ela os admirasse.
Sentou-se no velho tapete e massajou dedo a dedo carinhosamente.



segunda-feira, 18 de junho de 2012

Arte(s)



Enquanto houve luz que lhe agradasse registou no caderno de desenho tudo o que era esboço que lhe merecesse a pena de olhar.
Voltou no segundo e terceiro dias, ao quarto choveu e ficou de dentro com as mãos nos bolsos a bafejar os vidros e a desenhar-lhes corações com setas.
No quinto dia, havía sol brilhante e um cheiro maravilhoso de verde. Passeou com o caderno debaixo de braço, enlameou as botas que prevenidamente calçara, atirou seixos ao ar, transpirou e nem um risco fez para amostra. Regressou a casa feliz do seu trabalho.
No sexto dia, pôs-se de costas para o cenário que havía desenhado de início e completou-o.
Voltou para casa, fechou-se à chave no atelier, não respondeu ao chamamento para as refeições e no dia seguinte não deram com ele.
No final do dia, trouxe a tela e apresentou uma mancha azul que se desmaiava escorrida para dentro de um verde que era sugado por um castanho.
Silêncio. Sorriso dele. Silêncio. Sorriso ainda maior dele. Pergunta:
- E as árvores? Onde estão as árvores?
- Podei-as. Estorvavam-me a arte.


(in Telas, 15.06.2012, ao Trilitistar)

domingo, 17 de junho de 2012

Campo de palavras (5)




Aos poucos vou entrando tronco dentro e nesse miolo bebo seiva e relembro veias de outros campos, transfusões de memória adormecida e cadernos pilhados entre sonos mal dormidos ou noites brancas que deveríam ter tido interruptores para me desligar na hora certa da tinta acabar.

A árvore, mais do que palavras, lateja sentires, perdão ao verbo.

sábado, 16 de junho de 2012

O bater do coração (catorze)




Achando que me conhecem muito se enganam, e nem nunca pretendi fazê-lo, quer quanto ao dar-me a conhecer quer quanto ao manifestar-me ser algo que não sou, pois se da primeira tão só me entrego a quem amo e me merece, da seguinte sou o que sou e infelizmente, desagrado mais do que enfeito. Porém, genuína e não faço jeitinhos a ninguém para tentar o gosto a alguém, habituei-me assim, gosto de mim assim, aprendi-me assim.
Daí, até acharem que me causam reacções controladas - que da fama do cabelinho na venta não me livro - levando-me ao extremo da decência da compostura, é tempo perdido, porque afinal o que ocuparam a estudar-me outro tanto possa eu ter levado a fazer o mesmo, e desta forma, a capacidade de me despentearam apenas me anelou umas mechas. Se me conhecessem, à séria, leríam os meus olhos e veríam neles o que o semblante cala e aperta, o que neles desliza ferido e arde, mas só aguardam som pela boca, só alcançam o visível porque são míopes ao que melhor se lê.

sexta-feira, 15 de junho de 2012

Olhar com vista sobre o Rio (5)



Se não ondulasse sería asfalto, se fosse Verão estaría turquesa, invento matéria para te vestir ou para disfarçar o meu frio, porque não me aqueces? Não quero ir, não me deixes ir, se me queres bem não deixes que vá para aquele lado e tu nada, todo escuro, todo mudo, nem sei onde começas e onde termina o céu, estás cosido ao tecto e não te acho ponta no horizonte, deixas-me largada à minha sorte, à minha tristeza, à tosse dos que fingem ainda viver aqui sentados para correrem terra fora mal o barco toque margem certa.

E eu?

Eu não quero ir, ainda podes afundar o cacilheiro, mandar vir um tritão e impôr paragem, derrubares o cristo, eu sei lá, tu podes tudo!

Só me acordas, nem sonhar me deixas, tão pouco me aqueces os sonhos, tão pouco me deste hoje, nem um pouco de azul-verde, só cinza a pintar pesadelos... aviso-te, logo mais no regresso exijo um arco-íris e nem quero saber que seja Inverno!


(in Olhar com vista sobre o Rio, 2012)

quinta-feira, 14 de junho de 2012

Construções

Não há como não ter medo que as palavras acabem por engolir o conceito do que se pretende dizer e deturpe o ideal original da beleza ao desenrolar na construção do texto, quem vem primeiro, uma espécie de ovo da escrita, ou a condenação de quem a põe no papel ou outros artefactos, que a mim, pessoalmente, a maioria das escrevinhações despoletam-se em imagens onde vejo a minha letra a desenhar-se rápida e lesta, a meio de frases já feitas, lida em voz alta por homens ou mulheres, uma espécie de registo visual que arquivo e depois gravo materialmente.
Como e porquê isso acontece não sei e já deixei de me importar, tão pouco me é relevante porque recordo com tanta nitidez cada pedaço, toda a pontuação executada, mas acaba por ser um pesado fardo este, pois sem medida e circunstância, o verbo apetece-lhe e ocupa-me, desligando-me do redor durante o tempo que a sua acomodação lhe importa.
Às vezes dá medo as palavras. Outras tira-me daqui e eu não tenho palavras para lhe agradecer.

quarta-feira, 13 de junho de 2012

Olhar com vista sobre o Rio (26)



O mais acertado sería escrever sobre o santo e despachava a coisa airosamente, mas o coração do deserto é teimoso e ateu, claro, e também as promessas são como a água que o enche, hoje transbordo de tão pleno o meu sentir e tão belo ele tem corrido para me levar e trazer, que falta maior era dele não tocar palavra por isso dou-lhe as minhas, todas as que sei, poucas para lhe fazer jus à minha fortuna de o ter à vista e embalo em dias de mau acordar.

Querer ter-te só para mim é presunção, mas infinitamente consolador achar que te entendo, que te conheço apesar de outros secretamente partilharem deste egoísmo saboroso em que cada um bebe a sua concha de marés enquanto espia se os demais adivinham na viagem do número mágico de sete minutos, o que os banha na alma e repetem obssessivamente no silêncio surdo disfarçado como ruído do motor do cacilheiro cansado, como és grande, és o meu Tejo.

Mareados saímos todos, seja pelo quebrar do encanto, seja pela tristeza da gaivota no seu piado gago ou pela saudade nas costas que não se voltam para não mostrar a fraqueza da nossa humanidade. Tanto Tejo.

Tanta promessa.



(in Olhar com vista sobre o Rio, 2012)


terça-feira, 12 de junho de 2012

A evasão



Ao inicio da tarde assentou-lhe uma calmaria que foi entendida como concentração para o desenvolvimento de um trabalho especialmente meticuloso e particularmente dificil, razão pela qual não lhe estranharam o silêncio e o olhar semi-cerrado, quase fixo sobre o monitor, apenas interrompido pelo pestanejar automático da lubrificação. O corpo havía-se deslizado pela cadeira e a curvatura do dorso diminua-lhe a presença, desacelerava-lhe a respiração, só o braço direito sobre a mesa com a mão a tapar o rato computorizado emitía sinal de movimento, o mais o resto parecía ser parte tão inerte quanto o mobiliário de escritório.
Somava notas recolhidas de cadernos em reuniões ou trocadas por correio electrónico, apagava superfluos pessoais, usava palavras-chave e estrangeirismos que encurtavam frases, sombreava letras maísculas e referenciava a asteriscos casos anteriores.
Era tudo uma repetição, pensava, mudavam os agentes mas a acção era sempre a mesma, e ele sempre o mesmo a provocá-la, ele o gatilho. Sentiu-se extenuado, porém não parou, de olhos fechados, a mão em concha sobre o rato, a pele do corpo a rasgar-se sob a camisa, a gravata, as calças, alguma coisa de si a fugir-lhe e ainda o relatório a progredir na atenção extrema que lhe é peculiar, uma porta que alguém deixou aberta e que se fechou a bater, quem bateu com a porta?, todas as cabeças a rodarem na direcção do estrondo, que susto, o momento da tarde sem dúvida e ele nem pestanejou, é uma fera.
Ao final da tarde restam poucos com concentração e vontade para se manterem, só ele ainda na posição torta, o braço sobre a mesa, uma palidez mais que branca do halógeneo cruel traído pela noite que se ouve chegar, até amanhã, ainda ficas?

segunda-feira, 11 de junho de 2012

O livro negro dos homens (vinte e três)

Há dias em que nada faz sentido porque tudo é feio e todas as gentes são más. E tudo junto parece reunir-se num diminuto espaço onde pouco ar se respira. Nada funciona. O que dantes havía não existe mais e não se voltará a fabricar porque não é rentável. As ruas conhecidas estão em obras e o traçado futuro altera-lhes o trilho de tal forma que as memórias dos risos e das tristezas aí sentidos não passam de ficção que se leu algures. Paladares degustados em casas fechadas ou simplesmente inexistentes à vista, activam o cuspo e apenas envergonham pela baba que escapa ou pela conversa que se troca como cromos raros com uns quantos que sofrem da mesma mágoa, da mesma magia dorida, do mesmo deserto pleno de secura e miragem, o desconforto de quem sabe que já lá esteve, teve, tocou e agora não sabe nada porque precisa provar a si mesmo que ainda está vivo por dentro, que ainda é rentável para si, para os amigos, para os apertos de mão, para a palavra dada, para limpar os pés no capacho e pedir licença antes de entrar, para dar um abraço e ouvir encostado no peito qualquer coisa tão parecida que em tempos se chamou o bater do coração.

domingo, 10 de junho de 2012

Desconsertos



Tal como um cão abandonado durante horas a correr atrás da cauda para passar o tempo, vou inventando esquemas para tapar a demência de vozes que se colocam melhor e mais sonoramente que a minha, já enfraquecida pela tese desconfortável, quiçá, veículo, instrumento, ferramenta, usem o termo que vos aprouver, ao serviço dos que precisam para se fazer ouvir, digo escrever com tom, corrijo, com cor, reformulo, com interesse, poetiso, com capacidade de se fazerem ser lidos para além de duas linhas sem bocejos e comentários à margem sobre a pepineira que este 1º§ já está a ser. (Afinal ironisei...)
Mas até o cão acaba por se aborrecer e farto de ganir por se morder a si mesmo e não se poder vingar do desgraçado que há em si por cada vez que triunfante caça a cauda, desiste da brincadeira e termina enroscado a dormir a um canto, também eu me canso de tanta ferroada e falta de tempo, pior, nem sobra nada para me enroscar e tirar uma pestana, pois se destas sestas sempre aparece mais um, ainda mais que nos recônditos dos sonhos (ou dos pesadelos) arranja uma fresta e se espalma para uma linha do meu caderno vincado de tinta permanente de espirito torturado por mãos que se fabricam a outras que são sempre as minhas, reclamadas como sendo propriedade alheia, identidade roubada a minha, a quem, pergunto?
E a resposta bate-me na cara: A quem perguntar? A mim ou à cauda do cão?
Uivo.
Nem lua para anunciar.

sábado, 9 de junho de 2012

A praia secreta



Soltou o punhado devagarinho e sem escapar a vista do fio da areia a perder-se logo ali prometeu que aquela sería a sua praia secreta, só sua e de mais ninguém, pegadas só de seus pés e sobretudo, em mapa algum havería traço que a desse a conhecer.
Decisões destas são custosas. Cortam com o resto do todo que temos ao redor, arrancam cheiros e paladares a que nos costumamos, finge-se que nunca se teve aquilo que se arrecada na memória e é essa a única bagagem que se leva para um sitio escondido e selecionado como a praia secreta.
Da beleza e da solidão tanto se pesa como tanto se equilibra e sendo assim, outro mais tanto de areia lhe juntou em fio ao lado do primeiro.
E já eram duas colinas.
E um vale a meio.
E se na praia tivesse tido tempo de verter lágrimas mar lhe tinha feito rebelde e salgado, agora o que vía era um rio doce e serpenteado entre os dedos da mão aberta e livre pela areia largada... Como o pensamento se escapa como vento quando se sonha de olhos abertos.
Pôs os óculos escuros, recolheu a toalha e fechou o chapéu de sol, porque a chuva tinha engrossado.



in Telas, Dez.2011

sexta-feira, 8 de junho de 2012

O quarto [é] para dormir



Já experimentou tantas vezes suster a respiração, foi aprendendo com os anos devagarinho mas nem mesmo crescendo abrandou o troar estúpido que lhe enche o peito e ecoa pelas paredes escorrendo em noites vazias que os olhos tardam a cansar-se da claridade mesmo fazendo muita força para os fechar, cerrar, apertar pestanas contra pestanas ou então sobressaltarem-se nos estalos súbitos da mobilia que sabe-se lá porquê, não deve ter aprendido a suster o ar dentro de si e nos soluços das ânsias, traiem a sua presença grotesca com uma espécie de arrôto de medo.
Onde será que a mobilia guarda o seu coração?
Já lho procurou quando a manhã aparece, mas à luz do dia tudo vai embora e nem mesmo os estalidos tristes se escutam para adivinhar uma vida por perto. Tão pouco na gaveta dos lenços onde guarda os cadernos das escrevinhações, as más escrevinhações, que num gesto de enfartamento podería a repulsa por tal alimento devolver com nojo e ruidosamente o que lhe havía forçado a esconder.
Não sabe.
Mas sente que a cada trovão do peito não está só, se da mobilia ou do soalho, se das paredes molhadas a escuro e claro e depois a manchas que não são nem uma ou outra mas um todo temeroso que a vai lambendo e apertando na dimensão do que quer assentar e não arranja sossego, talvez sonhos que pairem na busca do poiso certo e no custo dos olhos pregueados perdem-se de dono, revoltam-se.
Finalmente, e num impulso debruça-se e espreita. Os chinelos desalinhados dormem e só por isso não se assustam com uma cabeça pendurada.

quinta-feira, 7 de junho de 2012

Alucinações de uma vida paralela (4)


Remeter espaços, temporizar batimentos, acertar sílabas, enquadrar sentires, tudo o que me pedem é que represente, represente bem, desenvolta e eficaz, sem falhas na fala e lapsos no enredo, nada de ocupar territórios alheios e sobretudo atenção à sombras! As sombras são muito importantes! AH! As Sombras! As sombras que poderei eventualmente fazer sobre os outros actores da vida. Pedem-me singelamente que desenvolva, evolua, progrida e sorría mas não me deixam dançar. Quieta aí!!! Compostura! Joelhos apertados! Você quer apanhar nas mãos? Ou melhor, nos pés? Tanto se me dá, eu vejo-me por dentro e rio-me, essa loucura é só minha, já pensaram que liberdade fantástica? (Deve ser por isso que há tanto doido). A doida cá dentro cresce como o fermento, a actriz lá fora cresce para os demais, todos estão felizes. Menos eu, hospedeira de todos, saco das vontades de outros, sombra das sombras de outros, de mim, de uns quantos que falam e cantam e não vejo, há esquinas de ruas que já desenhei e nunca lá gastei sapatos, morro em vielas de estórias alheias gastas em horas de minha mão e no entanto acordo e o palco ajeita-se na punição original, quer apanhar nos sonhos?

quarta-feira, 6 de junho de 2012

Boas memórias




Nos primeiros sons da nossa voz estão os cheiros e as linhas da tua palma e também as horas de muitas conversas sem tom, de novo linhas, algumas interrompidas por pontos, marcas, rugas, silêncios, interrogações, cigarros, gatos, zangas (porque é que nos zangámos? não consigo lembrar-me...), risos, mais risos, gargalhadas de boca escancarada até as lagrimas molharem os olhos e nos chamarmos doidos.
- Sabes quem fala?
- Sei.
- Ainda bem.
- Porquê?
Nas primeiras linhas das nossas imagens estão os contornos de branco e negro e as cores das minhas palmas a desenharem letras que não de mim, mas de outros, que embora eu não serei eu e tu entendes e chamas-lhes de caldo saboroso e nesse respeito há exclamações, parágrafos, tantos parentesis (ao diabo com eles, dizes tu), risos, mais risos e olhos fechados até se abrirem em gargalhadas imaginadas no som das lágrimas (nunca chorámos, tenho a certeza).
- Ía odiar se mentisses mal.

terça-feira, 5 de junho de 2012

Um para dois sff




Ultimamente tenho sido bombardeada com uma frase da moda que me sufoca como um lenço enfiado pela boca dentro, em episódio já muito batido, da rapariguinha raptada pelos maus e deficientemente atada a uma cadeira, enquanto estrebucha e tenta freneticamente desprender-se, o que apenas resulta na ruína do penteado. A mim, confesso, põe-me os cabelos em pé e estando eles novamente de bom tamanho, diga-se, é um feito arrojado.
Quero eu com isto dizer, que tentar calar-me com palmadinhas verbais, muito semelhantes ao antigo "tenha paciência", situação que requer acomodação, estofo suficiente para aguentar compostura e civilidade sem reacção, só por si, já me deixam nervosa. Se a isto, juntarem a frase "tenha calma", perco as estribeiras.
Mas toda esta combustão desencadeia-se porque o fósforo está na mão de quem não procura a solução para o problema ou alternativas para a questão, mas apenas se contenta em formular (a tal, eis a tal frase da moda) redutoramente, é o que temos. Como se nada mais houvesse. Como se não havendo, fosse o que há. Como se se especulando, corresse o perigo de se pensar que outras saídas pudessem surgir... olha que perigo!
Pois para mim, há Tango.
Um se faz favor! E são sempre precisos dois para dançá-lo.
Dá para perceber?

segunda-feira, 4 de junho de 2012

Sem ses



Amaldiçoado seja o condicional que me empareda entre escolhas ou confina ao redutor da minha pequena memória humana, antes fora eu pedra e assim assista parada no tempo ao devotar gasto de quem me passa sem ligar - ignóbil achais! - e me pousa mãos e pé cansado mas também elmo, lança e até a custo, inscrição de aqui passei eu, e vai-se a ver é tudo de novo condição, abrigo, sombra e nem pedra, terra, céu escapam de tal danação de nunca se ser tão simplesmente o que se é por ser, mas elos de uma ligação invisivel que se unem em parcerias improváveis, um desconserto encaixado, um querer não amar, tal como um SE, se eu fosse um poema, se eu fosse uma pedra não tería coração, não podería sentir e ainda assim, o sangue dos que em mim falecem outra cor me daríam.


domingo, 3 de junho de 2012

Depois das seis




Às seis da tarde, a seguir aos lanches e ainda com a mesa por levantar dava-lhe uma bonomia que só se lhe transparecía por um ligeiro rubor nas faces e um pouco de brilho nos lábios, que lambía na satisfação do que lhe ía por dentro. Também, é certo, pela réstia do doce de ginjas que forte no gosto, sempre se alarga no vestigio da alma gustativa, mas sobretudo pela grandeza da meia-hora que era só sua, unicamente sua, todo um universo de 30 minutos, intocável, sem mácula de perguntas, pedidos, inquisições, chamamentos.
Aos Domingos, depois das seis, a seguir ao lanche das crianças, quatro delas que tinham vindo todas de enfiada e depois parou, num repente parou, e ela achou que nessa altura ele lá no alto e na sua infinita misericórdia tinha finalmente acordado e houvera reparado nela. Mas não era isso que lhe dava sorrisos nem a fazía ausente da mesa de sala de jantar aos Domingos depois das seis da tarde, o seu retiro era outro, as suas mãos pousadas em cruz sobre o regaço protegíam sonhos acordados, os olhos abertos à luz serena do final da tarde descortinavam bosques que se rasgavam à sua passagem bravia, veloz, os cabelos soltos ondulavam ao sabor da crina do corcel que galopava forte, e tanto mais ele corría mais ela o espevitava, acre, suado, nos botins esporados contra a barriga.
Sorria, prosseguía, e as seis avançavam até à meia, ela louca de blusa desfraldada na montaria, chicoteada pelos ramos altos a lamber salivas com gosto de sangue, o rosto gelado, as veias quentes e latejantes do perigo da queda.
Entrou o marido, perguntou pelas crianças, ela apeou do sonho, ergueu-se, levou as mãos ao peito a esconder o palpitar do coração, compôs a mecha de cabelo atrás da orelha, pegou chávenas, tapou o frasco de doce.
No próximo Domingo, depois das seis irá mais longe, há-de tentar um salto. Nunca mais a hão-de apanhar.

sábado, 2 de junho de 2012

O bater do coração (treze)




Em breve a claridade a surpreender e as sombras sobre os dedos a atormentarem ponteiros de relógios, hoje prego-lhe uma partida e não lhe dou corda, deixo-o mudo até se esvanecer nas badaladas sumidas e sem força para terminar as meias horas. Ganho-lhe. Deixo-me estar, ignoro-o vitoriosa e vou aqui escrevendo, o dia em que o tempo se fez pequeno tornando-se grande, enorme para mim. Permito-me devaneios e até o café que esfria no esquecimento do verbo pedalado das subidas do quero-te dizer agora imperiosamente, tem outro paladar, tem outro novo café por fazer nos aromas que me hão-de aquecer a memória de novas palavras.
Assim sendo, fico a pensar de quem será a culpa, se do tempo se minha só, que não o alimentei e tanto cresceu para mim.

sexta-feira, 1 de junho de 2012

Pânico




Fechou a porta atrás de si e a primeira sensação que teve foi o vento, ou o picante do ar a entrar-lhe nas narinas, ou talvez o aspecto do céu um pouco acinzentado-azulado-anilado, não sabía distinguir que cor sería. Aliás, não sabía explicar o que estava a sentir, era tudo novo, uma coisa qualquer que o entontecía e que lhe era estranha para a qual não achava palavras na prontidão dos impulsos do seu corpo.
Vertigens. Sim, vertigens sem duvida, embora a altura não fosse maior que a das suas pernas e não se recordava que tivesse crescido mais uns centímetros desde que tivesse chegado ao terraço da empresa onde trabalhava. Porque tinha ido para ali e como, era também um mistério, recordava-se de estar sentado a trabalhar e sentir-se sufocar frente ao computador e de ter observado os demais na mesma situação que ele e todos parecerem estar bem, a respirarem bem. Mas ele sem ar, o peito vazio, amolgado, achatado até as costelas se colarem à pele das costas e toda a sala parecer esborrachá-lo sobre o toráx.
A seguir, deu consigo no topo do edificio.
E agora?
Como saír daqui?
Como voltar à sala, à segurança da sua cadeira e à certeza da sua mesa e do seu computador, capaz de caír, ser levado pelos ares ou até com esta cor estranha de céu vir um tufão, um tornado e engoli-lo sem salvação, os outros nunca mais o hão-de achar, recuperar o corpo ao menos para que se faça o funeral decente, uma tragédia...
Sentou-se no chão.
Puxou os joelhos ao peito e rodeou-os pelos braços, pendendo a cabeça sobre este arco.
Sentiu-se miserável e pensou que se tivesse o telemóvel consigo estaría salvo.
Soluçou.
Um pássaro sobrevoou e deu largas à sua natureza sobre o fato de marca.